GERAL

A violência está na linguagem

Keli Lynn Boop / Publicado em 7 de abril de 2005

Durante 24 anos, o inglês Dominic Barter, 38 anos, atuou e dirigiu peças teatrais pelo mundo. Dois acontecimentos totalmente distintos foram decisivos para fazer uma reviravolta na carreira e na vida dele, que há cinco anos mora no Rio de Janeiro: o nascimento da filha e a morte de duas pessoas no famigerado seqüestro do ônibus 174, no Rio, em 2000, que foi transmitido pela TV para o mundo, ao vivo, por quatro horas. Foi então que Barter decidiu, há dois anos, fundar a ONG Comunicação Não-Violenta (CNV) no Brasil. Atualmente, ele coordena diversos projetos e tem sido convidado para atuar em presídios, favelas, empresas, escolas e até mesmo em ambientes familiares com o objetivo de transformar o monólogo da violência. “A solução de conflitos”, defende, “começa quando são eliminados da linguagem julgamentos e acusações”. Barter conversou com o Extra Classe, quando esteve em Porto Alegre, em janeiro, ao lado do psicólogo americano Marshall Rosemberg, criador da CNV, para realizarem um workshop promovido pela Ajuris (Associação de Juízes do Rio Grande do Sul). Em março, ele retornou a Porto Alegre para o lançamento de um projeto-piloto do Projeto de Justiça Restaurativa do Ministério da Justiça, desenvolvido na Escola Superior de Magistratura da Ajuris.

Extra Classe – O que é e como surgiu a Comunicação Não-Violenta?
Dominic Barter
– Comunicação-Não Violenta não é uma ideologia, não é uma promessa, não é uma maneira cor-de-rosa de ver o ser humano e o mundo. Ela não prega: “Se as pessoas fizerem isso ou aquilo estará tudo bem”. Ela explica concretamente o que cada um de nós pode fazer a partir de hoje. Ela foi usada primeiramente em projetos federais do governo americano em escolas e instituições públicas a fim de promover integração racial de forma pacífica durante os anos 60, durante o período de segregação. Foi criada há 40 anos e hoje é uma organização auto-sustentável e mantida por doações e, ao longo dessas décadas, criou sistemas de apoio à vida nas relações intrapessoais e interpessoais. Atua com administradores escolares, professores, profissionais de saúde, mediadores, gerentes de empresas, detentos e guardas, policiais, líderes religiosos judeus, cristãos, budistas e muçulmanos, autoridades governamentais e outros. Ela é desenvolvida nos cinco continentes por mais de cem treinadores e usada por centenas de voluntários. Já fez parte de estratégias de resolução de conflitos em Israel, Serra Leoa, Bósnia, Sri Lanka e Ruanda.

EC – Na prática, quais as palavras-chaves da Comunicação Não-Violenta?
Barter
– Observações, sentimentos, necessidades e pedidos são os quatro ingredientes principais da Comunicação Não-Violenta. Ou seja, trabalha com uma linguagem não judicial e baseia-se nestes quatro ingredientes. Aprende-se a expor os fatos de uma situação sem interpretação ou opinião; reconhecem-se os sentimentos implícitos; identifica-se quais necessidades humanas estão ou não estão sendo atendidas; e aponta-se quais ações se gostaria de ver executadas para satisfazê-las.

EC – Além do Brasil, em que outros países a CNV atua e qual a peculiaridade de cada um deles?
Barter
– Atualmente a CNV desenvolve projetos em 40 países. Esses projetos mudam muito de acordo com as circunstâncias das comunidades e do país em que estão sendo desenvolvidos. No leste da Sérvia, depois da guerra civil da Iugoslávia, a Universidade de Belgrado implantou um projeto em todas as escolas de Ensino Médio num contexto muito específico. Lá, a geração dos pais dos jovens desenvolveu a lógica da existência de uma ameaça de inimigos que precisavam ser retirados. Eles usaram naquele contexto a lógica da “limpeza étnica”, como se devesse a isso a solução de seus problemas. Então foi identificada a necessidade de educar os jovens numa convivência pacífica para precaver o ressurgimento de uma guerra. Muitas vezes, nas chamadas resoluções diplomáticas de conflitos, não são tratadas as fontes da agressão. O que se tem é a lógica de ser vítima e, portanto, de precisar atacar para poder recuperar a dignidade perdida, identificada como terreno ou recursos naturais. Na Iugoslávia havia uma necessidade específica para desenvolvermos programas para a restauração de uma convivência. Já em lugares em que a guerra ainda está em jogo, o trabalho é underground, não chama a atenção, porque é um processo de mediação quase invisível. Nas situações em que a guerra não é declarada, o trabalho se aplica nas igrejas, nos sindicatos, nos hospitais, delegacias de polícia, na educação, na justiça, no mundo empresarial, não tem muita limitação de onde ele acontece.

EC – Onde está a raiz da violência?
Barter
– Poderíamos dizer que a raiz da violência, e não do conflito, está na expressão trágica de uma necessidade humana não atendida. Uma necessidade humana universal, compartilhada por todos, que se frustra e é expressa de forma trágica. Trágica tanto por causa dos danos que causa, mas também pela pessoa que age desta forma, porque a violência é uma forma extremamente ineficaz de conseguir o que se quer. Então, surge a expressão “trágica”. Infelizmente é algo com o qual fomos educados, não é algo com o qual nascemos, não é natural ao ser humano. Virou “normal”, tão normal que parece natural pelo fato de que durante milênios estamos sendo educados a acreditar que o ser humano é uma coisa, não reconhecendo que ele é um processo. Como se o indivíduo fosse um carro quebrado, com alguma falha mecânica que tem uma peça que precisa ser trocada. Essa idéia fere a nossa integridade humana. Ela leva a nos enganar sobre os vários motivos e as razões dos comportamentos das pessoas e sugere a lógica de punição, que se eu violo os direitos da outra pessoa eu vou estar ensinando a ele uma lição que vai levar a pessoa a corrigir o seu comportamento. Esta lógica faz com que a violência se torne inevitável.

EC – Esta lógica da correção tem muito a ver com a prática do castigo, muito comum em algumas religiões. O que acha?
Barter
– Tem a ver com a lógica de que tem alguma coisa errada com o ser humano. Ela tem que ser analisada do ponto vista psicanalítico, psiquiátrico, religioso, ideológico, politicamente falando. Esta idéia é radicalmente anticientífica, apesar do rótulo científico que muitas pessoas adotam no diagnóstico e tratamento do ser humano, como se fosse uma coisa inerte, fixa. O comportamento do ser humano não muda de forma desejável, no caso, quando há a aplicação do castigo, ele gera e prepara para um campo de muita violência.

EC– Qual a diferença entre a violência que ocorre nas comunidades pobres e em outros locais, como o ambiente de trabalho?
Barter
– Existe um pouco mais de sinceridade nas comunidades carentes. O uso da violência não é disfarçado, é assumido. Quando a gente entra em estruturas mais elaboradas como uma grande empresa, muitas vezes a gente vê que a estrutura foi organizada para levar os indivíduos que estão envolvidos a uma dinâmica que não promove a parceria e eficiência de comunicação. A gente vê que as possibilidades foram tiradas dos indivíduos e é difícil identificar o que cada pessoa está fazendo, qual a sua função e o que foi solicitado fazer. O resultado disso pode ser desejável para a empresa de muitas formas. Não é uma violência que se leia nos jornais, é uma atmosfera empresarial em que a gratidão está faltando. A comunicação clara, mesmo no nível técnico está difícil. Existe uma desconfiança entre os indivíduos e entre os departamentos. Uma luta velada para o acesso à possibilidade de contribuir.

EC – Existe aí um contra-senso, não é mesmo?
Barter
– Parece irônico, né? Pois uma empresa quer o quê? Quer o máximo de contribuição de seus funcionários. É inegável a importância de uma clara comunicação entre todos e para o funcionário. Hoje em dia, em qualquer posição de trabalho ou função é necessária a capacidade de resolver conflitos, de abraçar o conflito e de não tentar fugir dele ou fingir que ele não existe, mas de reconhecer e celebrar o conflito como sendo um aspecto de saúde de qualquer equipe trabalhando. É necessário lidar com o conflito de uma forma que ele não desencadeie agressão, desconfiança, diminuição da capacidade das pessoas em colaborar no ambiente de trabalho. A raiz do problema é a mesma, seja numa empresa, em uma comunidade carente ou na escola, mas, às vezes, as formas de lidar com isso pode ser diferenciada por causa de cada situação.

EC – A violência na sala de aula é comum no mundo inteiro, tanto em escolas particulares como da rede pública. Como qualificar as relações entre professores e alunos?
Barter
– Primeiro acho necessário investigar se a estrutura da escola está encorajando uma cultura de paz e um clima de convivência pacífica, ou não. Isso está embutido na estrutura escolar e, em muitos casos, não existe nem um único professor ou diretor que criou este sistema ainda presente na escola, e você entra na escola e todo mundo que está trabalhando nesta escola é deste contexto. E todas as pessoas nesta situação também foram educadas dentro de um sistema em que é ensinado implicitamente a desconfiança do ser humano. As pessoas falam em respeito, mas muitas vezes elas acabam ensinando a desconfiança, mesmo quando isso está longe da nossa intenção. Acho necessária a visão global da escola na qual, muitas vezes, os próprios professores estão recebendo da direção uma cobrança nada pacífica. Por sua vez, a diretora e a administração da escola estão recebendo uma mensagem muito parecida dos seus chefes, que estão pedindo certos resultados. Os alunos recebem esta mesma mensagem repassada e eles estão reagindo da forma que eles vêem a gente agindo. Talvez mais uma vez com um pouquinho mais de sinceridade, de abertura, eles reconhecem a violência implícita nessas relações na escola, demonstradas pela existência da dinâmica de punição; ameaça ou uso de punição é o ensinamento de violência que valida, ensina e recomenda, por exemplo, que a violência seja usada como uma forma eficaz de mudar o comportamento humano. Quando identificamos em alguém um comportamento que não gostamos, a lógica de punição nos ensina que é necessário agredirmos de alguma forma essa pessoa, privar ela de algum direito ou aplicar alguma restrição de liberdade e isso cria um momento de reflexão que a pessoa se toca de seus erros e mude de comportamento. A idéia é ótima, mas não funciona. Então a Comunicação Não-Violenta entra para tratar não só da relação interpessoal de todas as pessoas envolvidas mas, também, da estrutura em que a agressão é implícita, e o aluno é inde-vidamente encorajado a se expressar de uma forma que fere a convivência de todos.

EC – A indústria do entretenimento, especificamente música, cinema e meios de comunicação, é apontada como mul-tiplicadora e incentivadora da violência. O que você acha?
Barter
– Acho que talvez tenhamos esquecido como entender a arte. A arte não vem para ensinar mostrando o caminho certo. A arte vem para criar uma maneira de nos vermos e, assistindo à arte, nós mesmos descobrimos a maneira que queremos viver. Hoje em dia é muito comum acusar a arte de estar ensinando uma forma violenta de viver. A arte está fazendo o seu papel que é para refletir aquilo que está acontecendo, mas talvez de uma forma oculta em nossa cultura. É muito fácil ver os ocidentais criticando a violência do mundo mulçumano. É extremamente fácil olhar para a diferença e identificar aquilo que vai dificultar a convivência. É mais difícil ver a nós mesmos, olhar para o espelho. A arte tem esta função. As perguntas que devemos fazer são: Como ensinamos os nossos jovens a curtir a violência? Como a violência virou entretenimento? Preocupa-me menos saber em quantos filmes é apresentada a violência como entretenimento, a questão é como é que virou entretenimento? Ninguém nasce querendo assistir a um filme de porrada ou a um bandido sofrendo nas mãos de um justo. Como é que a gente aprendeu esta lógica ou o mito de que é preciso só mais uma guerra para termos a paz, ou, só mais um ataque e vamos ter segurança? Essa lógica existe há milhares de anos e é desenvolvida em estruturas de educação que são colocadas a serviço desta lógica, a de que é necessário ensinar as pessoas a se divertirem no momento em que o elemento mal é punido. Neste contexto, inevitavelmente você vai ter muitas expressões culturais que glorificam a violência e muitas pessoas que se dizem felizes por assistir a este tipo de cultura.

EC – Outro dia, a jornalista Mônica Waldvogel, apresentadora do programa Saia Justa, do canal pago GNT, criticou a eficácia de atos pela paz, como o abraço na Lagoa (Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro), alegando ser a expressão de uma classe média amedrontada que não reflete sobre as causas da violência. Você concorda com esta opinião?
Barter
– Óbvio que é uma expressão do medo da classe média. Gostaria que a classe média não tivesse medo e tivesse toda a segurança, como qualquer ser humano. Se estamos falando em paz, não estamos falando em assalto e morro, não estamos falando em periferia e bairros nobres, estamos falando na paz e justiça para todo mundo. O que vejo no abraço à Lagoa é a expressão intensa de um desejo da paz e o reconhecimento que através da repressão esse país não vai chegar até ela. Isso não quer dizer que essas expressões sejam mais eficazes para estar contribuindo para a paz, mas é também uma demonstração importante de quanto isso é desejável. Elas representam uma quebra do silêncio, um convite para as pessoas se juntarem e quebrarem as barreiras de classe de distribuição de renda e de cultura que as separam. O abraço é um momento importante, mas, para contribuirmos concretamente para uma cultura de paz, precisamos ir além desse abraço e desenvolver a nossa capacidade de abraçar não somente os nossos amigos, mas também os nossos inimigos.

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