OPINIÃO

A volta do barril de pólvora

Publicado em 5 de agosto de 2005

Depois do delúbio (a denúncia de doações dadivosas de dinheiro disfarçado a deputados) e do dizlúbio (a denúncia de dízimos com destino duvidoso), chegou, ai de nós, o daslúbio – a denúncia de distintas dondocas distraidamente defraudadoras. É demais. Há muitas vantagens em envelhecer. Dê-me algum tempo e pensarei numa. Entre as desvantagens está o acúmulo de memórias inúteis, que atravancam o cérebro, como aqueles suplementos culturais que a gente vai separando para ler depois e ficam empilhados pelos cantos, dificultando o trânsito dentro de casa. E que nunca se lê, ou quando são lidos não têm mais nada a ver com nada. Eu estava pensando sobre o auto-emporcalhamento do PT e a fúria eufórica com que está sendo recebido e tropecei numa dessas lembranças provavelmente irrelevantes. Um artigo do Antônio Callado, publicado não sei exatamente onde (Jornal do Brasil ou Correio da Manhã? Talvez ainda tenha o recorte em algum canto). A data certa também não sei, mas saiu poucos dias depois do golpe de 1964. Callado escrevia sobre o governo de Miguel Arraes em Pernambuco, e sobre o que estava sendo feito para melhorar uma situação social descrita por ele como um barril de pólvora prestes a estourar, uma descrição que valia para todo o miserável Nordeste brasileiro, em que líderes de esquerda eleitos como Arraes tinham, pela primeira vez, a oportunidade de tentar apagar o pavio. Arraes fora deposto do governo pelos militares, sua revolução legal e pacífica interrompida. Callado terminou seu artigo com a frase: “O barril de pólvora voltou”.

Nada a ver com nada, como se vê. A situação hoje é completamente diferente. Depois de 20 anos de governo militar e mais 20 anos de governos de fatiota com educação superior, todos no Nordeste e no Brasil têm telefones celulares e… Bem, todos têm telefones celulares, já é alguma coisa. Saneamento básico e ultrapassar Serra Leoa no campeonato mundial de má distribuição de renda, talvez nos próximos 40 anos. Não existem mais a Guerra Fria e as razões de segurança continental ditadas ao nosso exército por Washington, os militares estão quietos e não se ouve falar em golpe, pelo menos não em voz alta. A única ligação entre hoje e o ontem comentado pelo Callado é que está se interrompendo a segunda tentativa de um governo popular, com todos os seus equívocos e concessões, no Brasil. E querem ter a certeza de que não haja uma terceira. Depois que o PT lhe fez o favor de se auto-imolar, a direita está cuidando de espalhar as cinzas e salgar o terreno para que nenhuma outra opção de esquerda viceje em seu lugar, num futuro previsível. Em outras palavras, o pavio está reaceso.

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