OPINIÃO

Ética e política do lugar-comum ao lugar-nenhum

Suzana Guerra Albornoz / Publicado em 4 de setembro de 2005

Vivemos neste momento no Brasil uma situação de crise política, cuja linguagem me motivou a escrever, ao mesmo tempo, estas linhas sobre a exigência de ética na política e sobre os novos sentidos da utopia. O escândalo atual desafia a pensar melhor sobre as possibilidades, a capacidade e os limites do aperfeiçoamento do homem/dos homens, portanto, também da política e, em concreto, da vida política brasileira – tradicional e presente, insti-tucional e pessoal. Consciente da dificuldade da tarefa, venho partilhar com os leitores algumas de minhas inquietações:
– Será possível e sensato, ou mesmo, desejável identificar a ética com a política?
– A submissão da política à ética não será apenas uma miragem, uma espécie de esfinge que nos interpela e desafia?
– E se afirmarmos a necessidade de submeter a política à ética, ainda restaria a pergunta: a qual ética? A que ética queremos estar ligados e ser fiéis?
– O sonho de uma vida política pura, sem irregularidade, sem pecado nem pecador, não seria a mais brilhante utopia no sentido vulgar da palavra, entendida como algo irrealizável?
– Não permanecerá ainda utopia, no seu sentido mais nobre de possível ainda não realizável, como um velho-novo sonho da humanidade limpa, sem mancha, aperfeiçoável no sentido do melhor mundo possível de nossos sonhos?

O anseio coletivo que anima a opinião pública brasileira parece ser o de mais ética na política; ou seja, de instalar maior lisura em todos os níveis dos comportamentos relativos ao bem comum. Este anseio se traduz num sentimento de desconfiança com relação aos homens envolvidos na coisa pública, no reclamo de punição a toda irregularidade, a todo fato suspeito de corrupção e a todo indício de desvio das normas de correção nos procedimentos e ações ligadas à política. A história da ética ensina, contudo, que não é simples discernir sobre tais questões; e para tanto não basta o esclarecimento dos fatos – por si mesmos incertos, difíceis de definir e de interpretar. Porque a ética envolve complexas questões de fundo e, além de valores, escolhas, prioridades, mesmo ambigüidades, envolve imponde-ráveis como a intuição e o sentimento, e não se resolve apenas pela exata aplicação das regras positivas.

Tem longa tradição o entendimento da ética como o outro do direito e da política, como referência a outra ordem, com diferente preocupação e finalidade. Embora a política, conjunto de práticas e regras que rege a vida coletiva, deva buscar a justiça e a felicidade dos cidadãos, bens também buscados pela ética, que rege a ação dos indivíduos, há um caráter próprio e uma diferença importante em cada uma dessas buscas. Este entendimento se mostrava já na origem da reflexão filosófica sobre o justo e o injusto, no drama trágico de Sófocles. Na tragédia Antígona, talvez a mais famosa e marcante da obra sofocliana, bem no centro da grande dramaturgia clássica, encontra-se a expressão genial do conceito da ética como o outro da política. Enquanto o príncipe Creonte determina os atos que lhe parecem justificados para estabelecer a paz e manter a ordem e o governo de Tebas, sua jovem sobrinha se expõe à morte para prestar as homenagens fúnebres ao irmão morto que a cidade considera traidor. As razões e os deuses de um se opõem às razões e aos deuses do outro, sem que o autor nem o coro decidam claramente para qual lado pende a balança da justiça, o que tampouco o público poderá decidir.

A percepção trágica, da peculiaridade da referência ética em relação ao direito e à política, demonstrou-se sábia e permanece válida ante as experiências históricas de vinculação demasiado direta da política à moral, quando se tornaram evidentes os riscos das perigosas conexões entre o plano ético e o político. Tal relação é perigosa seja quando se quer submeter a ética à política ou, ao contrário, quando se quer submeter inteiramente a política à moral. Pois a submissão da política a uma moral particular estabelecida, sobretudo quando associada a crenças religiosas levadas ao extremo e ao fanatismo, desserve a justiça no sentido de felicidade dos homens, tanto em geral no seu mundo comum como na singularidade de sua vida particular.

Com isto não se defende a tese da independência radical da política em relação à ética; o horizonte, digamos, do progresso civilizatório nos encaminha a postular e tentar construir uma ética na política, ou melhor, uma ética da política, que leve em consideração o que é próprio da política. A dimensão política entendida como aquela dimensão da vida humana e social que visa a estabelecer as condições de convívio coletivo para possibilitar a justiça, a felicidade, a liberdade dos cidadãos; e a cidadania incluindo cada vez mais a totalidade dos indivíduos que fazem parte de um povo. A ética da política exige que seja visado ao bem comum antes do particular, ao interesse geral e generoso antes do próprio e egoísta; que se busquem os bens particulares e interesses singulares só na medida em que se harmonizem com os princípios da justiça e do bem comum. A compreensão da necessidade de harmonia entre bem particular e bem público, de instaurar uma justa ética na política, não deixa esquecer, esconder nem confundir as especificidades do ético e do político. A modernidade lutou muito, na luz e na sombra, para perceber e fazer respeitar tais especificidades – de um lado, a da ética que respeita a liberdade e pela qual se busca a correção individual, como virtude pessoal; de outro, a da política, em que se institui a convivência pacífica, como virtude coletiva.

O terreno da crítica à política em nome da moral é hoje ainda mais propício e fértil porque se apóia na insatisfação geral contemporânea com a política e a democracia moderna. Sociólogos e cientistas políticos da atualidade constatam como presente nas democracias mais estabelecidas, ainda que funcionem bastante bem como estados formalmente democráticos, este estado de espírito um tanto surpreendente, de desencanto com a política, presente mesmo entre as gerações mais novas. A participação nas eleições, onde não for obrigatória, não é muito forte nas democracias mais tradicionais, como na Europa ocidental ou nos EEUU da América do Norte. Alguns analistas – como o jurista e filósofo italiano Norberto Bobbio – sugerem que esta insatisfação geral com a política se deva à distância entre a realidade das democracias representativas das sociedades do presente e o modelo clássico de democracia direta, que continuaria a funcionar em nível imaginário como o autêntico modelo do regime democrático. Nas modernas democracias representativas, na maioria das situações, os representantes eleitos, profissionais da política, ocupam um lugar que o cidadão talvez aspirasse a ocupar; porém, enquanto os representam, parecem usurpar o lugar próprio dos cidadãos.

Convém lembrar também que, nas democracias representativas da atualidade, entre os cidadãos e seus representantes, está instalado um imenso aparato formado pelas redes dos meios de comunicação e da publicidade. Ante a revelação dos milhões legais e ilegais que circulam neste meio dos bastidores das campanhas eleitorais, a opinião pública ingênua se escandaliza, e a mais refletida a assiste perplexa, sem saber que pensar; enquanto sob a máscara da bandeira da ética se alojam as paixões e os interesses da contenda partidária.

As revelações de irregularidades que vêm a público e causam escândalo também o fazem porque contrariam os sonhos de um Brasil mais justo, cara utopia das gerações que lutaram por democratizar o país. As utopias não morrem; utopias são um dado antropológico; os homens, seres de desejo e impulso, sonham acordados e movem o mundo também pela força de seus sonhos. Acontece que os sonhos humanos coletivos se mostram ora abstratos, ou seja, belas quimeras irrealizáveis, ora concretos, quer dizer, capazes de influenciar a transformação da realidade – para usar o vocabulário de Ernst Bloch, o filósofo da utopia cuja obra-prima acaba de ser traduzida para o Brasil1 . Mesmo as utopias abstratas são inspiradoras e podem impulsionar melhorias, ainda que nunca sejam realizadas tal qual foram sonhadas; sonhar e exigir a ética na política é um bom sonho, uma inspiração correta para as ações dos cidadãos, muito embora seja irrealizável se entendido como a instalação total da rígida e permanente perfeição nas ações políticas. Por outro lado, nem todas as utopias são impossíveis e, quando concretas, as utopias antecipam possibilidades da realidade. Podemos perceber em ação na história utopias concretas que se apóiam nas aberturas da realidade, nas brechas para o novo, e oferecem um caráter de compromisso ético, porque exigem adesão e esforço.

Ante nossa paradoxal sociedade brasileira, na qual a história deixou tantas marcas de injustiça, a vitalidade e capacidade de evoluir é evidente, salta aos olhos de todos o compromisso ético que obriga diante da realidade política, independente das vicissitudes do presente, continuar trabalhando para a construção de uma democracia respeitadora dos direitos humanos e companheira de uma economia mais solidária – além de próspera, sustentável e respeitosa da natureza –, para uma sociedade mais feliz; não apenas igualitária do ponto de vista legal, com mais justiça social, melhor distribuição de renda, menos violência. Esta utopia concreta continua a lutar por se realizar em nosso país, com dificuldade. É uma utopia viável, porque materialmente as riquezas brasileiras a fazem possível e as aspirações populares a demonstram desejada. Esperemos que o núcleo de paixões e interesses em contenda no momento político se deixe medir pela responsabilidade patriótica, tendo no horizonte esta utopia que permanece válida. Este me parece ser o modo de aproximar a política brasileira do caminho ético, aspiração que se demonstra de consenso nacional.

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