EDUCAÇÃO

Avó eletrônica ainda é campeã de audiência

Ulisses Nenê / Publicado em 4 de outubro de 2005

A hora é do computador, o equipamento símbolo da virada do século, paixão da gurizada, que parece já nascer raciocinando na linguagem binária. Mas a televisão, uma invenção de quase 80 anos, ainda é a mídia que mais preocupa pais e educadores, pois o tempo passa e ela ocupa cada vez mais espaço no período de formação dos pequenos cidadãos e cidadãs. Sobre isso, pesquisa divulgada em julho pela PUCRS, realizada pela psiquiatra e professora Nina Rosa Furtado, numa escola de classe média da Capital, revelou que a maioria das crianças e adolescentes vê televisão totalmente só (64,8%), em média três a cinco horas (49,4%) ou mais (14,2%) por dia. Vivenciam muito cedo uma enorme solidão, compartilhada apenas com a octogenária “babá eletrônica”, e por que não, “avó eletrônica”. Especialistas no assunto confirmam que essa é a realidade predominante no Brasil e exterior.

Com o apoio da direção do Colégio Marista José Otão e a participação da professora Tatiana Franarin, como co-autora, foi aplicado um questionário de 15 perguntas a 176 alunos dos 7 aos 17 anos, em 2004. O dado mais surpreendente e que “saltou aos olhos” para elas foi a solidão da maioria destas crianças e adolescentes, que vêem televisão durante várias horas diárias sozinhas, sem nenhum adulto, pai ou mãe em casa. Inte-ragem com o aparelho sem qualquer apoio, com suas fragilidades, ansiedades e valores ainda não totalmente formados. “A quem essa criança terá oportunidade de perguntar: isso que estou vendo é bom ou ruim?”, questiona Nina Rosa, presidente do Centro de Estudos de Psiquiátricos do Hospital São Lucas da PUC.

Outro aspecto que impressiona, acrescenta, é a solidão em si dessas crianças, que não têm com quem conversar, brincar, ouvir historinhas. “Não sei se é horrível, mas me chama a atenção que numa idade onde o companheirismo, o grupo, a atividade motora é tão importante, principalmente até os 12 ou 13 anos, elas não estejam fazendo isso.” A psiquiatra compreende que essa situação nasce da necessidade dos pais de trabalhar, da falta de tempo, e ressalta que o seu objetivo não é culpar as famílias, mas levar a uma reflexão e à busca de soluções ou formas de amenizar o problema. Porque é um problema.

As conseqüências não foram avaliadas pela pesquisa e nem a qualidade da programação, mas a forma como estes receptores vêem a TV. Há indícios em outros estudos, porém, que apontam para o crescimento da obesidade infantil, falta de tonicidade muscular, hipotonia (flacidez dos músculos), problemas de motricidade, flexibilidade e coordenação motora, já que essa é a época em que se desenvolvem tais habilidades, através das brincadeiras e do esporte. Passando várias horas em frente à televisão, sentadas ou até mesmo deitadas, o único exercício que os meninos e meninas fazem é buscar o refrigerante, os salgadinhos, desenvolvendo maus hábitos de alimentação que vão agravar os problemas físicos.

“Emocionalmente é mais complicado prever os resultados de tanta convivência com a babá eletrônica”, diz a psiquiatra. Um destaque, neste sentido, foi a escolha pela maioria do Bob Esponja como o personagem mais querido na faixa até os 10 anos. Ela vê isso como uma necessidade que as crianças estão tendo de fantasiar identificando-se com um personagem mais doce, ingênuo: “Achei isso interessante, porque se salienta tanto o aspecto da agressividade e da violência na TV, e parece que as crianças estão identificadas não com a violência, mas com um herói que não é competitivo, que tem amigos bem diferentes, uma estrela, um polvo, e que trabalha a aceitação das diferenças”.

Quanto ao tempo assistindo à TV (três a cinco horas ou mais), “é um exagero”, diz a psiquiatra. Quase 50% dos alunos e alunas disseram também que têm quatro ou mais aparelhos de televisão em casa. Os programas preferidos das crianças, até 10 anos, são os desenhos (Bob Esponja), novelas e programas infantis (shows, seriados, Xuxa, Angélica e outros). O aparecimento das novelas em segundo lugar nesta faixa de idade, inclusive a novela das oito, é preocupante porque inclui estímulos sexuais e agressivos que a criança muitas vezes não está emocionalmente preparada para receber, ainda mais sozinha, diz a psiquiatra.

Todo tempo ganho é válido

A pesquisadora Nina Rosa Furtado tem feito palestras sobre o trabalho a convite de escolas e observa que os pais estão muito ansiosos em relação a este assunto. Ela sugere, entre outras possibilidades, que busquem criar novos hábitos de convivência com os filhos, que encontrem brechas nas suas agendas lotadas para ficar mais tempo com eles, durante a semana – mesmo que não seja todos os dias – e nos fins de semana. Toda hora ganha para isso é válida. Também questiona se são necessários tantos televisores em casa, com cada um no seu quarto vendo seu programa preferido. “Por que não chegar a um acordo e verem um programa juntos?”, indaga. “Adoro quando falta luz lá em casa, porque aí a gente senta em volta da mesa para conversar”, disse uma menina de 10 anos em uma das suas palestras.

Por fim, ela entende que as escolas não devem mais fugir do assunto. Também não adianta proibir que os alunos e alunas falem de televisão no colégio. Os educadores, segundo a psiquiatra, precisam conversar nas escolas com as crianças e adolescentes sobre o que eles assistem. Essa opinião é compartilhada pela jornalista, doutora em Educação e professora da Faculdade de Educação da Ufrgs, Rosa Fischer. Mas ela entende que é necessário preparar os professores e professoras para que eles possam ensinar os alunos a decifrar a linguagem da televisão e os meandros da produção de seus programas. Uma das disciplinas que ela leciona na faculdade é justamente Tecnologia da Educação: ciência e técnica, na qual o objetivo é estudar a pedagogia da mídia.

Rosa já trabalhou na TV Educativa do Rio de Janeiro, pesquisou e tem livros publicados sobre a questão. Algo que chamou a atenção dela num trabalho foi que as crianças sabiam tudo, tudo mesmo, sobre a programação, viam inclusive a Sexta Sexy, um horário pornográfico da televisão da época. Na sua pesquisa mais recente, ela gravou programas como Big Brother, Malhação, reportagens, e levou-os para discussão com estudantes de escolas públicas e privadas. “Vi o quanto essa gurizada tem o que dizer e o quanto são críticos se o adulto sentar para conversar com eles, crianças e jovens. O problema é que nem pais ou escola estão fazendo isso”, alerta.

Ela critica a má qualidade do que é oferecido pelos canais para infância e juventude e acrescenta que a sociedade civil precisa se dar conta de que pode se organizar para reivindicar uma programação melhor na televisão.

Nove horas de televisão por dia

Um dos maiores estudiosos do assunto no país, pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC, o professor Pedrinho Guareschi coordenou uma pesquisa concluída ano passado em duas comunidades populares de Porto Alegre, Vila Joana D’Arc e Vila Pinto. O resultado é espantoso: as crianças ficam, em média, nove horas por dia diante da TV. “Nós duvidamos desses dados, então retornamos para pesquisar mais tempo e com mais detalhes, e confirmamos que é isso mesmo, as crianças ficam em torno de nove horas ao redor da TV porque as famílias têm medo de deixar os filhos saírem na rua”, conta. Uma diferença é que geralmente são vários irmãos, conversando, brincando e vendo televisão ao mesmo tempo.

Mestre e doutor em Psicologia Social e Comunicação, dois pós-doutorados no exterior (Wisconsin e Cambridge) sobre temas ligados à Comunicação, vários livros publicados, Guareschi participou de uma discussão sobre TV e criança na London School of Economics and Political Science em 2002, com base em estudos na Inglaterra, Dinamarca e Suécia, na qual foram salientados efeitos da televisão que podem ser válidos para o Brasil, acredita. Um deles é que a socialização das crianças, hoje, se dá em grande parte através da mídia, como se o aparelho de televisão fosse mais um elemento da família, um irmão.

Outro resultado da influência televisiva sobre as crianças apontou, relata Guareschi, “um consumismo que talvez elas levem para a vida toda”. Ele afirma que em países como Suíça, Suécia, Canadá e muitos outros a propaganda para crianças na televisão é simplesmente proibida. Já no Brasil, os programas para as crianças estão cheios de propaganda e isso é escandaloso, acusa: “Isso é um crime porque a criança não tem consciência para se defender da propaganda, é alguém inerte, desarmado, e estão ferindo exatamente alguém vulnerável, absolutamente vulnerável”, critica.

A presença demasiada da televisão também leva à individualização, continua, pois alguém acostumado a ficar sozinho frente a uma TV acaba se criando dentro de uma perspectiva individualizada e sem laços comunitários ou sociais. Há ainda o fenômeno da globalização, em que a criança se abre para o mundo, o que é positivo, mas por outro lado perde referências culturais do seu país. Finalmente, outra conseqüência apontada é a privatização, com a internalização da idéia de que não existe o espaço público e que tudo é resolvido no espaço privado, na vida doméstica.

A solução que estes especialistas da London of School indicam como contraponto à influência da televisão é simples e direta: quanto menos televisão para as crianças, melhor. No Brasil, lamenta Guareschi, o poder da mídia vem se impondo a qualquer tentativa de se estabelecer regras às emissoras, como há pouco tempo quando o Ministério Público tentou impedir a participação de crianças em novelas e não conseguiu. Diante dessa realidade, em que os pais estão ausentes, em geral, e as crianças assistem à muita televisão, ele entende que a escola é a única saída, alfabetizando professores e alunos para que decifrem e entendam como funciona a mídia. “As escolas não se ocupam disso, estão dez anos atrasadas, é uma vergonha”, lamenta Guareschi, que em outubro lança o livro Mídia, educação e cidadão, pela Editora Vozes.

TV versus computador

Quase ao mesmo tempo em que era divulgada a pesquisa da PUC, foi publicado pela AFP, agência internacional de notícias, o resultado de um estudo da Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health e da Stanford University, Estados Unidos. Ele estabelece uma relação entre os meios de comunicação presentes nas casas e o rendimento escolar. E conclui que televisão no quarto prejudica os estudos. As crianças de 8 anos pesquisadas com TV nos seus quartos tiveram resultados inferiores em oito pontos em matemática e inferiores em sete pontos em leitura, na comparação com coleguinhas sem aparelho no dormitório, diz a notícia. Já quem tem um computador em casa apresentou resultados superiores em seis pontos em matemática e em quatro pontos em leitura, comparadas àquelas sem computador. A pior combinação para as crianças, constatou-se, é a televisão no quarto e a ausência de computador.

Menos é mais

Mesmo na escola onde foi realizada a pesquisa da psiquiatra Nina Rosa Furtado, é possível encontrar muitas famílias que se esforçam para garantir uma relação equilibrada dos filhos com a televisão, evitando a solidão dos pequenos detectada pelo estudo. É o caso da enfermeira Maria de Fátima V. Rabaioli e o contador Rudi Rabaioli, que estabelecem horários para a filha única, Bruna, 10 anos, assistir à TV e selecionam a programação. Preferencialmente desenhos, telejornais, programas educativos.

Horários mais pesados, como Maria de Fátima chama, Bruna só vê com a presença dos pais: “A TV é importantíssima, mas ao mesmo tempo invade a família com programas muito pesados, como a violência, e não gosto que ela assista a isso. Não podemos proibir, mas temos que restringir, processar, direcionar para uma programação sadia e buscar o diálogo para que a televisão não substitua a família”.

O pai fica em casa até Bruna sair para atividades extracur-riculares, de manhã, e um dos dois sempre está com ela no almoço. Quando a menina volta da escola, à tarde, a mãe já está em casa. “Ela é nossa prioridade”, define Maria de Fátima.

A personal trainer Rosane Maria Jaenisch Barreto já recusou empregos para poder ficar com os filhos, Fabrício, 9 anos, e Mariana, 5. Atende seus clientes no estúdio que montou em casa, e o marido, engenheiro José Luis Carvalho Barreto, tem escritório perto de casa. Coisa rara: assim, todos almoçam juntos. “Nós parecemos os Flintstones”, brinca José Luis.

Este ano ela decidiu restringir o horário de televisão do Fabrício, que assistia desde que acordava até o almoço. Agora é das 11 horas ao meio-dia; já Mariana não gosta de televisão. Para ocupar o tempo livre das crianças a mãe trabalha cedo e passa o resto da manhã envolvida nas brincadeiras.

José Luis leva e traz o filho das aulas de judô e ajuda nos temas à noite. O pai conta que eles não têm TV a cabo. Não fazem nenhuma questão, assim sobra mais tempo para o convívio da família. Sem saber do estudo da London of School, eles adotam a política do “quanto menos TV, melhor”.

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