OPINIÃO

Racionalidade e tolerância

Altair Alberto Fávero1, Cláudio Almir Dalbosco2, Telmo Marcon3 / Publicado em 4 de outubro de 2005

O debate sobre racionalidade e tolerância é um tema candente na atualidade, especialmente nesse início de milênio. Os avanços e as conquistas tecnológicas expõem de forma clara as potencialidades humanas, mas, ao mesmo tempo, evidenciam suas contradições e limites, multiplicando-se cotidianamente em práticas de exclusão social, econômica, política, ideológica, cultural e religiosa. Da mesma forma que aparatos tecnológicos encurtam espaços e cruzam de forma objetiva e rápida temporalidades, tornando presença realidades que há pouco pareciam impossíveis, as relações entre pessoas, povos e nações, que deveriam ser humanas e humanizadoras, são, por vezes, carregadas de ódio, de segregação e de intolerância. Neste sentido, como não se cansaram de nos alertar muitos intelectuais do século passado, o avanço tecnológico não só pode não coincidir com práticas sociais humanizadoras, como também tendeu a negá-las histórica e politicamente. Isso nos serve ao menos para manter nossos olhos abertos sobre a importância de uma atitude mais cética e cautelosa frente a uma interação automática entre poderio técnico-científico e relações humanas tolerantes e democráticas.

A exigência fundamental está, de um lado, em reconhecer a diferença, não como forma de legitimar práticas e posturas que buscam justificar a superioridade de uns sobre os outros, mas como possibilidade de convivência e de crescimento na pluralidade e, de outro, em ver na racionalidade não uma dimensão única e instância legitimadora de relações de dominação, e sim capacidade de compreender a história e nela intervir para construir relações humanas na perspectiva da cidadania. No entanto, não faltam, na atualidade, tentativas e discursos que responsabilizam a razão por todos os males existentes no mundo. Sistematicamente, repetem-se argumentos de que a racionalidade moderna separou dualisticamente a razão dos sentimentos, a razão da corporeidade e, com isso, fragmentou a ação humana, gerando uma série de conseqüências culturais e econômicas. No entanto, tais tentativas apressam-se em simplificar os horizontes: superdimensionam os sentimentos e as emoções, desqua-lificando a razão enquanto realização humana de decidir e propor organizadamente possibilidades solidárias de convivência. Seu conteúdo, quando não submetido ao espaço público da discussão, pode levar a desresponsabilização da ação humana frente a problemas humano-sociais universais e, por outro lado, acentuar atitudes de vida narcisistas e individualistas.

Contudo, ao se falar em racionalidade, é preciso ao menos fazer uma distinção preliminar entre um sentido amplo que abrange a capacidade humana dialógico-reflexiva e outro que se reduz ao procedimento metódico-instrumental, que está na base da lógica orientada pelo dinheiro e pelo poder e que termina, em última instância, por legitimar relações humanas de dominação e exclusão. Ora, a própria intolerância também brota deste reducionismo racional e talvez seja uma de suas expressões mais típicas, configurando um quadro de total desrespeito e de não-reconhecimento de uns pelos outros, de algumas civilizações pelas outras. Ora, não é um discurso genérico que pretende combater a racionalidade como um todo, sem fazer as devidas distinções, que pode assumir um perfil mais apropriado de crítica à intolerância. Neste sentido, o combate à racionalidade pode gerar mais irracionalismo e, com ele, mais intolerância.

Mas não podemos ver a racionalidade só como um fenômeno abstrato da ação humana. Ela objetiva-se, faz-se história e transforma-se em socialização ou, melhor dito, só é possível mediante socialização. Visto sob esta ótica, a sociabilidade humana caracterizou-se, historicamente, pelo esforço em desenvolver de diferentes maneiras, em tempos e lugares distintos do planeta, variadas formas de adaptação, criando complexos modos de manifestações culturais e religiosas, destacando-se, neste seu processo, a dificuldade de conviver com sua própria diversidade e de respeitar suas próprias diferenças. A história da espécie humana e, de modo particular, a história da cultura ocidental pode ser vista, nesse sentido, como um processo constante de racionalização que torna possível tanto o surgimento de novas formas de manifestações culturais como também a consolidação ou a destruição de tantas outras existentes.

Nesse contexto, gestos concretos de solidariedade, de tolerância e de reconhecimento da plura-lidade de formas humanas de vida também foram desenvolvidos como meio real de superação da imposição arrogante e autoritária da cultura do mais forte. Infelizmente, tal tendência arrogante vem se intensificando com o desenvolvimento técnico-científico moderno e com o monopólio e a hegemonia das diferentes formas racionais e secularizadas assumidas pela cultura ocidental moderna. Desse modo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que significa, sem dúvida, um avanço no reconhecimento da diversidade da vida humana, é acompanhada, simultaneamente, pela intervenção imperialista de países e continentes uns sobre outros, impondo como unicamente correto seus modos de ser e viver.

Essa tensão que perpassa a sociabilidade humana em nível macro-social entre a tentativa de construir formas solidárias e democráticas de vida, respeitando as diferenças, e a tendência de impor autoritariamente valores também se apresenta de um modo micro-social nas relações diárias das pessoas. Ela está ligada, portanto, aos seus modos cotidianos de agir e de pensar, sendo resultado do entrelaçamento de processos formativos locais e universais. Sendo assim, não estamos livres, por exemplo, de agir precon-ceituosamente em nossa vida cotidiana, desrespeitando ou até mesmo aniquilando posições diferentes. E à educação coloca-se dentre outros desafios o de efetivar-se como inclusiva, na tentativa de superar discriminações de qualquer natureza.

É dentro desse amplo leque de questões que o debate sobre racionalidade e tolerância assume importância e atualidade. O II Seminário Internacional sobre Filosofia e Educação debate o tema numa dupla perspectiva: primeiro, reconstruindo em largos traços, por meio de conferências, alguns aspectos do significado destes dois conceitos na tradição da Teoria Crítica e do Pragmatismo; segundo, analisando, por meio de debates em forma de mesas-redondas e comunicações, o desdobramento e a repercussão empírica destes conceitos no âmbito da relação entre pessoas, no convívio entre culturas diferentes e, especificamente, no âmbito das práticas sociais pedagógicas escolares e extra-escolares.

A ampliação da racionalidade humana e a defesa permanente da postura dialógica podem ser colocadas como uma das possibilidades fecundas para se enfrentar de forma construtiva os desafios que decorrem dos paradoxos do nosso tempo. Pensamos no diálogo não apenas como uma estratégia artificial capaz de dirimir situações de conflitos circunstanciais, mas como princípio fundante do próprio humano, como elemento capaz de nos tornar comunicativos em todas as situações. Nesse sentido, no campo das relações pedagógicas, tal possibilidade pode ser duplamente fortalecida por essa perspectiva: de um lado, o diálogo pode se constituir como fonte geradora de racionalidade e tolerância; de outro, ser o exercício da racionalida-de e da tolerância na construção da cidadania, da emancipação e do respeito à pluralidade. Em um mundo plural, cada vez mais interdependente, o processo de educação deverá ser capaz de desempenhar um papel central e intransferível, na prevenção e na solução de conflitos por meio do exercício do pensamento racional, que possibilite a abertura de novos caminhos para pensar a relação do homem com o mundo e com os semelhantes. As instituições educativas, enquanto lugar de socialização das informações e de promoção da produção do conhecimento, deveriam ser, também, o espaço dialógico em que são explicitados e analisados os problemas que marcam nosso tempo com uma postura aberta, tolerante e democrática.

O diálogo pela sua natureza e significação etimológica pressupõe a existência do diferente. Somente há diálogo quando posições, idéias e argumentos se predispõem ao confronto e, por conseguinte, reconhecem-se aprendizes. A escola enquanto lugar por excelência da aprendizagem pressupõe necessariamente a prática do diálogo como ferramenta e como princípio educativo na construção de espaços de socialização/produção de saberes e de experiência de cidadania. Entretanto, o que percebemos no interior de muitas instituições de ensino são práticas pedagógicas antidialógicas e antidemocráticas, disfarçadas em discursos sedutores que prometem resolver os dilemas de nosso tempo com soluções irracionais e fundamentalistas.

1 Mestre em Filosofia pela PUCRS e doutorando em Filosofia da Educação pela Ufrgs.
2 Doutor em Filosofia pela Universidade de Kassel – Alemanha.
3 Doutor em História Social pela PUCSP.

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