OPINIÃO

As artes de governar

Por Jorge Barcellos / Publicado em 23 de julho de 2006

Mal percebemos essa primeira impressão de que a política cessa de ser um mistério, ela não busca mais as trevas para esconder sua deformidade; não tem mais necessidade de artifícios para escorar sua fraqueza vacilante; longe de cobrir-se de um véu espesso, ela põe-se à vista, coloca-se no meio das nações.” A citação é do fisiocrata Lê Mercier de la Rivière em sua obra A ordem natural e essencial das sociedades políticas, publicada em 1767. Esta é uma das inúmeras passagens relatadas por Michel Senellart em As artes de governar, que a faz leitura obrigatória de todos os que se interessam por política. Analisando os primeiros séculos da Idade Média ao apogeu da época clássica, Senellart retoma nos manuais de política e prudência as práticas e fins governamentais e, numa linha inspirada nos trabalhos de Michel Foucault, os regimes de visibilidade que os governam. A idéia de corrigir os homens cede espaço ao papel do governante de conduzir a multidão numa complexa evolução que não se faz sem resistências, deslocamentos, misturas, rupturas e inovação. Uma exploração das estruturas arcaicas das formas de poder, eis numa palavra o que nos oferece a leitura de Senellart.

O autor é desconhecido no país, mas com uma obra respeitável. Nascido em 1953, é professor de Filosofia Política em Lyon, França. Suas obras sobre Ma-quiavel não receberão tradução, exceção à Da filosofia moral e política: a felicidade e o útil (Ed. Unisinos, 2004). Tornou-se conhecido como discípulo de Michel Foucault, de quem organizou Segurança, território e população (1978) e Nascimento da Biopolítica (1979). Atualmente, organiza o volume Do governo dos vivos (seminário de Foucault de 1980), o que tem inspirado suas pesquisas sobre as relações entre guerra e política no discurso filosófico. Esta trajetória permitiu-lhe que reconstituísse ao longo da história as concepções de governo, ou melhor, modos de governo ou regimem. Ele os enumera: como condução (dirigere), correção (corrigere), da razão (moderamen) e de si mesmo (autexousion, ou governo de si).

A obra de Senellart não é um tratado político, mas um delicioso percurso da história da literatura dedicada às “artes de governar”. Ao investigar os discursos que serviam para justificar, nas malhas administrativas, a gênese do Estado Moderno, Senellart encontra um gênero discursivo, parte da história das idéias ou do pensamento, lugar onde melhor pode ser lido o estudo do autor. Um estudo de alta erudição, sem dúvida, mas rico em detalhes sobre as origens do político e da política nas diferentes versões da arte de governar. De Isidoro de Sevilha a Santo Agostinho, de Jean de Salisbury aos teóricos da Razão de Estado, o autor apresenta as diferentes visões das relações entre governo e Estado. O primeiro só tem seu alcance definido a partir de seu exercício e não de uma unidade administrativa, jurídica e territorial. Ao contrário do que possa parecer, o governo não pressupõe o aparelho do Estado, mas sua origem remonta “as artes de governar”, que não são privilégio do político, mas do campo “espiritual, moral, pedagógico, técnico”. Nada mais foucaultiano.

Primeiro lugar a investigar: as formas do regimen animarum, isto é, o governo ou condução das almas, que não usa a força, e que é substituído pelo regimen político, que admite o uso da força. A base encontra-se em Santo Agostinho, segundo Senellart, para quem é central a idéia de que é preciso corrigir os efeitos do pecado original, dominando a carne. O fim primeiro da idéia da arte de governar é a de utilidade pública e unidade cristã, que emerge com a retomada dos textos de Aristóteles por São Tomás e, após, por Jean de Salisbury. Diz Maria Isabel Limongi, uma das principais estudiosas brasileiras da obra do autor: “O regere se articula aqui ao regnum”. A idéia de poder pastoral, herdada de Michel Foucault, tem o objetivo de compreender os fenômenos políticos de massa a partir do cristianismo, mesmo mote das obras de Zizek, destinadas à compreensão do cristianismo a partir do olho da psicanálise, como O frágil absoluto. Diz Foucault, “é preciso pensar o poder colocando-o fora do modelo do Leviatã, fora do campo delimitado pela soberania jurídica e pela instituição estatal. É preciso estudá-lo a partir das técnicas e táticas de dominação”. Que o leitor saiba de antemão: não se trata da exegese das técnicas de dominação, mas de literatura clássica sobre as artes de governar.

Boa parte destas reflexões vem da inspiração dada por Foucault no seminário “A governabili-dade”, proferido pelo filósofo no Colégio de France, em 1978, e que ainda inspira estudos e dissertações. Em seu entendimento, ao contrário de Maquiavel, o fim do poder não é circular – manter-se no poder –, mas fins particulares ligados ao ge-renciamento da população para a sua prosperidade e aspirações. Para Foucault, “esta razão de Estado constituiu para o desenvolvimento da arte do governo uma espécie de obstáculo que durou até o início do século XVIII”. A diferença entre Foucault e Senellart é definida por Limongi: “O esquema de Senellart é, no entanto, outro. Ao pensar a constituição do Estado no interior da história das artes de governar recuada até suas origens pa-trísticas, ele insiste não na oposição, mas nos compromissos conceituais que articulam teoria da soberania e um modo de governo que se pensa como disciplina e sistematização da vida social”.

O que torna particularmente interessante à abordagem de Senellart é a emergência de um regime de visibilidade no campo político e que sugere linhas de interpretação à política contemporânea. Para Senellart, vemos a passagem de uma concepção da arte de governar em que o príncipe é o espelho terreno da virtude. Essa concepção dá espaço à outra cujo princípio é a visibilidade do soberano que também é a da separação entre o saber comum e o saber político. Para justificá-lo, o autor usa como referência a obra As viagens de Gulliver, na passagem em que o rei de Brobdingnag, o país dos gigantes, conhece o extraordinário poder da pólvora e a recusa. A utopia de Swift não exorciza a força, sentencia-a. Diz Limongi a respeito: “O príncipe não é mais um espelho da virtude e um exemplo a ser visto, mas aquele que tudo vê”. A exigência de publicidade e transparência das Luzes inscreve a política num campo de visibilidade, racionalização da vida social que é tornada objeto de governo.

Inspirado nas Políticas de Justo Lipsio, Senellart vê o abandono da virtuosidade do príncipe pela adoção do segredo como elemento do cálculo político. O segredo designa as formas regulares de circulação de informação entre o príncipe e seus subordinados, modo de valorizar a eficácia do poder. Uma questão que se coloca até hoje, já que a política contemporânea afundou-se na publicidade, e as sucessivas ondas de denúncias vêm trazer a público aquilo que não apenas corrupção, era “segredo” de Estado. As artes de governar pode ser assim, além de um estudo erudito, um inspirador para os tempos que correm e que fariam arrepiar até mesmo Maquiavel.

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