MOVIMENTO

Em pauta, a pobreza

Por Clarinha Glock / Publicado em 23 de julho de 2006

Montreal, sede do Grande Prêmio de Fórmula 1 do Canadá e de um festival internacional de jazz, cidade que tem um shopping subterrâneo para a população enfrentar o frio do inverno, foi palco de um encontro sui generis sobre pobreza. A 11ª Conferência da Rede Internacional de Pu-blicações de Rua (INSP – International Network of Street Papers), realizada de 8 a 10 de junho, reuniu jornalistas, ex-moradores de rua, psicólogos, artistas, sociólogos e tra-balhadores sociais para discutir alternativas a milhares de pessoas em todo o mundo excluídas do direito à moradia, à saúde, à educação e ao respeito da sociedade em geral.

O encontro mostrou que a desigualdade social não tem fronteiras e o título de “país desenvolvido” não é garantia de bem-estar para todos. Estavam lá representantes de revistas e jornais vendidos por pessoas em situação de rua ou de pobreza dos mais diferentes lugares, desde Namíbia, Macedônia até Escócia, Estados Unidos, Áustria, Inglaterra, Holanda, Itália, Suíça, Argentina. Do Brasil, participaram os integrantes da revista Ocas, que circula em São Paulo e no Rio de Janeiro, e do jornal Boca de Rua, de Porto Alegre.

No Brasil, a rua é uma opção desde muito cedo – crianças com menos de 10 anos saem de casa fugindo da violência e do abuso sexual. Em São Paulo, estatísticas indicam que os migrantes também contabilizam uma boa parte dos moradores de rua. Mas, na maioria dos países ricos, geralmente é o desemprego que faz jovens e adultos perderem casa, família, dignidade.

Tudo é pobreza, a diferença é a forma como ela se apresenta. Em São Paulo e em Porto Alegre, os representantes da Ocas e do Boca de Rua articulam a participação do povo da rua com as políticas públicas na forma de seminários e fazem denúncias freqüentes de violação aos direitos humanos. Ainda lutam para conseguir se auto-sustentar e sobrevivem com a ajuda de voluntários e algumas entidades. Na Alemanha, o processo está mais adiantado. Os vendedores da revista Biss contam com um sistema de moradia popular e 35 deles são empregados efetivamente da própria revista, com contrato e todos os direitos trabalhistas e de aposentadoria garantidos.

“São os vendedores o objetivo maior da revista. É neles que devemos pensar”, explicou Hildegard Denninger, da Biss. A revista oferece aos jovens uma espécie de ponte para que possam retomar suas vidas e conseguir um emprego. A venda sob contrato fica reservada para os mais velhos, que têm dificuldade de conseguir outro trabalho.

Na Biss não se pensa em recuperar a dignidade apenas em vida, mas até na morte. Doadores contribuem para um fundo que permite comprar flores, pagar a sepultura e render homenagens aos vendedores que morrerem. Através de seus doadores, a Biss contribui também com outras publicações da rede, como o Boca de Rua, que mantém assim um projeto de comunicação com crianças e adolescentes.

No Japão, a situação é mais preocupante, conta Miku Sano, da revista The Big Issue Japan, criada em setembro de 2003. As estatísticas apontam para 8 mil sem-teto em Osaka e cerca de 25 mil em todo o país, onde começa a preocupar a prostituição de adolescentes. A maior parte dos japoneses se tornou sem-teto porque perdeu o emprego devido à recessão econômica. O governo do Japão reconheceu oficialmente os moradores de rua como um problema social e aprovou uma lei em 2002 para dar suporte, mas não houve grandes avanços, a não ser em iniciativas locais paliativas. Em junho, o governo de Tóquio ofereceu ajuda de três anos de moradia aos sem-teto para tirá-los dos parques próximos à área metropolitana, e 1.190 pessoas foram alojadas em apartamentos.

INDIFERENÇA – “O principal obstáculo que separa os países ricos e os pobres é a indiferença”, acredita Miku. Por isso, um dos objetivos da revista é chamar a atenção sobre o problema social que vive o Japão. The Big Issue Japan tem 150 vendedores, cuja média de idade é 54 anos. Como acontece com outras publicações integrantes da INSP, ela funciona como um projeto de geração de renda e é um passo para a reconquista da auto-estima e da esperança para quem perdeu tudo ou quase tudo.

Jo Rogge, diretora da The Big Issue Namíbia, lembra que a sua revista é também uma referência para que a população em situação de rua tenha acesso a outros serviços. The Big Issue Namíbia existe desde 2002, tem 40 vendedores e tiragem de 3 mil exemplares. Há cerca de 400 pessoas em situação de rua na Capital, Windhoek. “A ajuda dos países ricos enviada à África não chega à população”, observa Jo. “Existem 250 mil órfãos da Aids/HIV nas comunidades pobres”, calcula. Na Namíbia, cada vez mais crianças vão para as ruas por causa da pobreza, do desemprego e do HIV/Aids. Os pais não podem pagar por uma escola e muitas famílias têm problemas com o consumo de álcool.

ÁFRICA – Em Cape Town, na África do Sul, a situação é semelhante. “Muitos não têm outra chance, vão para as ruas porque perderam seu emprego”, observa Richard Ishmail, da revista The Big Issue South Africa. Entre os vendedores, há desde adolescentes de 16 anos até veteranos de 75 anos. O país, que vai sediar de 24 a 30 de setembro deste ano o Campeonato Mundial de Futebol dos Sem-Teto (veja mais em http://www.streetsoccer.org/), está apostando no interesse da mídia no evento para chamar a atenção sobre a falta de chances para quem vive nas ruas.

Criatividade é a principal arma

Na batalha contra a pobreza, a criatividade é a principal arma. A revista L’Itinéraire, de Montreal, tem um grupo de jovens produzindo uma espécie de “vídeo-revista” sobre arte e temas sociais. A “Mag DVD” (magazine DVD) será vendida da mesma forma que as demais publicações de rua, com o objetivo de incentivar a inclusão destes jovens na sociedade. A primeira edição, chamada “Third eye to see things differently” (O terceiro olho para ver as coisas de forma diferente), vai ser lançada no final de agosto.

Os vendedores da L’Itinéraire têm, em média, entre 35 e 55 anos. Serge Lareult, um dos responsáveis pelo projeto, explica que muitos vão para a rua porque usam drogas, têm dificuldade de se manter no emprego, são excluídos pelo resto da população, ou acabam desenvolvendo alguma doença mental. Além disso, os aluguéis são muito caros na cidade. Em Montreal há pelo menos 18 mil pessoas em situação de rua, das quais 5 mil com menos de 30 anos de idade. “A cada ano há mais jovens nas ruas”, informa. Eles começam a sair de casa aos 15 anos de idade. Cerca de 50% não concluem o ensino secundário e não conseguem uma colocação no mercado de trabalho. “São jovens destruídos por dentro, sem objetivo na vida nem esperança no futuro”, diz Lareult.

O que é a INSP

A Rede Internacional de Publicações de Rua (International Network of Street Papers – INSP) reúne jornais e revistas vendidos nas ruas por pessoas sem casa, excluídas ou marginalizadas. O dinheiro da venda reverte para os vendedores e o trabalho é uma oportunidade de reinserção na sociedade. A partir da união com a Associação Norte-Americana de Publicações de Rua (North American Street Newspaper Association), este ano, a rede totaliza mais de 80 publicações em 28 países, com uma circulação anual de aproximadamente 35 milhões de exemplares.

A rede mantém um serviço de notícias que permite o intercâmbio de reportagens e fotos entre as publicações. E tem uma preocupação política de se fazer ouvir: quando, em agosto de 2004, sete moradores de rua foram assassinados em São Paulo, a INSP ajudou a denunciar o fato em nível mundial.

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