GERAL

Dizer que esquerda não existe é coisa da direita

Por César Fraga / Publicado em 22 de novembro de 2006


No dia 25 de outubro, a filósofa Marilena Chauí, 65, que dispensa maiores apresentações, concedeu uma coletiva para a imprensa alternativa e sindical nas dependências do Sinpro/RS, promovida pelo jornal Extra Classe (EC) e pelo Sindicato. Logo após falar com os jornalistas, ela conversou com exclusividade com o EC, quebrando o silêncio que vinha mantendo com os meios de comunicação nos últimos anos. De fato, ela ainda se nega a falar com jornalistas da grande imprensa. Há 20 anos, a intelectual não passava por Porto Alegre. Veio para falar na PUCRS sobre a inclusão da filosofia nos currículos do Ensino Médio, às vésperas da conclusão do segundo turno eleitoral. Aproveitou para polemizar a mídia e sua participação no processo político. Leia a seguir o que pensa uma das fundadoras do Partido dos Trabalhadores e uma das principais teóricas da Educação e da Política no Brasil. Chauí faz parte do Conselho Nacional de Educação e é professora da USP.

Extra Classe – Por qual motivo a senhora tem evitado a grande mídia, muito embora não tenha evitado o debate com atores políticos? Qual debate lhe interessa hoje?
Marilena Chauí
– Eu não evitei o debate, e o que me interessa hoje é esse que eu tenho feito no País inteiro a respeito da importância do campo democrático para as esquerdas brasileiras. As esquerdas não devem se dispersar, nem se fragmentar, e sim se reunir em torno de uma clara concepção do que é o campo democrático e de que o Governo Lula pode ser um elemento importante de referência para esse campo.

EC – A senhora refuta a tese de que não existe mais esquerda?
Marilena
– Refuto. Eu considero a afirmação de que não exista mais esquerda um argumento de direita. O debate que me interessa é a discussão a respeito dos problemas da comunicação e dos oligopólios midiáticos, o peso disso sobre a cultura, sobre a educação, sobre a vida social em geral e sobre a democracia. São esses os debates que me interessam. Não foi possível manter um contato com a grande mídia por dois motivos: de um lado, havia uma decisão por parte dos proprietários das grandes mídias de deformar tudo o que fosse dito. Tudo o que era dito era precedido ou sucedido por um comentário deformador. Ou a própria apresentação, no caso de entrevistas, por exemplo, já era descontextualizada, contendo cortes na fala. Foi uma atitude tão bárbara, terrorista e destrutiva que a mídia teve com os intelectuais de esquerda, que não foi possível insistir em manter a relação: dar entrevistas, ir aos programas de debate na televisão, no rádio, escrever em jornais. Era dar a cara para bater, ser desmoralizada, desconsiderada. Então, eu decidi que essa discussão deveria ser feita de outra maneira: através dos debates universitários, partidários, etc.

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EC – É esse o chamado silêncio dos intelectuais? Inclusive a senhora mandou uma carta aos seus alunos explicando suas posições. Como foi isso?
Marilena
– Em 2002, quando o Lula foi a São Paulo conversar com um grupo de intelectuais, entre eles, Chico de Oliveira e eu, a mídia chamou o evento de o Silêncio dos Inocentes, dizendo que Lula tinha vindo obter nosso silêncio. Como nós não ficamos silenciosos, a coisa se complicou, porque cada um de nós escreveu e debateu a situação. Em abril de 2003, o Adauto Novais, que realiza cursos há 25 anos, se reuniu lá em casa, como ele sempre faz antes dos cursos, para decidirmos o tema do curso que seria feito em 2004. Decidimos, em função da vida acadêmica dos intelectuais e da mídia, que valeria a pena um curso – quem deu o nome foi o Adauto – sobre o Silêncio dos Intelectuais. Quando o curso começou, já tinha ocorrido o caso Valdomiro Diniz. Eu havia escrito um artigo. Um jornalista da Folha comentou o artigo, me chamando de prostituta do Governo. A partir daquele momento, eu não me comunicava mais com a mídia, com nenhum veículo. Uma agressão desse tamanho é imperdoável. Como eu não dava entrevista para a Folha, esta passou a falar sobre o Silêncio dos Intelectuais. O que era uma loucura, porque tinha a Maria Vitória Denise falando, o Chico de Oliveira falando. Não tinha silêncio dos intelectuais. Tinha o meu silêncio. A Folha resolveu repercutir dessa maneira. Foi por isso que os meus alunos acreditaram. Foi por isso que eu escrevi a carta.

EC – Por isso outros jornais repercutiram a Folha?
Marilena
– Todos. Virou o silêncio dos intelectuais. Foi engraçado, pois eu ia aos debates da Fundação Perseu Abramo, e a Folha publicava a matéria com o título: “Silêncio dos Intelectuais. Marilena Chauí diz que (…)”. Eu nunca vi um silêncio tão falante, mais barulhento do que aquele. Era qualquer coisa: o que desse para eles falarem, eles falariam. Só que eu decidi que eu não iria me meter nisso, polemizar, nada.

EC – Sentindo na pele essa experiência, essa mesma situação nesse período, como a senhora avalia a disputa política por meio de denúncias e o aparente aparelhamento de setores da imprensa nacional a reboque dessa agenda?
Marilena
– As denúncias têm a finalidade de desfazer o plano da disputa simbólica, a imagem do PT e a imagem do Lula. Também têm como função impedir a verdadeira discussão política, pois substitui-se com o simulacro da denúncia a discussão política de fundo. Eles perceberam que era arriscado competir com as realizações do Governo. A propaganda eleitoral do segundo turno mostrou isso. Toda tentativa é feita no intuito de destruí-lo como pessoa, como figura pública e de destruir o partido. Isso tudo é inseparável da nitidez com que a luta de classes está sendo realizada no Brasil. Sempre vimos a luta de classes ser realizada através das greves, da luta pela Reforma Agrária. Nunca tínhamos visto a luta de classes ser realizada com a classe dominante tomando a cena para entrar na lista. A classe dominante apelou para o ataque.

EC – Isso tem a ver com o estágio aparentemente ainda frágil da democracia brasileira? O Brasil tem pouco mais de 20 anos de experiência democrática de fato. Em que estágio o Brasil se encontra hoje, em comparação aos outros países, com relação à sua própria história? Isso não é um vício dos períodos de autoritarismo a que essas oligarquias estão acostumadas?
Marilena
– Nós temos uma política que busca se realizar através de um conjunto de regras da democracia. Mas nós não temos uma sociedade democrática. O Brasil tem uma sociedade vertical autoritária. Uma sociedade hierárquica, oligárquica, violenta, que está dividida entre o privilégio e a carência. Portanto, uma sociedade na qual a esfera universal dos direitos não consegue se constituir, porque a carência e o privilégio são sempre particulares.

EC – Alimentar essa situação de carência também não traz benefícios para quem explora politicamente isso?
Marilena
– Para quem tem os privilégios. Você conserva a carência, conserva os privilégios, não cria a esfera dos direitos. Nossas dificuldades não decorrem do fato de institucionalmente a política democrática ser recente. Eu diria que, por um lado, isso é um problema. Mas o problema central é a estrutura da sociedade brasileira. De outro lado, um elemento importante deve ser levado em conta: o sistema político, o sistema partidário, o sistema eleitoral foram organizados pelo General Golberi no final da ditadura de modo a impedir efetivamente as operações de uma democracia representativa. Ou seja, a estrutura em que foi montada e que ainda vigora foi feita para garantir que a ARENA sempre superasse o MDB, mesmo que este ganhasse o Poder Executivo nos estados, por exemplo. O resultado disso é uma estrutura na qual aquele que ganha o Poder Executivo não tem maioria no Legislativo. Acho que temos problemas estruturais, sociais e do modo de operação da nossa democracia. Tudo isso é muito complicado.

EC – Nesse cenário, como é que o PT e o campo da esquerda deverão organizar-se passadas as eleições?
Marilena
– Essa organização deve ser feita em torno de um programa social e político comum a ser exigido dentro dos limites do realismo político. Não há como querer que o Governo, que não fez uma revolução, mas ganhou uma eleição, faça socialismo. Não há como. Temos de ser realistas.

EC – Não falta aos partidos de esquerda, alguns partidos mais radicais, essa compreensão ?
Marilena
– Falta. Primeiro, penso que essa é uma tarefa do campo democrático; fazer esse aprendizado. Segundo, erguer um conjunto de ações protetoras contra as tentativas de golpe que serão dadas, porque haverá. A extrema direita está se organizando não através dos militares, mas através do campo jurídico – a direita tentará o Golpe de Estado e o Impeachment. Nós [a esquerda] temos de nos organizar para alertar a sociedade e para criarmos instrumentos de autodefesa da própria esquerda.

EC – Que contribuição a Filosofia, como disciplina escolar, pode dar para a compreensão política das novas gerações?
Marilena
– Penso que é decisivo. Na medida em que a Filosofia tem uma vocação para a reflexão crítica, para o trabalho de desmontagem das aparências e ilusões e dedica-se à análise dos discursos e à interpretação dos discursos e suas significações, penso que a ela [a Filosofia] tem uma capacidade de ampliação de horizontes, de compreensão, reflexão e de crítica, que é fundamental para os adolescentes. Acho que nossa tarefa agora é formar os professores de Filosofia para o Ensino Médio.

EC – Como proceder para trazer a Filosofia do pedestal da intelectualidade para o campo de compreensão do cidadão comum?
Marilena
– Temos de fazer isso, pois passamos 30 anos sem ela [a Filosofia] no Ensino Médio. Teremos de cuidar agora da formação dos professores, da produção de material pedagógico e didático. Isso é fundamental.

EC – O surgimento de evidências no envolvimento de petistas nos escândalos dentro e fora do Governo abalou suas convicções?
Marilena
– Eu tive ataques de cólera, raiva e fúria contra a delinqüência e a burrice petista. Contra o autoritarismo e a arrogância das direções petistas, em especial o PT de São Paulo. Tive vontade de fazer um enfrentamento (cara a cara) com cada um deles e dizer: o mal que vocês fazem para o Brasil, para a sociedade brasileira, para a esquerda não está escrito. Em instante nenhum, eu penso que se trata de cobrir o sol com a peneira. O que eu acho inadmissível é aceitar o que a direita fez com isso. Ela [a direita] transformou essa picaretagem e delinqüência desses cretinos do PT em um crime maior.

EC – Como a generalização dos petistas e a partidarização dos delitos?
Marilena
– Essas direções petistas, particularmente paulistas. Não são as direções partidárias. São alguns grupos. Sobretudo deve-se levar em conta o seguinte: à medida que o PT cresceu e se tornou um partido vinculado a eleições, para funcionar como partido, não poderia mais funcionar da maneira como funcionava ao surgir: com o nosso voluntariado e com a dispersão dos núcleos de base e as tendências. O PT tinha de ter efetivamente uma estrutura organizacional capaz de fazer frente às lutas eleitorais. O problema é que, ao fazer isso, ele se engessou como máquina partidária que teve a seguinte peculiaridade: as direções no interior dessa máquina vinham do movimento sindical, do movimento social, da esquerda clandestina (gente com história política de esquerda para valer), que, entretanto, fez sua vida pelo Governo. Com exceção de um ou outro dirigente, como o Genuíno, por quem eu coloco as minhas duas mãos no fogo; acho que este foi irresponsável por não fiscalizar as finanças do partido. Afora isso, não tenho dúvidas a respeito da probidade pública do Genuíno. O partido começou a ser dirigido nacionalmente pelos funcionários da máquina, por pessoas que não têm uma história dentro da luta de esquerda (social, popular ou sindical), pessoas formadas na e pela máquina, além dos oportunistas que foram se acrescentando.

EC – E a refundação do PT?
Marilena
– Quando se fala na refundação do PT, depois dessa crise, não penso que a refundação do PT seja a reorganização da máquina partidária. Sua refundação é o desmanche dessa máquina. O PT nasceu porque no final
dos anos de 1970, começo dos 80, surgiram movimentos sindicais, movimentos sociais e populares, comunidades de base, intelectualidade de esquerda, enfim, um conjunto de movimentos que formou um sujeito histórico, social e político novo. Esse sujeito político coletivo novo se exprimiu com a criação do PT. O PT deu figura, forma e conteúdo a um sujeito histórico socialmente constituído no Brasil. A refundação do PT passa pela pergunta: quem é o novo sujeito político?

EC – Quem é esse novo sujeito?
Marilena
– Temos de procurá-lo, porque nós vimos o que o capitalismo neoliberal fez: destroçou a classe operária como nós a conhecíamos. Não é que a classe operária não exista. Se ela não existisse, não haveria capitalismo. O que se tem é a classe em si. E invisível. Você tem a nova forma assumida pela ciência e pela técnica. A composição da classe mudou. Não é apenas o fator da invisibilidade e sua falta de referencial de organização e de luta. A classe trabalhadora vai contar com pessoas que, na tradição da história do capitalismo, não faziam parte.

EC – A senhora fala sobre a dificuldade do PT de entender as questões simbólicas da cultura. Não passa pela questão simbólica o fato de essa nova classe operária não ter uma imagem representativa de si mesma?
Marilena
– Não sei responder. Acho que as formas de organização de luta de que ela [esquerda] dispunha perderam a eficácia. Os sindicatos desapareceram. Estes são menos eficazes do que foram. Acho que temos de fazer um trabalho parecido com o que foi feito no século XIX: descobrir o que era e é a classe para si para que ela possa se enxergar.

EC – A agenda política que tem sido debatida durante a disputa presidencial é a agenda que interessa para o país, conforme sua visão?
Marilena
– Sim. Mas, essa agenda vai além da questão conjuntural.

EC – Como a senhora vê a interferência do Estado Nacional na regulamentação do Ensino Público Superior?
Marilena
– De um lado, o Estado, ao produzir a regulamentação, cerceou, bloqueou o crescimento quantitativo e a explosão e expansão do setor privado na Educação, em todos os níveis, por várias maneiras: pelos instrumentos de avaliação, pela determinação de critérios para reconhecimento e credenciamento de instituições e de cursos, pelo bloqueio sistemático que foi feita à corrupção no ensino público. A Educação a Distância, como ela está, é impossível. Os lato sensus também não.Tenho brigado dentro do Conselho Nacional de Educação, que agora foi renovado. Agora, com 24 novos membros, isso vai ser renovado. Há grandes expectativas.

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