CULTURA

O homem que inventou a Ospa

Por José Weis / Publicado em 18 de junho de 2007

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Foto: René Cabrales

Foto: René Cabrales

Neste ano de 2007, a memória musical gaúcha será marcada pelo centenário de nascimento do maestro Pablo Komlós. Ele nasceu em Budapeste, passou por Montevidéu e fundou uma orquestra, a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre. Ao longo de sua vida passou por várias cidades e países, mas ficaram suas paixões, o canto lírico, a ópera e Beethoven. Muito mais do que ter sido o regente principal e diretor artístico da Ospa, Komlós foi, nas palavras do seu contemporâneo amigo e colega maestro Túlio Belardi, “quem fez a Orquestra e que morreu por ela”, emociona-se. Além da orquestra, fundada em 1950, Komlós também criou o Coral da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o Coro Sinfônico da Ospa e sua Escola de Música, em 1972. Essa entidade hoje recebe o nome de Conservatório Pablo Komlós e atravessa momentos difíceis. A Ospa decretou 2007 como o Ano Pablo Komlós.

Estava tudo pronto para a apresentação da ópera Carmen, de Georges Bizet, quando um jovem de 18 anos, recém-saído da Escola Real de Música Franz Liszt, de Budapeste, aguardava o início da função; ele era então correpetidor, ou seja, aquele instrumentista especializado no ensino do canto e que acompanha ao piano o solo de um cantor solista. Sempre atento, o jovem não perdia de vista os movimentos do maestro durante os ensaios.

Em cima da hora, uma inesperada ausência, o regente. Alguém perguntou se existia quem conhecesse a obra de Bizet para salvar a noite. “Eu conheço”, disse o jovem músico, com a audácia de quem tem ou já teve 18 anos na vida. Naquela noite de 1925, em plena Casa da Ópera da capital húngara, começava a carreira do maestro Pablo Komlós.

Baixa estatura, corpo atarracado, braços curtos, enfim um exemplo de um tipo físico que dificilmente seria um maestro à frente de uma orquestra, mas isso não incomodava de modo algum o apaixonado pela obra de Bizet, nascido Pàl Komlós Satoty, em 15 de setembro de 1907, na mesma pátria de Liszt, Bela Bartók e Zoltán Kodaly – com quem, aliás, estudara na escola de música.

A partir deste começo promissor, logo apareceram oportunidades Europa afora. Porém, independentemente do talento de Komlós, os tempos andavam bicudos – a Europa ainda não cicatrizara as feridas da Primeira Grande Guerra.

No final da década de 1930, desembarcavam em Montevidéu o maestro Pablo Komlós, mulher e filho. No vizinho Uruguai, ele viveu e permaneceu por cerca de dez anos, dirigindo óperas, oratórios e ora dando aulas de piano e canto. Em 1945, uma comitiva dirigiu-se até a capital uruguaia a fim de fazer um convite ao regente para vir a Porto Alegre dirigir uma temporada lírica. O grupo que foi até Komlós era formado por dirigentes do então Orpheão Rio-Grandense. Convite feito, convite aceito. E o maestro viria a Porto Alegre outras vezes, entre 1946 e 1949.

Nasce um sonho

Foi em uma dessas estadas na capital gaúcha que se fez o convite que era também um desafio ao Maestro. Que tal dirigir uma orquestra em Porto Alegre? No início, repetiram-se as dificuldades de adaptação de Pablo Komlós e família, afinal era uma nova cidade, um novo país e novos desafios. Porém, já se materializava um sonho que se chamou Orquestra Sinfônica de Porto Alegre. O escritor Erico Verissimo difundiu pelo mundo a feliz frase: “Eu venho de uma cidade que tem uma orquestra sinfônica”.

Muito bem, uma orquestra, mas quem iria tocar? Prático e ágil, Komlós começou a recrutar músicos que formavam as orquestras das rádios da cidade, leia-se Farroupilha e Gaúcha, e do sindicato dos músicos. Pragmático, conseguiu a dissolução da Banda Municipal.

E, com o luxuoso auxílio do maestro Salvador Campanella –, que por sinal terá o centenário de nascimento também registrado em 2007 – estava formado o primeiro grupo de músicos que, por sua vez, formavam a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, a estimada Ospa.

Ainda no começo de 1950, houve tempo para o primeiro concerto. O evento erudito foi no Theatro São Pedro, em 23 de março. No programa constavam obras de C.M. von Weber, Mendelssohn, Pulo Guedes – compositor gaúcho, Berlioz e Beethoven, deste último a Sinfonia N° 3, Heróica, nada mais representativo para uma ocasião histórica.

Ainda em 1950, Komlós, frente à recém-nascida Ospa, teve a ousadia de apresentar a Nona Sinfonia, de Beethoven; na seqüência também veio o oratório Messias, de Haydn. Coragem e determinação nunca fizeram falta ao Maestro.

Atravessando dificuldades, mas conquistando prestígio junto ao seu público, à crítica e à população em geral, A Ospa chegou a um impasse: como estava não seria possível continuar.

Até 1964, a Orquestra sobrevivia como sendo a Sociedade Orquestra Sinfônica de Porto Alegre e com a colaboração da comunidade local. Em 22 de janeiro de 1965, por meio do Decreto de Lei N° 17.173 do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, a Sociedade Orquestra Sinfônica de Porto Alegre foi encampada e passou a ser conhecida como Fundação Orquestra Sinfônica de Porto Alegre. Agora uma autarquia, os músicos e funcionários tiveram reconhecido seus direitos, mesmo os estrangeiros – que eram muitos, desde que se naturalizassem. Mais um ponto para Komlós.

Na década de 1970, a Ospa foi considerada mais de uma vez a melhor sinfônica do país. Foi neste período, inclusive, que a Orquestra percorreu diversas capitais do Brasil, levando o ciclo das nove sinfonias de Ludwig van Beethoven.

Belardi recorda feitos do maestro

Foi nesta época que o maestro Túlio Belardi, argentino que trabalhava com Komlós em Montevidéu, veio a convite de Komlós integrar-se à Ospa. Em 37 anos no Brasil, o hoje recém-aposentado maestro Túlio Belardi lembra que “Komlós tinha um ouvido absoluto”, observa – e também diz que o regente e diretor artístico da entidade tinha uma presença diante da orquestra que a dominava com um olhar.

São muitas as histórias que o maestro Belardi recorda, em especial as frases de Pablo Komlós. O diretor artístico da Ospa tinha um bom coração, mas, segundo Túlio, era rigoroso, exigente, severo muitas vezes.

Já um tanto debilitado pela doença, pôde dirigir a montagem e encenação da ópera Carmen, em 1976. Foi um grande acontecimento que mereceu uma edição totalmente dedicada à obra de Bizet e ao trabalho da Ospa. O maestro Pablo Komlós faleceu em março de 1978 e, conforme seu desejo, foi sepultado em Gramado, outra cidade que o adotara.

Túlio também ressalva que a única coisa que Komlós não conseguiu para a Ospa foi uma sede própria. Porém, ao que tudo indica, também este sonho está por se realizar. Em dezembro de 2006, a Câmara de Vereadores de Porto Alegre aprovou o Projeto de Lei que autoriza uma concessão de uma área de 13 mil metros quadrados localizada no Parque da Harmonia – Maurício Sirostky Sobrinho para a construção do Teatro da Ospa.

A Fundação Pablo Komlós, que equivale a uma Associação dos Amigos da Ospa, é a entidade que está encarregada de alocar recursos para a efetivação das obras por meio de leis de incentivo fiscal. “Faltam alguns detalhes, como um remanejo no projeto para adaptá-lo ao terreno”, informa o professor Luis Osvaldo Leite, presidente da Fundação que leva o nome do Maestro.

A arte como resistência

Todas as segundas e quartas-feiras, a partir das 15h, um grupo de alunos do Conservatório Pablo Komlós reúne-se no teatro da Ospa para ensaiar sob a orientação do professor Celau Moreira – violoncelista da Orquestra. O fato poderia até passar por mera rotina, não fosse a atual situação da escola de música da Ospa.

Em seus quase 35 anos de existência, esta seja talvez a situação mais difícil que a instituição enfrenta. A sede, localizada na Avenida André da Rocha, está praticamente desativada neste ano letivo de 2007. Há falta de professores para diversos instrumentos e disciplinas. Formando a orquestra, os alunos resistem respondendo com a prática musical.

Ubirá Tadeu Leal, diretor superintendente da Fundação Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, explica que a situação atual é em atendimento a uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado que julgou inconstitucional a contratação de professores para o Conservatório, “decisão judicial não se discute, cumpre-se”, diz o dirigente da Fospa. Isso quase inviabilizou o segundo semestre de 2006, mas um acordo com a Justiça permitiu que o ano terminasse conforme o planejamento da escola.

Agora, porém, faltam professores e há uma perspectiva de que se consiga uma solução por meio de um projeto que foi encaminhado pelo Governo à Assembléia Legislativa. Os professores seriam os músicos da Orquestra que, para ministrar as aulas, receberiam uma gratificação. São 20 vagas a serem preenchidas. “A Assembléia sempre acolheu e aprovou por unanimidade os projetos que favorecessem a Ospa”, assegura o diretor Ubirá.

Tudo começou com a rigorosa política de cortes nos recursos financeiros que foi adotada no início da gestão da governadora Yeda Crucyus. Todos contratos emergenciais que garantiam a atividade de professores no Conservatório tiveram de ser cancelados.

Crise é oportunidade

Ungidos, talvez, pelo mesmo ímpeto do seu maestro fundador, integrantes da orquestra jovem, que estudavam até então no Conservatório Pablo Komlós, decidiram levar adiante um projeto de autonomia. O ponto de partida foi a exibição de um contagiante documentário Tocar Y Luchar, produzido na Venezuela e que mostra a história possível de se fazer um trabalho social de integração, utilizando-se o ensino da música. O projeto existe há mais de 30 anos naquele país e já forneceu jovens músicos para diversas orquestras de renome mundial. Hoje são cerca de 250 mil crianças e jovens que participam em todo o território venezuelano da formação de jovens orquestras. Foram os músicos Flávio Gabriel (trompete) e Israel Oliveira (trompa), da Ospa, que divulgaram a idéia aos jovens colegas que adotaram entusiasmados a idéia de levar adiante a trajetória da orquestra, independentemente das grandes dificuldades que a própria escola de música atravessa. Eles não pensam na Ospa do futuro, querem ser uma Orquestra Jovem do Presente.

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