GERAL

Globalização já era

Publicado em 15 de outubro de 2007

“O mundo como o conhecemos acabou”, defende o sociólogo de esquerda Immanuel Wallerstein*, 77 anos, nascido em Nova Iorque, e que acaba de lançar no Brasil seu mais recente livro, O Universalismo europeu: a retórica do poder, (Bom tempo, 137 págs.) – European universalism: the retoric of power. Ele é autor da trilogia O Sistema-mundo moderno (The modern world system), sobre a globalização do capitalismo, e de O declínio do poder americano, publicado no Brasil pela editora Contraponto. Presidente da Associação Internacional de Sociologia entre 1994 e 1998, ele é pesquisador sênior da Universidade Yale (Estados Unidos). Apesar de desfrutar de grande popularidade na imprensa brasileira e de seus pontos de vista terem bastante eco, intelectuais alinhados mais à direita, como Olavo de Carvalho, consideram Wallerstein e seu compatriota Noam Chomnsky frutos do establishment universitário americano, que teria se tornado, após o fim da guerra fria, “um poderoso exportador do esquerdismo radical destruidor de vidas e inteligências”. Por outro lado, Wallerstein, que é admirado por Luis Fernando Verissimo, que já o citou em inúmeros textos, faz a crítica aos neoliberais tardios, quando argumenta que capitalistas precisam mais do Estado que os próprios trabalhadores. Para ele, não faz sentido supor que a globalização das grandes empresas transnacionais possa prescindir dos Estados, assim como é falsa a idéia de que as corporações transnacionais querem Estados fracos. “Os subsídios e o protecionismo estatal das grandes potências compõem uma tendência irreversível diante da crise atual e a conseqüência disso é um acirramento das diferenças entre grandes e pequenas economias. Em cinco anos, não se falará mais em globalização”, diz. Immanuel Wallerstein concedeu entrevista ao Extra Classe em uma sala do Hotel Sheraton, em Porto Alegre, no dia 4 de setembro, e fez questão de responder a todas as perguntas em português.

Extra Classe – Em que estágio vive a democracia na América do Sul?
Immanuel Wallerstein
– Na maioria dos países sul-americanos, o sistema democrático é algo recente. Pelo menos atualmente, majoritariamente tendem mais à esquerda. Porém ainda estão se adequando a essa nova realidade, adaptando-se à democracia e consolidando suas instituições de acordo com esse modelo.

EC – É forte a expectativa de uma vitória democrata nas próximas eleições americanas. Como o senhor vê isso?
Wallerstein
– As possibilidades para o partido democrata norteamericano para as próximas eleições são excelentes. A tendência é de que o próximo presidente seja realmente democrata. Evidentemente, qualquer mudança desse quadro depende de eventuais modificações no âmbito internacional. Uma guerra, por exemplo, poderia alterar bastante essa perspectiva. Se as eleições fossem hoje, não tenho dúvidas da vitória dos democratas.

EC – O que muda com os democratas no poder?
Wallerstein
– O importante é que haverá uma mudança, caso se confirme essa tendência, graças à alternância de poder. Acho mais prudente aguardar. Mas certamente haverá uma grande diferença das políticas internas do país, muito maior do que gostaríamos que existisse no que se refere à externa. Internamente, deverá haver modificações na área fiscal, nas eleições de novos juízes na suprema corte, na questão do meio ambiente, no âmbito dos mecanismos da própria supervisão do governo. Já para fora, não deve mudar muito.

EC – E como isso pode repercutir para países como o Brasil?
Wallerstein
– O fato é que de cinco anos para cá a política dos Estados Unidos para o Brasil e demais países sul-americanos mostra menos ingerência, até porque os EUA estão mais preocupados com as questões do Oriente Médio, e isso acabou resultando em um menor rigor no acompanhamento das questões da América do Sul. O que fez com que os EUA interferissem menos do que o normal nas políticas daqui. De certa forma, isso favoreceu a ascensão dos partidos de esquerda. Sendo assim, não penso que uma administração democrata vá mudar esse quadro substancialmente.

EC – O senhor tem uma visão bastante pessimista para os próximos 50 anos. De muitas convulsões sociais e subseqüentes colapsos do capitalismo. O senhor poderia explicar melhor seu ponto de vista quanto a isso?
Wallerstein
– O problema é que não podemos explicar (risos). Vivemos na transição de um sistema que já tem 500 anos e que está em crise estrutural. Estamos mundialmente no processo de busca por uma opção, por um outro sistema. Não é possível fazer previsões. Não se sabe quem ganhará essa batalha. Existe uma luta feroz, importante, que diz respeito às vidas de bilhões de pessoas em todo o mundo. E o que vai resultar dos vários conflitos e tensões que ocorrem em toda parte é impossível saber, apesar de ser inevitável que ocorram. Ao mesmo tempo, todos nós podemos influir seriamente nessa realidade e sobre os resultados. Independentemente dos resultados, devemos nos fixar na importância das ações políticas imediatas.

EC – O que está em jogo?
Wallerstein
– O que está em jogo é muito claro. Podemos criar outro sistema diferente do capitalismo. Não saberia como defini-lo. Mas uma hipótese seria a de outro sistema que mantivesse as características mais essenciais do atual: comércio, exportações, polarização social e política. Um sistema pior do que o atual em que os problemas se agravariam ainda mais, ampliando as diferenças entre as classes sociais e os povos mais e menos desenvolvidos. E outra possibilidade iria justamente na contramão dessa perspectiva mais pessimista, em que os valores relativamente mais democráticos e igualitários se sobressaiam. O que, sem dúvida, seria a melhor alternativa. E a luta política se dá justamente nesse campo.

EC – Neste universo de possibilidades existe espaço para o pensamento clássico de esquerda?
Wallerstein
– A visão clássica de esquerda é impossível de definir. Se for uma visão democrático-igualitária, sim. Mas se for uma visão de governo que controla tudo, não. Devemos inventar as estruturas do futuro. Não penso que será nada muito similar ao que se pensou nos últimos cem anos, nos movimentos socialistas e comunistas. Acho que o que pode e deve vingar é um sistema mais justo.

EC – Como o senhor vê o Brasil no cenário internacional?
Wallerstein
– O Brasil é um país muito importante, primeiramente por suas dimensões, que por si já é um quesito inquestionável não apenas pelo tamanho, mas como nação. Além disso, possui uma economia relativamente forte. Não como a dos EUA, mas muito importante. Em segundo lugar, é visível que o Brasil pretende liderar a América do Sul. Nesse ponto, veremos se o projeto do país logrará êxito ou não. Pois o sucesso disso depende de muitos fatores. O principal deles é que os demais países aceitem essa liderança, o que não é tarefa fácil. Por outro lado, a vocação do país para exercer essa liderança é evidente e praticamente indiscutível, mas dependente de como se comportarão suas políticas para com os seus vizinhos. E uma coisa é certa, é impossível existir uma América do Sul forte e integrada sem o Brasil, por se tratar de um país incontornável em qualquer política continental. Tenho a impressão de que os brasileiros tentam organizar-se para liderar a América do Sul e jogar esse jogo. E hoje o Brasil é um jogador muito mais importante do que há 50 anos e deve continuar a crescer como ator na cena mundial.

EC – O senhor é um severo crítico da globalização da forma como ela se dá. Qual a sua definição do atual estágio desse processo, principalmente diante das atuais crises que o capitalismo mundial tem enfrentado?
Wallerstein
– A globalização no meu ponto de vista sempre foi um discurso sem muito valor. Muito mais um discurso de intimidação, como o de Margareth Thatcher, por ser um modelo ao qual “não havia alternativa”. Sempre foi uma maneira de intimidar os países mais pobres, que por certo tempo ainda possuíam alguma força de resistência ao mercado global. Atualmente, estamos em uma época muito mais protecionista e a palavra globalização será esquecida em cinco anos. Nem os dicionaristas, acadêmicos e políticos vão utilizá-la mais.

EC – É um retorno ao protecionismo como modelo?
Wallerstein
– Há 500 anos, o capitalismo oscila entre momentos de abertura relativa e retração. O que ocorre agora é que estamos voltando a uma situação de abertura menor dos mercados.

EC – E como fica o Brasil nesse processo?
Wallerstein
– O problema para o Brasil é que Estados Unidos e Europa insistem em proteger seus produtos, suas indústrias. Portanto, não considero inteligente abrir fronteiras enquanto os seus parceiros protegem as suas. Ou o livre comércio se dá em todas as direções ou em nenhuma. A realidade é que dadas as dificuldades econômicas do momento, a tendência de quase todos os países do mundo será de se proteger.

EC – Isso significa um novo fortalecimento dos nacionalismos?
Wallerstein
– Sim. O nacionalismo é uma das forças consolidadas com maior rigor no mundo moderno. Quando um país se sente relativamente forte, tende a proclamar esse nacionalismo. Quando é fragilizado, atacado, também. Além disso, trata-se de uma força que permanece latente. Vejamos o dia seguinte ao 11 de setembro nos EUA. Imediatamente, as ações patrióticas desencadearam todo um cenário e ações cujo desfecho já conhecemos.

EC – Quais as conseqüências sociais dessa derrocada dos ideais liberalizantes da globalização e do recrudescimento do protecionismo?
Wallerstein
– O problema social essencial não se dá por questões de mercado, mas na distribuição das rendas nacionais aos públicos internos dos países. O Brasil é um país no qual a diferença entre os mais ricos e os mais pobres é muito grande, uma das maiores do mundo. Tudo depende do grau de rigor dos movimentos populares na pressão por uma distribuição de renda mais justa. E existem no Brasil movimentos populares muito importantes, bem mais relevantes do que nos EUA. MST e CUT são os melhores exemplos de movimentos que pretendem obter apoio popular para
propor mudanças na sociedade. Não sei o que vai se passar nas próximas eleições brasileiras, nem se sabe quem serão os candidatos. Muitas vezes, situações relativamente ruins da economia mundial levam os países internamente a reações mais extremas, que tanto podem beneficiar as camadas mais pobres como podem levar a políticas em sentido contrário.

EC – E no mundo?
Wallerstein
– Devemos ver quanta claridade intelectual terão as pessoas e os líderes em suas opções políticas, tanto no sentido eleitoral quanto dos rumos que os movimentos sociais tomarão. Se as escolhas forem mais “iluminadas”, vamos dizer assim, o futuro do mundo pode ser melhor. Mas há uma tendência igualmente forte na contramão disso que estou dizendo. Então, há outro mundo possível e melhor, porém… (em tom irônico)

EC – Quais são as principais idéias que o senhor destacaria em seu novo livro?
Wallertstein
– A primeira coisa que devemos entender é que essa crise estrutural nos oferece uma verdadeira opção para o futuro. Num momento de transição, as opções surgem. O problema intelectual é convencer as pessoas de que esta é a realidade e que existem outras possibilidades. Além disso, é necessário apresentar a opção moral entre todas as possibilidades que se apresentam. A partir daí, propor políticas conseqüentes que contemplem o desejo de modificação dessa realidade para modelos mais justos.

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