CULTURA

A invenção do Brasil

Por José Weis / Publicado em 26 de março de 2008

Há 200 anos desembarcava no Rio de Janeiro a família real portuguesa, transformando a então colônia lusitana no centro do poder e instaurando a burocracia, a corrupção, os favorecimentos – e forjando muitos dos aspectos sócio-culturais que permanecem vivos até hoje. A partir de 1808 também surgia a imprensa brasileira, paradoxalmente aqui e em Londres, pelas mãos de Hipólito José da Costa. Para muitos, esta foi a fundação do Brasil, um fenômeno que vem sendo explorado em larga escala pelos meios de comunicação, pela publicidade, pelo mercado editorial – e até já virou samba-enredo.

Era no tempo do rei. Assim começa Memórias de um sargento de milícias, livro de Manuel Antônio de Almeida, um flagrante do ambiente do Brasil do início do século 19, mais precisamente no Rio de Janeiro, onde se encontrava a corte portuguesa desde 1808. A mídia e o mercado editorial se debruçam sobre esse capítulo da História para avaliar as conseqüências da estada real, que segue rendendo polêmicas até os dias de hoje. A mídia está mais do que interessada no assunto, afinal, o próprio jornalismo brasileiro também completa 200 anos em 2008. E as editoras aproveitaram o momento para avaliações de historiadores e de outros interessados sobre o significado da vinda da família real. O foco do debate é a fundação do Brasil como nação, mesmo que a transferência de Dom João VI e sua corte para o Brasil tenha sido para fugir da ocupação de Portugal pelas tropas napoleônicas. Nunca é demais lembrar que a vinda dos patrícios se deu com a recusa da corte em aderir ao bloqueio continental promovido por Napoleão contra a Inglaterra.

“O Brasil foi descoberto em 1500 e criado em 1808”, afirma o jornalista e escritor Laurentino Gomes, autor de 1808 – Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram o Brasil (Ed. Planeta). “Nada havia aqui que lembrasse um país. O Brasil Colônia não passava de uma grande fazenda extrativista”, constata. Os portugueses exploravam a cana-de-açúcar, o ouro e todos os demais ciclos que o território poderia proporcionar. Porém, segundo o autor, as contradições eram muitas: “em Portugal havia uma nobreza pobre e, no Brasil Colônia, muitos plebeus que enriqueceram”.

O quadro na colônia começou a mudar com o ato de abertura dos portos às nações amigas, o que intensificaria o comércio, fazendo surgir as primeiras manufaturas, que até então eram proibidas, pois a metrópole centralizava toda e qualquer iniciativa de desenvolvimento nas colônias portuguesas.

Este momento serviu para forjar o que o autor chama de “código genético brasileiro”. “ Tudo o que somos, de bom e de ruim, vem desse período”. O escritor vai adiante: identifica aí a origem da burocracia, da cultura de favorecimentos, da corrupção, da nebulosa fronteira entre o público e o privado. Mas também traços positivos, como a tolerância religiosa, por exemplo. “Somos todos herdeiros de 1808”, resume.

A fuga para defender privilégios

A idéia da mudança da corte era mais do que mero fruto da contingência, diz o historiador e professor da Universidade de Passo Fundo, Mário Maestri. “Em 1807 Napoleão ordenou a ocupação do reino português. Lisboa tratou secretamente com os ingleses o apoio naval à transferência da família real e de parte da nobreza ao Rio de Janeiro, medida apoiada pelos britânicos, pois significava a liberdade plena para seu comércio com o Brasil”. Porém, ao salvar a própria pele, a realeza lusitana também demonstrou uma outra faceta. “Em uma das mais olímpicas demonstrações de falta de raízes e de sentimentos nacionalistas, a grande aristocracia abandonava a terra pátria para melhor defender privilégios sociais e econômicos”, detalha Maestri.

Foi uma fuga às pressas. Dona Maria, a rainha, o príncipe-herdeiro, Dom João, sua esposa, Carlota Joaquina, e toda a corte desembarcaram no Rio de Janeiro no começo de março de 1808.

A família real e sua corte formavam um contingente de 10 mil pessoas, numa frota composta de 17 a 26 navios, que incluía naves da marinha inglesa responsáveis pela segurança. A realeza, com toda a sua força bélica, enfrentou calmarias e tormentas que atrasaram a travessia do Atlântico e provocaram uma divisão na esquadra. Em alto mar, os problemas se multiplicavam. Como Dom João VI hesitara até o último momento para ordenar a fuga, o embarque foi feito às pressas e muitos saíram só com a roupa do corpo. A bordo, o racionamento de comida e de água, a higiene precária e as doenças provocaram muitas baixas. Uma praga de piolhos fez com que todos tivessem que raspar a cabeça, transformando a corte em um séqüito de carecas.

A viagem durou mais de três meses. A corte lisboeta permaneceu por 13 anos na então recém-denominada capital do Reino Unido de Portugal e Algarves, a cidade do Rio de Janeiro.

Um jornal contra a tirania do rei

“ O primeiro dever do homem em sociedade é ser útil aos membros dela; e cada um deve, segundo suas forças físicas ou morais, administrar em benefício da mesma os conhecimentos, ou talentos que a natureza, a arte ou a educação lhe prestou”. Esse foi o conteúdo da primeira página do jornal Correio Braziliense, publicado em Londres, no dia 1° de junho de 1808. Era uma resistência ao domínio português.

O seu editor, Hipólito José da Costa Pereira Furado de Mendonça, nascido em Colônia do Sacramento, no sul do Uruguai, em 1774 – na época em que aquele território pertencia ao Reino de Portugal – , é hoje considerado o Patrono da Imprensa Brasileira.

Hipólito, ainda criança, foi morar com a família em Pelotas. Depois, foi enviado a Coimbra, onde se formou em Direito e Filosofia. O talento do jovem logo foi reconhecido. Por isso, foi escolhido para uma missão a uma jovem nação, os Estados Unidos da América. Lá ele teve contato com uma democracia republicana à qual não estava nada acostumado.

Na sua temporada na Filadélfia, Hipólito da Costa entrou para a maçonaria, em 1798. Cumpriu tão bem sua primeira missão que, em 1802, foi mandado à Inglaterra para adquirir para Coroa Portuguesa livros e equipamentos para a Imprensa Régia. Esses equipamentos vieram junto com Dom João ao Brasil. Com eles foi impressa a primeira edição da Gazeta do Rio de Janeiro,
no dia 10 de setembro de 1808, mais de três meses depois da circulação do primeiro número do Correio Braziliense, de Hipólito.

ILUMINISTA – O jornalista Raul Quevedo, que há mais de três décadas se dedica à pesquisa sobre a vida e a obra de Hipólito da Costa, observa que, apesar de ter nascido “nos confins do mundo, à época, pode estar perfilado ao lado dos grandes enciclopedistas do século XVIII”. O menino Hipólito teve o privilégio de ser criado em um ambiente que lhe proporcionou aprimorar o seu talento nato. Para Quevedo, as aptidões de Hipólito eram “as luzes do conhecimento, um dom que praticamente nasceu com ele”. Um brasiliense, porque era nascido na colônia. Brasileiros, explica o jornalista, eram os portugueses que se instalavam no Brasil. “Daí o nome Correio Braziliense”, conclui Quevedo.

Apesar das bem-sucedidas missões nos Estados Unidos e na Inglaterra, Hipólito foi condenado pela Inquisição Portuguesa (que perdurou de 1536 a 1821) pelo seu envolvimento com a maçonaria e ficou três anos preso. Foi libertado após intervenção dos próprios maçons. Exilado na Inglaterra, passou a lecionar inglês para estrangeiros.

A exemplo de seu fundador, o Correio Braziliense também teve inúmeros obstáculos. Com o subtítulo Armazém Literário, o jornal “em cada edição era uma verdadeira enciclopédia de cultura, hábitos e costumes, cumprindo papel relevante para um povo subjugado pela força de um império decadente”, descreve Quevedo em texto publicado em Grandes Nomes da Comunicação, caderno da Associação Rio-Grandense de Imprensa.

CLANDESTINO – O Correio Braziliense circulava de forma clandestina no Brasil, sendo alvo explícito de proibição real. Foi um dos primeiros atos de censura no tempo do rei, que assinara um Ato de Censura Régia. O jornal tinha o formato de livro, que era algo comum à época. Circulou de 1808 a 1822. “O periódico instruiu, orientou, politizou”, resume Quevedo. Com o advento da Independência do Brasil, cessou a sua causa principal, e o jornal deixou de circular. A importância do Correio Braziliense justificou a mudança, para 1º de junho, do Dia da Imprensa no Brasil. Até 1999, era celebrado em 10 de setembro.

A propósito dos 200 anos da chegada de Dom João e da corte ao Rio de Janeiro, no carnaval carioca este foi um tema presente nos enredos das escolas de samba. E, em Porto Alegre, a história de Hipólito José da Costa poderá inspirar um samba-enredo para o Carnaval de 2009, segundo organizadores de uma comissão encarregada de celebrar os 200 Anos do Correio Braziliense. Quem viver, sambará.

A vez dos oprimidos na literatura

Com a vinda da corte e a abertura dos portos, o Brasil, como território, foi redescoberto por inúmeros estrangeiros. Muitos deles eram artistas e intelectuais que chegavam aqui a convite da realeza. Das obras de Jean-Baptiste Debret aos relatos de viajantes ficaram muitos registros, em especial, sobre o Rio de Janeiro. A cidade é o cenário de Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida (1831-1861), romance escrito em um estilo que foge aos ditames do Romantismo. Os personagens e a história abordados por Almeida se renovam e permanecem. São uma gente que sobrevive a duras penas. Pequenos comerciantes, meirinhos, parteiras, padres não lá muito castos e um tipo que entrou para a galeria de personagens literários do Brasil, Leonardo Pataca.

O professor do Instituto de Letras da Ufrgs, Luis Augusto Fischer, faz suas observações sobre a obra. “Manuel Antônio de Almeida abre os trabalhos da representação dos de baixo na literatura de língua portuguesa, no Brasil especialmente”. Fischer também considera que o autor inovou na abordagem do tema romântico. “Ele tem um jeito à vontade com a linguagem que dá uma idéia de escrita bastante livre, sem atender a qualquer convenção artificial, tanto que ele não presta atenção às exigências românticas de descrever a natureza, de enaltecer a nacionalidade”, ressalta.

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