GERAL

Agrotóxico proibido em outros países é vendido no Brasil

Por Clarinha Glock / Publicado em 23 de agosto de 2008

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O estado do Rio Grande do Sul, que acolheu a luta dos ecologistas contra os agrotóxicos nos anos 70, convive hoje com os mesmos problemas enfrentados naqueles tempos. Produtos proibidos ou suspeitos de provocar danos à saúde dos homens e do meio ambiente seguem sendo comercializados livremente no Brasil. É o caso de agrotóxicos à base de clotianidina, cuja utilização foi suspensa recentemente na Alemanha, devido à morte massiva de abelhas, e do imidacloprid, proibido na França pelo mesmo motivo.

O imidacloprid e o clotianidina são princípios ativos de inseticidas como o Gaucho e o Poncho, fabricados pela Bayer. São usados no Brasil em culturas da soja, fumo, algodão, arroz, feijão, milho, trigo, abacaxi, entre outras, para o combate a pragas. Ambos são do grupo dos inseticidas neonicotinóides, que atuam no sistema nervoso dos insetos. A diferença entre eles está apenas na estrutura de suas moléculas.

A assessoria de imprensa da Bayer informou que o uso do clotianidina foi suspenso temporariamente, “e somente para tratamento de semente de milho e colza”. Segundo o comunicado da Bayer CropScience de 16 de maio de 2008, “investigações indicam que a poeira de sementes de milho tratadas havia contaminado plantios adjacentes visitados por abelhas para a coleta de pólen e néctar”. A empresa diz que “a nuvem de poeira parece ter sido agravada ainda mais pelo uso de certos tipos de máquinas pneumáticas de plantio de milho e também por várias semanas seguidas de seca e de fortes ventos durante o plantio”. Segundo a Bayer CropScience, em Baden-Württemberg, na Alemanha, “como resultado de severo estresse decorrente do varroa – um ácaro suspeito de transmitir viroses – muitas colônias de abelhas da região chegaram ao final do inverno enfraquecidas”, o que pode ter determinado também a morte em massa.

O porta-voz e assessor de imprensa e cultura da Embaixada da República Federal da Alemanha em Brasília, Jens Wagner, confirmou que o Bundesamt für Verbraucherschutz und Lebensmittelsicherheit, órgão federal que zela pela proteção dos consumidores e pela segurança dos alimentos, decidiu “congelar” a emissão de novas licenças para produtos que contêm clotianidina. A decisão atinge oito diferentes inseticidas, inclusive o Gaucho: “Não é uma proibição, só uma suspensão da emissão de licenças de venda – os fazendeiros podem usar os estoques que ainda possuem, mas o produto não pode ser mais vendido”.

Se existe suspeita em algum outro país de que um produto possa fazer mal ao meio ambiente e ao ser humano, pelo princípio da precaução, o mesmo produto devia ter seu uso restrito no Brasil, alerta a professora-adjunta de Neurotoxicologia e Saúde Ambiental, Heloisa Pacheco-Ferreira, diretora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (Inesc/UFRJ). Segundo Heloisa, estudos comprovam que o imidacloprid é altamente tóxico para os insetos e á guas fluviais subterrâneas. Para os humanos, é moderadamente tóxico – provoca fadiga, cólicas, irritação ocular e na pele, e fraqueza muscular. “Se provocou a morte de abelhas, é possível que quem o aplicou também tenha enfrentado problemas de saúde”, conclui. “Os insetos agem como efeito sentinela”.

Segundo informações da assessoria de imprensa da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), no entanto, os estudos sobre o imidacloprid não mostram danos à saúde humana: “O imidacloprid, por exemplo, não é cancerígeno e nem inibidor de colinesterasi (substância que, quando deficiente no organismo, causa tontura, dor-de-cabeça, enjôo, salivação, problemas nos olhos)”. Portanto, informa a assessoria, as dúvidas devem ser dirigidas a outros órgãos do governo: ao Ibama, que analisa o impacto ambiental, e ao Ministério da Agricultura, que concedeu o registro.

Joelma Lambertucci de Brito, presidente da Associação Brasileira dos Exportadores de Mel (Abemel), lembra que o tema foi discutido durante o 17º Congresso Brasileiro de Apicultura realizado em junho, em Belo Horizonte. “O que se tem feito é um levantamento, antes de colocar as colméias, para saber se os agricultores estão usando algum pesticida na região. Mas muitas vezes o acordo com o apicultor não é respeitado e o nível de vôo das abelhas é grande”, explica Joelma. Alguns apicultores começam a coletar abelhas mortas para analisar a causa. “Não se pode divulgar sem ter resultados conclusivos, porque vai envolver grandes empresas e o pessoal da cana-de-açúcar – ainda mais agora, com o biocombustível”, avalia Joelma.

Os perigos do uso de inseticidas para as abelhas serão também discutidos no simpósio organizado pela Federação Internacional de Associações de Apicultura (Apimondia), de 7 a 10 de outubro deste ano em Bucareste, Romênia, e no congresso da Apimondia, em setembro do ano que vem, na França. “Durante muitos anos, as mortes de abelhas causadas por organofosfatos tiveram destaque em muitos países e ainda causam mortalidade nos lugares onde têm seu uso permitido”, explica Asger Søgaard Jørgensen, presidente da Apimondia.

Análise de abelhas mortas exige
cuidados especiais na coleta

Durante o congresso de Apicultura realizado em junho, em Belo Horizonte, o Ministério da Agricultura foi alertado sobre a morte de abelhas provavelmente causada por estes inseticidas. “Estamos aguardando uma resposta do Ministério – deverá ser feito um levantamento de dados sobre a periculosidade do imidacloprid”, informa Osmar Malaspina, coordenador do Centro de Estudos de Insetos Sociais da Unesp, em Rio Claro, São Paulo.

O professor confirma que foi registrada uma grande mortandade de abelhas em São Paulo, mas não se conseguiu dados comprovando que a causa foi algum agrotóxico. Os relatos vêm se intensificando nos últimos cinco anos. No início de julho, Malaspina recebeu duas novas denúncias de mortes – uma delas continha amostras de 200 colméias da cidade de Brotas, próxima à capital paulista.

A dificuldade maior de comprovar a causa da morte é o fato de os apicultores não saberem como encaminhar as amostras para os laboratórios. É preciso um mínimo de 100 gramas de abelhas mortas, que devem ser coletadas com rapidez e conservadas em um freezer. Malaspina sugere que seja feita uma documentação fotográfica da colméia e das abelhas; que os apicultores consigam testemunhas e preencham um boletim de ocorrência caso queiram entrar na Justiça contra o fazendeiro que aplicou o inseticida ou a empresa que o fabricou.

No Rio Grande do Sul, foram registradas mortes de abelhas em Cachoeira do Sul, São Gabriel, São Borja, Nonoai, Erechim, Santa Rosa e Guarani das Missões, informa o engenheiro agrônomo Aroni Sattler, professor de Apicultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Uma parte morreu pelo uso de agrotóxico nas lavouras vizinhas à colméia, outra pelo mau manejo do inseticida.

“A maior parte dos produtos aplicados em lavouras de soja, milho ou laranja é altamente tóxico para as abelhas”, afirma Malaspina. “O problema não é só o princípio ativo – todos matam as abelhas –, mas a forma de manejo e aplicação: às vezes, o inseticida é liberado apenas para uso direto na planta, e aplicado com avião, ou o agricultor usa o produto em doses quatro ou cinco vezes maiores do que as indicadas, porque acha que, assim, atua mais rápido”. Outros problemas podem estar associados: se a contaminação é no campo, por pulverização de avião, geralmente a abelha morre na hora. Mas se a contaminação é pequena, e a abelha não morre imediatamente, o mel que ela produz pode também ter sido afetado. “Não se tem análises, são suposições”, pondera Malaspina.

O único caso de morte de abelhas causado por agrotóxico no Rio Grande do Sul que teve a causa devidamente comprovada aconteceu há dois anos, em Cachoeira do Sul. Isto porque houve uma imediata investigação da Patrulha Ambiental, que confirmou com um empregado da lavoura a aplicação de um inseticida – e mesmo assim, não se chegou ao princípio ativo. A razão é o custo da análise: R$ 250,00 por princípio ativo, e cabe ao apicultor indicar de qual substância suspeita. “Como a maioria são pequenos produtores, eles preferem não arriscar o dinheiro, porque mesmo que determinem o princípio ativo, terão ainda de provar qual produto foi aplicado”, lembra Sattler.

As dores de Ronilda

“No mês de junho de 1999 aconteceu um episódio muito triste em minha vida, que tirou minha paz e acrescentou dores em partes do meu corpo, além de esquecimento, tristeza e revolta (…)”. (Ronilda Ferraz de Souza)

Ronilda Ferraz de Souza, 53 anos, trabalhava no posto Divina Providência, bairro Vila Jardim, em Porto Alegre, como auxiliar de enfermagem da Unidade de saúde do Grupo Hospitalar Conceição (GHC). No momento da desinsetização do posto com o produto à base de um organofosforado, ela estava ali dentro, encerrando o trabalho do dia. A coceira na pele e secura nos olhos foi tanta, que ela teve que esperar do lado de fora até acabar a desinsetização, quando então fechou a Unidade. Ronilda ficou 15 dias rouca (o problema persiste) e com outros sintomas de intoxicação: irritação de pele, boca seca, rachaduras próximas aos olhos. Entrou em depressão. Ainda sofre com dores nas articulações.

Os percalços de Teresinha

Sua excelência, o perito
Sua grande obra, o laudo
Sua excelência , o juiz
Sua grande obra, a sentença
Qual a diferença?
A sentença nos tira o ar, a liberdade
Demooora
O laudo… ah! O laudo
Dificuldade, tortura, sofrimento,
incapacidade
Senhor juiz, por favor
Eu só tenho uma vida, mais agilidade
Senhor perito, por favor
Atenção, mais humanidade.
(Teresinha Noguez Torma)

Teresinha Noguez Torma, 50 anos, era auxiliar de enfermagem da Unidade Nossa Senhora Aparecida e também estava dentro do posto quando começou a ser desinsetizado. “O médico ainda atendia os últimos pacientes”, lembra Teresinha. Quando voltou a trabalhar na tarde seguinte, dois colegas da manhã já tinham passado mal. Teresinha teve secura na boca, dor de cabeça, fraqueza muscular, muito cansaço. Enfrentou o descrédito de colegas sobre suas dores permanentes até que chegou ao Centro de Referência Regional em Saúde do Trabalhador de Porto Alegre.

 

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A história de intoxicação em livro

Entre 1999 e 2000, o médico do trabalho Paulo Ricardo Fabris, que trabalha no Centro de Referência Regional em Saúde do Trabalhador de Porto Alegre, começou a ser procurado por funcionários de postos de saúde do GHC com queixas parecidas às de Ronilda e Teresinha. Como ele havia feito sua residência médica no Grupo Hospitalar Conceição, e sua mulher é médica do Serviço de Saúde Comunitária, já era conhecido do pessoal. Outros médicos não haviam conseguido diagnosticar a causa dos sintomas, nenhum tratamento funcionava. Fabris reuniu os queixosos num só grupo e, a partir daí, estabeleceu uma relação entre eles – a intoxicação pelo organofosforado. Uniram-se ao trabalho uma psicóloga, um terapeuta ocupacional e um fisioterapeuta, e em 2000 foi criado o grupo “Viver Bem”.

O grupo inicialmente tinha reuniões semanais, depois quinzenais e hoje são mensais. Ali, Teresinha e Ronilda e outros que passaram pela mesma experiência encontraram compreensão e ajuda para seguir em frente. O Centro oferece acupuntura, trabalhos manuais, e um espaço onde podem falar e escrever sobre suas dores e conquistas. Os textos e poemas (como os que ilustram esta reportagem) serão registrados em um livro a ser lançado até o final do ano.

Pessoas expostas

Das 149 pessoas expostas ao Dursban 4E, 126 passaram por um monitoramento feito em 2004. Destas, três morreram – a morte mais recente aconteceu em junho deste ano – todas por câncer ou falência de fígado. Nove tiveram diagnóstico de câncer e três fizeram histerectomias. Também foram constatados distúrbios de tireóide e paratireóide, fibromialgias (dores musculares crônicas), irritabilidade, esquecimento e neuropatias periféricas (comprometimento dos nervos periféricos que pode causar dor ou perda de sensibilidade). “Como são doenças multicausais, poucos médicos fazem a ligação com a intoxicação”, analisa a advogada. O clorpirifós, atualmente, ainda é permitido para uso de porta-iscas de baratas.

Organofosforado só foi proibido
depois de provocar danos irreversíveis

O processo para desmascarar e proibir o uso dos agrotóxicos no Brasil ainda é muito lento, o que tem provocado danos irreparáveis à saúde e morte de agricultores. A advogada Bettina Maciel acompanha em Porto Alegre a ação civil pública para cassar o registro do Dursban 4E, que tem como princípio ativo o organofosforado clorpirifós. A ação foi iniciada em 23 de julho de 2003 pelo procurador de Justiça Paulo Leivas, e até junho de 2008 não houve uma sentença definitiva. O produto foi retirado do mercado, mas a ação não se encerrou. Como este, diz a advogada, há vários outros produtos altamente tóxicos que deveriam ser retirados do mercado, mas continuam sendo usados normalmente no Brasil, apesar das restrições em outros países.

O processo contra o clorpirifós, fabricado pela empresa Dow Agrosciences Industial Ltda., partiu da constatação dos graves efeitos relatados por médicos e usuários dos postos de saúde do Grupo Hospitalar Conceição (GHC) de Porto Alegre, que estiveram expostos ao veneno depois de uma desinsetização realizada em 11 de junho de 1999.

Logo após a desinsetização, os funcionários começaram a apresentar dor-de-cabeça, enjôos, coriza, tremores, dores abdominais, falta de apetite, fraqueza muscular, entre outros sintomas. Estudos feitos por toxicologistas constataram a relação dos sintomas com o clorpirifós. Na época, foi aberto um expediente em nível municipal e outro junto ao Ministério Público Federal (já que o GHC está ligado ao governo federal) para investigar o caso, que ficou esquecido até 2001. Naquele ano, diante do agravamento dos sintomas, os profissionais procuraram o Ministério Público para pedir reparação e ajuda – 149 pessoas que haviam sido expostas diretamente ao produto apresentaram problemas de saúde.

Em 2003, o procurador Paulo Leivas entrou com a ação civil pública e conseguiu cassar o registro do clorpirifós junto à Anvisa. Os funcionários do GHC ingressaram também com uma ação de indenização junto à Dow Agrosciences Industial Ltda. As investigações posteriores comprovaram que o produto já sofria restrições, por sua insegurança, nos países da Comunidade Européia e nos Estados Unidos – este último havia movido um processo contra a empresa, mas entrou em acordo ainda na fase inicial. Portanto, a Dow Agrosciences tinha noção dos perigos de uso de seu produto. “A própria Anvisa reconheceu a periculosidade e concordou com a decisão do juiz federal que cassou o registro”, explica Bettina. O processo está em fase de recurso.

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