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CRACK – O demônio da vez

LSD, maconha, cocaína, ecstasy, crack. Álcool, tranquilizantes, remédios para emagrecer, cigarros. Mudam os nomes; as campanhas e a repressão se intensificam; e o consumo de drogas, seja de qual for o tipo
Por Clarinha Glock / Publicado em 13 de agosto de 2009

No início deste século, quando o crack ainda era apenas uma droga da população mais pobre, “fumar pedra” matava, mas estas mortes não pareciam causar tanto constrangimento. No máximo, as estatísticas despontavam nas páginas policiais de jornais e nos noticiários de televisão e rádio em meio a roubos e assaltos, ou em referência a apreensões, mas raramente em matérias sobre saúde pública, ou em protestos contra a falta de leitos para tratamento. Naquela época, adultos e crianças filhas da “pedra” circulavam pela região central e Arte: Luciano Lobelcho periferia das cidades como se fossem invisíveis. A muito custo, sobreviveram. “A fome de alimento e a fome da droga são parecidas. Dá dor, agonia, e a cabeça fica zonza. Quando as duas andam juntas, sempre vence a fome da droga”, já escreviam os integrantes do Boca de Rua, jornal feito por pessoas em situação de rua de Porto Alegre, em 2002.

O crack ganhou visibilidade à medida que foi incorporado à vida de jovens com maior poder aquisitivo. O que hoje aproxima os dois grupos, aparentemente diferentes do ponto de vista social, não é a droga, mas a necessidade que está por trás dela, acredita o psiquiatra Sérgio de Paula Ramos. “Uma das coisas que falta no Brasil é a função paterna”.

Em uma família, é o pai que coloca os limites. As mães tendem a estar associadas ao acolhimento. É um problema se os pais não estão presentes; ou de forma precária, sem tempo para os filhos; ou se sentem culpados e tendem a concordar com tudo, em vez de dizer “não”.

Atualmente, muitas famílias se regem pelo caos e pela hierarquia quebrada entre pais e irmãos. Essa situação aparece nos comportamentos em casa, na rua e nas salas de aula. Na maioria das instituições, as orientadoras escolares e os professores não estão preparados para lidar com essa realidade. “Nos anos 60, quando as famílias eram mais estruturadas, havia três ou quatro alunos-problema na sala de aula. Hoje, são de 10 a 15. Houve uma inversão de valores e o resultado é uma geração sem limites”, observa Ramos. A droga reflete a necessidade de dizer “por favor, me contenham”.

Prevenção e atendimento são obrigações do Estado

Em 2008, o Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRPRS) realizou encontros para discutir o uso de substâncias psicoativas. A constatação dos psicólogos foi unânime: é preciso ter mais serviços, com uma rede estruturada para atender os dependentes químicos. Isso porque o uso de substâncias psicoativas pela sociedade é antigo. “Já tivemos a cocaína injetável, que trouxe consigo a transmissão do vírus HIV”, lembra Ivarlete Guimarães de França, presidente do CRPRS. “Diziam que dizimaria a sociedade porque não tinha cura, mas Aids hoje tem tratamento e o uso de drogas injetáveis diminuiu sensivelmente. Agora, veio o crack”, compara.

Portanto, não se trata de colocar a ênfase na droga, mas no tipo de enfrentamento e na resposta do poder público e da sociedade. Em 2005, por exemplo, a Prefeitura de Porto Alegre fechou o Centro de Atenção Psicossocial em Álcool e outras Drogas (CAPS AD). “A falta deste serviço deixou desassistida a população de usuários de drogas”, observa Ivarlete. “Os Caps AD integram a rede de Dispositivos de Atenção à Saúde Mental assim como os hospitais e a rede básica. Como esse dispositivo da rede foi cortado, hoje a Prefeitura compra leitos da iniciativa privada para internar os usuários”.

A parceria entre a Prefeitura de Porto Alegre e o Hospital Mãe de Deus para o atendimento de dependentes químicos, firmada em 2009, propiciou a abertura de três Caps AD, uma emergência 24 horas de psiquiatria e 30 leitos de internação, porém contrariou um parecer do Conselho Municipal de Saúde. A crítica dos conselheiros é de que o compromisso social com a saúde mental da população deveria partir primeiro dos órgãos com obrigação de prestar o serviço pelo SUS, que tem claras as diretrizes de universalidade do atendimento.

A psicóloga salienta os riscos de investir apenas na internação: as pessoas se internam, desintoxicam, saem do hospital e não têm para onde ir. Voltam para a comunidade e, com o tempo, retornam ao hospital. Como resultado, há uma população crônica e sem tratamento. A pessoa que sai da desintoxicação precisa ser acompanhada por uma equipe multidisciplinar para não voltar a usar a droga e conseguir conviver com as substâncias aceitas socialmente, mas isso não acontece, salienta Ivarlete.

Para o psiquiatra Sérgio de Paula Ramos, supervisor técnico dos Caps AD do Hospital Mãe de Deus, as notícias de que pais amarram seus filhos nas camas para evitar o uso de drogas são um sinal de falência do Estado: “Se as políticas fossem bem implementadas, sobrariam leitos. Criar ambulatórios e leitos para o crack e chamar isso de política é ingenuidade. A política mais séria deveria começar antes, com a prevenção ao uso abusivo de álcool”.

Houve um tempo em que as escolas fingiam que seus alunos não tinham problemas com drogas e não tocavam no tema. Ramos recomenda que os educadores discutam o assunto e atraiam os pais para o ambiente escolar, em palestras ou atividades de lazer. Lembra que cabe às escolas proteger as crianças. Se houver a suspeita de envolvimento de alunos com drogas, eles devem ser encaminhados para atendimento. Caso os pais não tomem providências, poderão ser denunciados ao Conselho Tutelar.

Campanhas devem começar pelo álcool

Na adolescência, a iniciação ao uso de substâncias químicas é um fenômeno multicausal. “A literatura demonstra que a primeira droga que experimentam é o álcool”, afirma o psiquiatra Sérgio de Paula Ramos. Estudos indicam que, quanto mais cedo ocorrer a experimentação, maior a chance de o adolescente vir a experimentar outras drogas e de se transformar em um alcoolista. Portanto, uma política responsável deveria começar tratando do álcool, já que a violência gerada por essa substância é maior que por qualquer outra, enfatiza.

Ações neste sentido costumam ter um resultado instantâneo. Um exemplo foi a redução de 71% das mortes no trânsito no primeiro mês de fiscalização da Lei Seca. Só que uma política eficiente passa por uma série de ações sociais que incluem também a proibição das propagandas de álcool. Os especialistas de saúde pública ainda não conseguiram se articular para enfrentar o poder econômico destas indústrias.

PENSAR – Todas as campanhas de prevenção são válidas para promover o debate, mas não se deve super-valorizar uma droga, ou apostar no terrorismo das informações, alerta Ivarlete. O Conselho Regional de Psicologia vai iniciar uma pesquisa para saber o que está por trás do discurso da mídia sobre drogas: quem detém a fala é o usuário, o trabalhador de saúde, ou o gestor? Que interesses estão em jogo?

No Grupo de Apoio à Prevenção da Aids (Gapa/RS), usuários, ex-usuários e técnicos discutem juntos saídas para reduzir os danos da dependência química. Foi depois de um debate na Câmara de Vereadores sobre crack que Weslley Bragé Dias, 28 anos, o Madruga, do grupo de rap Realidade de Rua, do Gapa/RS, teve a ideia de fazer uma campanha alternativa que incluísse toda a população. “Crack, pense enquanto é tempo” não discrimina, nem trata o tema como se os usuários fossem os culpados de todas as mazelas da segurança e da saúde. Fala de sonhos (“nunca é tarde para viver e para sonhar”) e escolhas (“você é responsável por elas”).

Redução de danos

Quem usa crack pode voltar a ter uma vida regular. Há mais de uma opção de tratamento, esclarece Paula Guntzel, psicóloga do Conselho Municipal de Saúde de Porto Alegre. “É importante que haja um trabalho intersetorial da Saúde, Assistência Social, Educação, Esporte, Lazer, Cultura”, observa. Além das comunidades terapêuticas e dos CAPS AD, há o programa de Redução de Danos, uma diretriz do Ministério da Saúde para pessoas que não conseguem largar as drogas, e que prevê a construção com o próprio dependente o cuidado que vai querer ter, diminuindo os riscos a sua saúde.

A Portaria número 430/2008 do governo do Estado regulamentou o funcionamento dos Serviços de Atenção a Dependentes de Substâncias Psicoativas – aí se incluem as fazendas ou comunidades terapêuticas. A resolução prevê que cada pessoa tem que ter um atendimento individual, de acordo com sua necessidade, por uma equipe de técnicos formados em Saúde Mental ou capacitados na área de drogas. A portaria indica como devem ser a estrutura física do local e as atividades oferecidas. As instituições que se enquadram podem receber um incentivo financeiro do governo. Apenas seis se cadastraram até agora para receber esse dinheiro, informa Paula.

O psicólogo Jaime Vivian, que trabalha em uma fazenda terapêutica já cadastrada, alerta para o perigo de instituições que tratam todos como se tivessem o mesmo problema, e onde o psicólogo ou psiquiatra aparece apenas uma vez por semana – quando aparece. A fiscalização é precária. Há denúncias em todo o país dos “depósitos de gente”, em que os pacientes são abandonados pela família ou, pior, são maltratados por quem deveria ajudá-los na recuperação e reintegração.

Vereador cobra por “consulta”

A vendedora G., 50 anos, descobriu que o filho de 31 anos era usuário de crack depois que ele foi preso. Não foi exatamente uma surpresa. Com 12 anos, o filho foi morar com o pai, um gerente de banco ex-usuário de cocaína. Depois passou a viver com os tios. No depoimento à polícia, o rapaz contou que co nseguia a droga com a própria família.

Aconselhada por uma amiga, G. buscou uma vaga para ele na Fazenda Viva Esperança em Itapuã, Viamão, intermediada pelo vereador Elias Vidal. Quando agendou uma entrevista para obter informações, ficou sabendo que teria de pagar o valor de uma cesta básica para interná-lo. No local, recebeu da secretária do vereador uma lista manuscrita do que deveria fornecer todo mês para sustentar o filho na fazenda: 10 quilos de carne, dez pacotes de massa, quatro potes de margarina, 5 quilos de cebola, cinco latas de extrato de tomate, entre outros itens. No encontro com Vidal, ouviu-o durante quase 2 horas descrever sua experiência com usuários de drogas. Ao final, foi informada que não poderia conhecer a fazenda e teria de pagar R$ 40,00 para o transporte do filho. Pagou R$ 120 pela “ consulta” e saiu preocupada: não queria deixar o filho sem saber como era o lugar. Optou por outra fazenda, cadastrada pelo governo.

O vereador, que é responsável por uma emenda instituindo recursos para o Conselho Municipal de Entorpecentes, afirma é de praxe os familiares não irem à fazenda nos primeiros meses para não atrapalhar o tratamento. “Tenho quase 30 anos de trabalho, ela tem que confiar em mim”, argumenta. Os R$ 120 cobrados, segundo Vidal, são pelas 2 horas em que divide sua experiência e para os custos de deslocamento de ex-dependentes. De acordo com G., no entanto, não havia ninguém mais na sala, além dela, do filho, e do vereador. “Quando as pessoas querem o dinheiro de volta, a gente devolve”, defende-se Vidal.

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