SAÚDE

Tese de cientistas gaúchos pode ser revolucionária

Depois que uma memória se forma, existe uma janela de tempo de cerca de 12 horas durante a qual ocorrem processos em distintas áreas do cérebro. Esses processos determinam não apenas se a memória será pres
Por Flavia Bemfica / Publicado em 12 de outubro de 2009

As pesquisas, desenvolvidas em conjunto com colegas da Universidade de Buenos Aires, podem modificar para sempre a neurociência. “Se nossa hipótese estiver certa, é revolucionária porque mostra que o cérebro funciona de forma diferente do que se pensava e de como ainda se considera ortodoxamente. Os ortodoxos acreditam que a formação e a persistência da memória são um único processo”, assinala o neurocientista Martín Cammarota, da PUCRS, que coordena os trabalhos do grupo de pesquisadores.

Com as descobertas abrem-se, por exemplo, as possibilidades para o entendimento de como alguns acontecimentos se transformam em recordações duradouras. De acordo com Cammarota, a pesquisa teve início há cinco anos e os experimentos começaram há dois. Os testes foram feitos com 1,7 mil ratos de laboratório, submetidos à ação do neurotransmissor dopamina, conhecido por ser relacionado às sensações de bem-estar e estudado também por sua relação com diferentes formas de vício.

No experimento, os neurocientistas chegaram à conclusão que em ratos nos quais a ação da dopamina foi estimulada, a capacidade de memória tornou-se maior. Por outro lado, nos roedores em que ela foi inibida, o resultado foi o contrário. “Nossos resultados sugerem que eu posso agir farmacologicamente para regular uma memória depois que o evento aconteceu. Mas a resposta à questão: “posso apagar uma memória específica?” é não”, ressalva Cammarota.

Apesar de os resultados terem aberto o caminho para um melhor entendimento de doenças que acometem parcelas significativas da população, como o Mal de Alzheimer e dos mecanismos dos vícios, o neurocientista explica que, mesmo sendo o termo utilizado no singular, a memória é múltipla e cheia de dimensões que, por sua vez, também são multidimensionais. “Uma memória, uma vez que se instalou, é contínua, vai sendo modificada e depende de outras memórias, que também não são fixas. Não se sabe onde uma memória começa e onde termina”, resume.

Cammarota também destaca que existe uma diferença entre testar ratos de laboratório e seres humanos, ou mesmo uma população de ratos. “Além do componente genético, a experiência é importantíssima e nossas experiências estão baseadas naquilo que nos aconteceu antes”. Então pessoas com uma identidade genética idêntica, como gêmeos univitelinos, que fossem submetidas a experiências também idênticas, teriam memórias iguais? “Esta é uma questão a ser respondida pela lógica e não pela Biologia, porque é impossível as experiências serem iguais. O fato de você passar por uma situação sozinho ou juntamente com outra pessoa já muda tudo”, responde o coordenador. Os próximos passos dos cientistas serão testar a atuação de outros fármacos sobre os processos da memória.

Artigo teve publicação na revista Science

O artigo da Revista Science assinado por Martín Cammarota, Janine Rossato, Lia Bevilaqua, Ivan Izquierdo e Jorge Medina traz os resultados das pesquisas realizadas com a participação de 43 pesquisadores, 33 deles em Porto Alegre e dez em Buenos Aires. Nos experimentos, um rato de cada vez foi colocado dentro de uma caixa em cujo fundo existe uma plataforma de barras de bronze eletrificadas. Ao pisar na área, o roedor levava um choque (forte ou fraco) e era retirado. Passado um período de até 12 horas do choque, os ratos submetidos ao choque forte receberam uma substância que inibe a ação da dopamina no cérebro. Outra parte dos roedores (os que levaram choques fracos) recebeu doses de uma substância que estimula a ação da dopamina. Um terceiro grupo não recebeu nem a substância que estimula a dopamina e nem sua antagonista. Dois, sete ou 14 dias depois dos choques, os animais eram recolocados na caixa com as barras eletrificadas.

O resultado foi que os ratos que haviam recebido inibidores de dopamina imediatamente ou 9 horas após o choque não tiveram alteração no período de retenção da memória. Os que haviam recebido o inibidor 12 horas depois do trauma não se lembravam mais do choque após uma semana. Já os que receberam injeções de estimuladores da dopamina 12 horas após o choque o guardaram na memória por até 14 dias. E os ratos que não haviam recebido qualquer substância esqueceram do choque fraco em até dois dias e lembraram do forte por até duas semanas.

Sono também tem influência

Prova de que ainda há muito a descobrir a respeito da memória, em setembro foi a Nature Neuroscience que publicou os resultados de outra pesquisa, levada a cabo por cientistas franceses e norte-americanos. A hipótese trabalhada pelos pesquisadores é a de que as memórias recentes se consolidam durante os estágios 3 e 4 (mais profundos) do sono, ou seja, dormir bem ou mal pode ter consequências sobre as lembranças dos indivíduos.

A transformação de memórias recentes em memórias duradouras se daria via ondulações conhecidas como fusos do sono (os picos de atividade cerebral registrados em pacientes que dormem adequadamente). Durante a noite, seriam essas ondulações que transfeririam as informações registradas de uma região do cérebro conhecida como hipocampo para uma outra, mais complexa, o neocórtex. O fato de a transferência poder ser repetida explicaria, segundo os cientistas, como algumas lembranças são mais claras que outras.

Os pesquisadores também utilizaram ratos em laboratório para testar suas hipóteses. Em um grupo de roedores eles inibiram as ondulações do sono e em outro não. Depois, durante alguns dias, os animais eram obrigados a percorrer um mesmo caminho de obstáculos. O grupo no qual a produção dos fusos do sono foi inibida não conseguia lembrar o trajeto após acordar.

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