OPINIÃO

Um crime oral

Publicado em 10 de maio de 2010

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Se a imprensa fizesse estardalhaço, a manchete de certo dia na Terra da Linguagem seria: TÁ LÁ O CORPO ESTENDIDO NO CHÃO. (Imagine o susto do Paulinho da Viola se visse tal jornal.) É que, como vem ocorrendo há milênios, nessa ocasião apareceu mais uma Língua Morta. Do ponto de vista do linguajar, uma morte inesperada: estava bem falante e de repente, de um século para o outro, virara um som surdo num vale sem eco. Essa pobre Língua Morta (sim, pelos farrapos da sua fonética e a minguada morfologia, via-se que era sem recursos), estirada em meio à indiferente circulação da multidão de idiomas, parecia apenas uma vítima dos tempos modernos. Foi recolhida pelos costumes, como se diz dos elementos que atrapalham o cotidiano. Com percepção apurada, alguém poderia notar indelével marca no espaço que ocupava – um silêncio profundo, coisa que nem se escuta mais. Que teria acontecido? Para surpresa de poliglotas que a tinham conhecimento quando ainda era expressiva, a necrópsia revelou sinais de violência. Além de perfurações que causaram verborragia interna, um corte epistemológico atravessava o aparelho fonador. Tinham extirpado seus verbetes vitais. E não havia como saber quais suas últimas palavras. À Língua Morta faltavam interlocutores e nem intérpretes lhe davam atenção. Mas os filólogos que a examinaram desconfiaram dos suspeitos de sempre: o Colonialismo, a Aculturação e até o Esquecimento. Todos com culpa no cartório, constavam nos dossiês de desaparecimentos linguísticos. Também as gangues de gírias, que maltratavam Línguas Clássicas, deixando-as impronunciáveis, deveriam depor. Só o Esperanto tinha álibi. Era o caso de investigar a fundo. Talvez, pensaram os peritos, um detetive bom de papo conseguisse esclarecer o assassinato. O Idioma Inglês, que dominava a cena verbal, tinha acesso a Sherlock Holmes, Hercule Poirot e Nero Wolfe. Mas o ainda influente Idioma Francês sugeriu o Inspector Maigret. Porém, o Idioma Italiano gesticulou mais alto: o Comissário Montalbano é afiado em dialetos, deixem o caso com ele. Montalbano, intuitivo e certeiro, logo interrogou o poderoso Capitalismo e sua nova mulher, a Globalização. Essa, insaciável, explorava sotaques em toda parte. Extravagante, mantinha valiosa coleção de sintaxes do passado. Foi nesse museu que Montalbano descobriu a prova do crime: vestígios vocabulares da Língua Morta. E prendeu a culpada e seu óbvio cúmplice e amante, a quem chamava de Ispikinglix.

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