GERAL

Liberdade em rede

Sérgio Amadeu da Silveira, cientista político, defende o software livre, a inclusão digital e um Marco Civil para a web no Brasil
Por César Fraga / Publicado em 9 de agosto de 2011

Sérgio Amadeu da Silveira

Foto: Cristiano Sant'Anna/indicefotocom/divulgação

Foto: Cristiano Sant'Anna/indicefotocom/divulgação

O ex-presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) no início dos anos 80, Sérgio Amadeu da Silveira, hoje é sociólogo e doutor em Ciência Política pela USP e um dos principais defensores do softwarelivre e da liberdade na internet no país, além de atuar como professor da pós-graduação da Faculdade de Comunicação Cásper Líbero. É, também, autor de várias publicações, entre elas: Exclusão Digital: a miséria na era da informação. A militância nas áreas de Inclusão Digital e Software Livre começou no Instituto Florestan Fernandes, ao participar da criação do Projeto Sampa.org de telecentros comunitários. Com a vitória de Marta Suplicy nas eleições paulistanas, Amadeu instituiu e dirigiu a Coordenadoria do Governo Eletrônico da Secretaria Comunicação e Informação Social da prefeitura, tendo criado a Rede Pública de Telecentros, que chegou a ter 129 unidades em dezembro de 2004 – o maior programa de inclusão digital já implementado no país. Também presidiu o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI) da Casa Civil da presidência da República, que em sua gestão assumiu a secretaria executiva do Projeto Casa Brasil, de inclusão digital. Participou da criação do Comitê de Implementação de Software Livre (CISL). Em 2005, deixou o cargo e voltou a atuar como professor. Nesta entrevista, Sérgio Amadeu fala sobre a necessidade de um Marco Civil para a internet.

Extra Classe – O projeto de regulamentação da internet do deputado federal Eduardo Azeredo foi ressuscitado no Congresso, mas existe uma proposta alternativa elaborada pela sociedade com o Ministério da Justiça. Como está esse debate?
Sérgio Amadeu da Silveira – O projeto tinha sido bastante criticado há dois anos, quando foi deixado em stand by. O ex-senador e agora deputado federal Eduardo Azeredo aproveitou a onda sensacionalista promovida a partir do encontro dos bancos da Febraban para discutir tecnologia. Logo depois, influenciou bastante a revista Época a tratar do assunto, quando se passou a requentar matérias sobre ataqueshacker. Os ataques que aconteceram a alguns sites do governo, bastante triviais, infantis, de fato, geraram bastante tráfego e derrubaram alguns sites que eram desprotegidos, além de terem uma qualidade de instalação sabidamente muito ruim. O que acabou acontecendo é que esse sensacionalismo que ocorreu recentemente foi aproveitado pelo deputado, que fez toda uma pressão pra que fosse votado seu projeto. Outros deputados solicitaram audiência pública para discutir o projeto. O projeto original sofreu alterações, algumas, inclusive, são incorporações das críticas feitas ao PL, em que apontávamos as imprecisões e exageros em algumas definições que estavam no projeto.

EC – Que imprecisões e exageros?
Amadeu – Por exemplo, tentar transformar em crime o acesso a dispositivos de comunicação sem a autorização do legítimo titular. Aparentemente pode até parecer razoável, mas não é. Muitas vezes, quando se compra um CD, o legítimo titular das músicas, a gravadora, define que não se pode copiar nenhuma música, mesmo que o CD tenha sido comprado e as faixas colocadas em seu Ipod, pen drive ou computador. Isso, inclusive, é de uma legalidade questionável a partir do próprio Código de Defesa do Consumidor. Mas o fato é que, quando você diz que acessar sem a devida autorização do titular é crime, se cria uma grande confusão, porque o titular da música é o artista que a fez, mas nesse caso é a gravadora. Sendo assim, você não compra uma música, mas uma licença de uso. No modelo de copyrighté assim que funciona. A proposta do Azeredo transformaria milhares de indivíduos que usam a rede para compartilhar de forma direta e indireta legendas para filmes e games, quadrinhos, música etc., em criminosos. Isso prejudicaria milhares de pessoas por conta de uma redação genérica e equivocada. Apesar de o autor ter retirado alguns exageros, o projeto continua extremamente perigoso para o cidadão comum. E por causa disso a gente foi levar essa discussão para uma audiência pública.

EC – Quem participou?
Amadeu – Havia alguns policiais, pessoas do Judiciário e do Ministério Público, de Minas Gerais, apoiando a medida, além de alguns escritórios de advocacia que têm interesse que a redação seja a mais genérica possível. Com isso, eles teriam muito trabalho jurídico pela frente. Todos se manifestaram favoráveis ao PL.

EC – Mais mercado jurídico?
Amadeu – Sempre que se cria uma instabilidade jurídica, se cria um novo mercado. Por outro lado, o professor Túlio Viana, da Universidade Federal de Minas Gerais e o professor Carlos Afonso, da FGV (Rio), argumentaram contrariamente ao projeto, mostrando algumas falhas absurdas do ponto de vista da própria técnica legislativa.

"Não queremos regulamentar a internet para mudá-la, mas para garantir a liberdade que existe hoje: de navegação, de criação, de expressão"

Foto: Cristiano Sant'Anna/indicefotocom/divulgação

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EC – E o senhor?
Amadeu – Defendo a proposta de se discutir a criação de um marco civil que regulamente os direitos dos cidadãos na internet, porque alguns direitos violados, de fato, devem ser transformados em crime, mas não todos. Alguns podem ser transformados em outro tipo de sanção, que não resulte em pena de prisão, mas em multas, por exemplo. Não se pode colocar tudo no código criminal.

EC – O que é a proposta e quais os principais pontos da proposta que estabelece um Marco Civil para a internet no Brasil?
Amadeu – Brasil? Amadeu – O Marco Civil é uma proposta organizada como reação a esse projeto do deputado Azeredo, há dois anos. O Ministério da Justiça abriu um site para contribuições da sociedade sobre o tema, que pudesse manter um equilíbrio entre segurança, liberdade e privacidade. Essa consulta foi aberta a partir de uma proposta inicial do Ministério, com apoio da FGV e de advogados. Esse texto foi colocado, artigo por artigo, com um mecanismo on-line que permite a colaboração, por meio de inserção de críticas e até mesmo de oferta de uma nova redação. Assim, os especialistas, a sociedade e as pessoas interessadas na área puderam apresentar suas contribuições. Esse processo de consulta colheu mais de 2 mil sugestões. Foi uma coisa bastante interessante. Ele foi feito em dois turnos. Uma primeira leva de contribuições foi sintetizada e depois, num segundo momento, foi aberta novamente a consulta a partir já das modificações da primeira versão. Nessa nova rodada foi gerado um projeto. Essa forma de produzir um projeto de lei é bastante inovadora, pois coloca o Brasil na ponta, como um país que usa a rede para discutir temas que envolvem consulta técnica e opiniões políticas diversas. A ideia era formular esse projeto junto com a sociedade civil. Porém, o que acabou acontecendo é que quando terminou a participação, já estava em um momento eleitoral e até agora o governo não enviou a proposta para o Congresso.

EC – Quando o senhor diz “nós”, se refere a quem, mais especificamente?
Amadeu – Costumamos chamar isso de ciberativismo na rede em defesa da liberdade na internet. Um conjunto de ativistas (da rede e pela inclusão digital), membros do movimento democrático de comunicação, acadêmicos, pesquisadores, advogados, técnicos, juristas, hackers (no sentido tradicional da palavra, que diz respeito a pessoas que possuem conhecimento profundo sobre códigos), gestores públicos, pessoas que trabalham com internet. Uma grande variedade de expressões que felizmente defende a liberdade na internet. Foi organizada uma verdadeira frente virtual muito diversa e muito ampla contra esse projeto e a favor de um Marco Civil da internet que regulamente a rede para garantir a liberdade, a criatividade, os valores que fizeram da internet uma das maiores experiências de compartilhamento de saberes e comunicação que temos notícia na humanidade. Não queremos regulamentar a internet para mudá-la, mas para garantir a liberdade que existe hoje: de navegação, de criação, de expressão. Nenhuma dessas três requer autorização de governos ou de corporações para que a gente tenha. Claro que existem forças conservadoras que se articulam em torno do deputado Azeredo, que pretendem mudar esse formato e a dinâmica de como funciona a rede. O Marco Civil contou com muita participação dessas pessoas.

EC – E não há nada que possa ser feito para colocar o Marco Civil em pauta?
Amadeu
 – Como não se trata de uma matéria privativa, que só pode ser enviada ao Congresso pelo Executivo, estamos sugerindo que um grupo de deputados apresente a versão sintetizada da consulta pública e coloque o Marco Civil para ser discutido. Não podemos correr o risco de o Congresso aprovar uma lei criminal extremamente negativa, sob o argumento de que não há nenhuma regulação da internet. Eu, particularmente, acho que é possível pressionar o governo, caso não sejamos atendidos. Existe a alternativa de apresentar essa versão que contou com a participação de um número grande de colaboradores.

EC – O governo acenou com alguma previsão de encaminhamento?
Amadeu – Nos foi afirmado que seria enviado na primeira quinzena de julho e isso não ocorreu. O deputado Azeredo afirma que a lei criminal é fundamental para garantir a segurança das pessoas. Eu digo que não. Os vários tipos de crime tipificados no Código Penal já são suficientes para punir criminosos que merecem ser investigados com rapidez pelo alto potencial de dano das suas ações. Para essas ações, pedofilia já é crime, por exemplo. Não existe pedofilia digital. O que existe é pedofilia. É como o assassinato, tem de ser punido. A maioria dos chamados crimes eletrônicos em sua maioria pode ser combatida com a legislação existente. Um ou outro tipo requer nova redação para poder melhor reparar o direito e punir os criminosos. Mas isso tem de ser claro e bem definido para que a gente não atire em um e acerte em outro. Não podemos aceitar uma redação que puna pessoas que a sociedade não considera criminosos, porque alguns grupos econômicos querem que essas pessoas sejam criminalizadas.

"A maioria dos chamados crimes eletrônicos pode ser combatida com a legislação existente. Não existe pedofilia digital. O que existe é pedofilia"

Foto: Cristiano Sant'Anna/indicefotocom/divulgação

Foto: Cristiano Sant'Anna/indicefotocom/divulgação

EC – Um exemplo, professor?
Amadeu – Vou dar o exemplo de um caso que é ilegal, mas que a lei do deputado Azeredo não consegue dar conta por ser incompleta. Ela é abrangente em alguns artigos e, por outro lado, não pega a realidade da rede. Alguns bancos estão inserindo nas máquinas dos usuários uma rotina que acompanha a navegação desta pessoa, mesmo depois que ela não está mais usando o site do banco. Diz a empresa fabricante do software que isso é para evitar clonagem de outros sites e que o sistema avisaria o próprio banco quando isso ocorresse. Outros dizem que não, que de fato essa rotina aumenta o processamento da máquina e parece que você está usando o computador, quando na verdade não está. Ou seja, nos dois casos, o banco invadiu sua máquina, enfiou uma rotina dentro dela, que é praticamente um espião da sua navegação, sem você saber. Eu gostaria que isso fosse discutido e regulamentado. A pergunta é: isso é legal? Isso só pode ser discutido num regulamento civil da internet porque eu acho que isso deveria ser considerado crime, aliás, o estrago que isso faz é bem maior do que o feito por esses hackers que fizeram esses ataques infantis a sites notadamente sem segurança que existiam e ainda existem no governo federal. Os sites seguros não foram sequer arranhados. Outro exemplo deste tipo de ilegalidade não contemplada na proposta do deputado Azeredo e que talvez possa até ser considerada crime: a Oi (multinacional de telefonia) está fazendo testes com uma plataforma proibida na Inglaterra que copia toda a navegação na internet, analisa o usuário para depois enviar publicidade, a partir das preferências do internauta. Ou seja, sem pedir permissão, ela melhora a ação das empresas de publicidade junto à clientela de serviços telefônicos. Eles dizem que guardam a navegação, mas não guardam a senha, o que é bem discutível, porque se toda a navegação é acompanhada, no momento do acesso as senhas também o são. Talvez isso seja considerado crime, talvez não, mas é preciso regulamentar a ação das empresas.

EC – Essas iniciativas mais conservadoras têm relação com os movimentos políticos que se utilizam das redes sociais para mobilização?
Amadeu – Têm relação sim. Sem dúvida, existe esse interesse que claramente quer tentar cercear a liberdade. Outro dia em uma matéria da revista Época, um referido especialista em segurança da informação disse que é um absurdo alguém ter um poder tão grande de protesto contra o governo dos EUA. Ele está sonhando com os velhos tempos em que nós nos limitávamos a falar mal do governo americano no boteco ou nas reuniões dos centros acadêmicos.

EC –Que tipo de ameaça à liberdade de expressão as propostas de regulamentação da rede no Brasil representam?
Amadeu – Representam ameaças não só de liberdade de expressão, mas também de criação de tecnologia. Se você não tem garantido o princípio da neutralidade da rede numa regulamentação, isso pode impedir a criação de novos protocolos de novas tecnologias que estão sendo desenvolvidas. A internet é uma rede aberta. Se lá atrás as operadoras de telefonia pudessem interferir no fluxo de informação de dados que passam na rede elas poderiam ter impedido o nascimento do You Tube, por exemplo. Isso é muito grave, pois diz respeito não apenas à liberdade de conteúdo, mas também, à liberdade de criação tecnológica. Por isso se quer regulamentar a internet para garantir a liberdade.

“O governo está abrindo mão de criar um plano de banda larga, pois não enquadrou as operadoras e não quis criar regras claras de preços, de qualidade do serviço”

EC – Como o senhor está vendo esse plano de banda larga do governo?
Amadeu – O governo está abrindo mão de criar um plano de banda larga. O que ele está fazendo é negociar com as operadoras condições um pouco melhores para a população de baixa renda, para as populações descobertas. Mas, na verdade, essas condições são insuficientes para a sociedade da informação. O plano de banda larga não é considerado como uma coisa vital, prioritária de construção de infraestrutura. Por isso estão sendo feitos alguns acordos com o setor privado, que aparentemente são vantajosos, mas na verdade são um absurdo, porque 300megabits de download por R$ 35,00, um pessoa que abre vários portais de internet durante 4 horas queima metade disso. Se ela assiste mais quatro vídeos no You Tube acabou. Ela não vai saber disso, então, como ela vai continuar usando, daí em diante já vai ser outra tarifa e no mês seguinte ela deixa de usar. Acontece como a telefonia. O modelo de negócio de remuneração que as operadoras praticam no Brasil constitui uma coisa que eu chamo de custo Brasil de telecomunicações. É mais caro que o custo dos portos e das estradas. É uma verdadeira aberração. O governo, por sua vez, abriu mão de enquadrar essas operadoras que não querem canibalizar seu modelo de negócio altamente lucrativo. Simplesmente não quis criar regras claras de preços, de qualidade do serviço. Regras que poderiam até constituir um serviço público essencial.

EC – Esse plano da forma como se apresenta representa algum avanço, ou apenas atende interesses privados?
Amadeu – Na verdade, a ideia original do ex-presidente Lula de criar uma empresa e competir com as teles gerou uma mobilização das empresas de telecom. O que se seguiu foi a imposição do modelo de negócio já existente. O que teve de positivo foi o anúncio do plano, a recuperação da Telebrás e o setor privado está correndo atrás para impor o ritmo delas, numa proposta absurda, inaceitável.

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