GERAL

Justiça é seletiva

O mito de uma justiça igualitária cai por terra ao se fazer uma comparação simples da celeridade discrepante de processos movidos por ricos e pobres
Por Clóvis Victória / Publicado em 11 de maio de 2012

Especial

Foto: Marcelo Amaral

Foto: Marcelo Amaral

Não é preciso grande esforço ou levantar muitos dados. Basta alinhar dois casos que tramitam no sistema judiciário brasileiro e classificá- -los a partir do tratamento que o réu ou vítima terá. O caso da morte do sem-terra Elton Brun, por tiro de espingarda nas costas, desferido por policial militar durante a desocupação da Fazenda Southal, em São Gabriel, completará três anos em 21 de agosto, correndo o risco de até lá não haver sentença. Dificilmente, por outro lado, o filho do megaempresário brasileiro Eike Batista terá um julgamento rápido. Thor Batista, de 20 anos, atropelou e matou um ciclista no Rio de janeiro, em março passado, e chegou a tirar seu carro importado da cena do atropelamento. Voltou ao local acompanhado de advogado horas depois para fazer o exame do bafômetro e contou com a defesa do pai nas redes sociais.

Mesmo que os dois casos acima citados tenham tratamento acelerado este ano e desfecho favoráveis às vítimas, a percepção de desigualdade de acesso é muito alta no Brasil. Estudo realizado pelo Latinobarómetro, ONG de acompanhamento das injustiças na América Latina, avaliou a percepção de acesso à Justiça em 18 países. O resultado da pesquisa, que coletou dados entre 1995 e 2009, exposto no gráfico desta reportagem, aponta que o Brasil e a Argentina estão em último lugar em termos de percepção de igualdade de acesso. Consignaram uma percepção favorável de apenas 10,8%, quase quatro vezes menor que a líder de justiça Venezuela, com 37,3%. O estudo, divulgado no ano passado, faz um alerta: a percepção média de justiça nos países latino-americanos, 22,5%, é baixa e preocupante.

O custo de um processo ajuda a recrudescer a desigualdade. Pesquisa encomendada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ao Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2010, com 181 varas federais de 124 cidades, determinou que a Justiça federal gasta, em média, R$ 4,3 mil por processos de execução fiscal. Indicador do que as empresas podem fazer com os recursos que têm para protelar sentenças, esses tipos de processos tramitam, em média, segundo o Ipea, por oito anos. O custo de mão de obra representa 41,9%, chegando a R$ 1,8 mil.

Portanto, entra na conta da “justiça para todos” a capacidade de arcar com despesas que a maior parte dos pobres não consegue suportar. Além disso, há um conceito que o sociólogo Rodrigo de Azevedo, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS, utilizou para avaliar a taxa de esclarecimento de crimes de homicídio em duas delegacias especializadas e em uma distrital em Porto Alegre entre 2008 e 2009. O resultado da pesquisa está no recém-lançado livro O inquérito policial e chama a atenção para uma desigualdade que a teoria consagrou como seletividade.

Basicamente, essas três delegacias, segundo Azevedo, atingem uma taxa de esclarecimento dos crimes de homicídio de 15% no período levantado na pesquisa. É no perfil das vítimas e dos criminosos que a seletividade se materializa. “É um índice ruim, mas maior que a média nacional, que é de 8 a 10%. No levantamento que fizemos, percebemos que os crimes com autoria conhecida são os mais resolvidos. Quando a vítima tem impacto social, a polícia costuma resolver com maior rapidez”, conta Azevedo.

O professor salienta que o segundo caso de seletividade, o que confere celeridade ao processo de investigação a partir do perfil da vítima, está diretamente ligado ao lugar do crime contra a vida. Territórios de classes média ou média alta, onde os índices de criminalidade são baixos e quando há repercussão na mídia, são preferenciais para um tratamento justo. Assim, crimes contra a vida de empresários, líderes comunitários, pessoas que tenham um perfil conhecido por mais gente e com reconhecimento social recebem tratamento diferenciado em relação aos jovens entre 15 e 25 anos, maiores vítimas de armas de fogo que moram na periferia. As mortes destes últimos, muitas vezes ligadas ao tráfico de drogas, chegam a ser tratadas como limpeza.

Outro fator é o volume de processos que o sistema judiciário encara. Há muitos. Índice desta quantidade acelerada de procura e que representa o que a diretora de Comunicação da Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio Grande do Sul (Adpergs) Lisiane Zanette Alves, chama de “porta de entrada para o sistema de justiça como um todo”, a Defensoria Pública está imersa em mediações. Os defensores públicos, aqueles operadores do Direito que costumam atender às demandas dos pobres por prestarem um serviço de representação gratuito, têm atuado como mediadores de conflitos, especialmente no que se refere aos casos envolvendo direito de família, como arbitramento de pensão alimentícia. Evitam, muitas vezes, que os casos tramitem nas varas judiciais. O problema é que esses casos conformam 56% dos atendimentos. São 321 agentes em todo estado, e 94 municípios que não têm defensores públicos. Somente em 2011, a Defensoria atendeu 460 mil casos. Cada um dos 359 servidores da ativa, em média, ficou responsável por 1.281 atendimentos. São quase quatro por dia por defensor público, contados os fins de semana.

É muito. Mas insuficiente para reduzir a desigualdade que se manifesta nos presídios brasileiros. Segundo dados do Sistema Integrado de Informação Penitenciárias (InfoPen), do Departamento Penitenciário Nacional, ligado ao Ministério da Justiça, 57% dos presos no país eram analfabetos ou tinham escolaridade até Ensino Fundamental incompleto em 2010. Pobres, portanto. Quem tem Ensino Superior completo representa 0,4% da população carcerária brasileira. A diferença é grande.

Pompa e toga

Índice de percepção de igualdeda de acesso à Justiça na América Latina e Caribe

Fonte: www.latinobarometro.org/1995-2009

Fonte: www.latinobarometro.org/1995-2009

Palácios da lei construídos ao fim do século 19 e início do 20. Espadas, imagens “assustadoras” em que uma enorme estátua com venda nos olhos segura duas balanças no mesmo plano, denotando equilíbrio, a encarar quem a olha. Togas pretas, usadas por advogados e juízes, palavras em latim, como data-venia(pedido de licença para divergir respeitosamente). As sucessivas imagens desenhadas verbalmente pelo professor de Sociologia Jurídica da Ufrgs, Raúl Enrique Rojo, conformam uma espécie de comportamento que configura o que ele chama de “jurisdicção”. Falar o juridiquês, no contexto sisudo da paisagem jurídica, ajuda “a distanciar a Justiça dos justiciáveis”, segundo Rojo.

No entanto, salienta ele, há mais em jogo do que pesar sobre os ombros dos operadores do Direito e, sobretudo, da Justiça, a responsabilidade sobre uma desigualdade que também se reproduz em outras instâncias, como na saúde e na educação. Rojo defende a existência de um fenômeno paradoxal em relação à figura dos juízes. Segundo ele, a partir da década de 1980, os juízes passaram a constituir-se como solucionadores de casos com os quais a sociedade não consegue lidar. Trata-se de uma juridiscionalização que converte o magistrado em operador social ante uma crise de autoridade, sintoma da sociedade moderna e muito mais democrática. Às figuras detonadas dos pais, mestres, do padre, do senhor espiritual, enfim, de um notável da região, prevalentes numa época anterior à Moderna, a sociedade substituiu pela autoridade do magistrado. “A última figura com legitimidade que resta é o juiz. Mas isto encerra um paradoxo. Ao mesmo tempo em que o juiz é visto como árbitro social, vive sob certa desconfiança. É, ao mesmo tempo, bombeiro e pirômano”, diz Rojo.

O efeito disso se observa no crescente número de processos criminais que descem nas varas criminais mundo afora e no uso que, com o intuito que a figura do juiz tem conferido a vários tipos de ações, é feito de sua autoridade. Por exemplo, os jornais dão visibilidade a processos para lucrar, e a estratégia jurídica passou a fazer parte dos negócios, segundo Rojo. “Hoje há mais oportunidades jurídicas do que havia há duas décadas. A Justiça tem sido chamada para apagar o fogo dos conflitos sociais. Não é apenas a solução factual. Às vezes, é usada para dar visibilidade a algum problema que, de outro modo, não teria.

O presidente da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), Pio Giovani Dresch, caminha na mesma direção da análise do professor Rojo. Ele salienta que a demora na resolução dos processos é um fenômeno mundial que tem relação com o individualismo, marca da sociedade, e com mercado de trabalho. Dresch conta que cerca de 30% de todos os processos que tramitam na Justiça gaúcha constituem “causas repetitivas”. Ações de revisão de contratos bancários, de taxas cobradas por empresas de telefonia poderiam ser colocadas num mesmo processo, por assim dizer, transformadas em ações coletivas. “Isto é fruto de uma cultura individualista da litigância. O ideal é apostar nas ações coletivas. Do ponto de vista da racionalidade, este volume grande de litígio nesta área não é bom. Mas para o mercado de trabalho é bom”, diz Dresch.

Entenda-se racionalidade jurídica como aceleração do trâmite dos processos. Relatório Anual de 2011, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), aponta que, entre 1º de janeiro e 31 de dezembro do ano passado, foram iniciados 2.945.159 processos no Judiciário e terminados 2.854.450. Levando-se em conta que nem todos os processos terminados em 2011 foram iniciados no mesmo ano, o índice de resolução foi de 96,9%. Índice significativamente superior ao de 2002, de 78,5%.

Quanto ao mercado, a litigância alimenta um volume crescente de advogados. Assim, a litigância aumentada pode ter uma relação estreita com o número de advogados no Brasil. No levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sob o título Estudo comparado sobre recursos, litigiosidade e produtividade: a prestação jurisdicional no contexto internacional, publicado em novembro do ano passado, dados internacionais indicam que o Brasil é o quarto país com mais advogados por 100 mil habitantes entre pouco mais de 40 investigados. São 300,4 advogados, apenas atrás de San Marino, Luxemburgo, Grécia e Itália, na comparação com países da Europa e abaixo de Colômbia e Estados Unidos nas Américas.

Quando a taxa se refere à razão entre o número de advogados e juízes, a distância se amplia. Entre 24 países europeus, o Brasil é líder com uma taxa de 39,42. Quer dizer, para cada juiz, há pouco mais de 40 advogados. No que diz respeito ao volume de juízes, o cenário é outro. O país ocupa a 39ª colocação entre 48 países com 8,3 juízes por 100 mil habitantes. Nas Américas, entre nove países, ocupa a quinta colocação. Está atrás de Uruguai (14,6), Colômbia (11,7), Bolívia (9,1) e Estados Unidos (9,0) juízes por 100 mil habitantes. Mais uma prova da desigualdade de acesso.

Para quem pode

O professor Lenio Luiz Streck propõe análise tão lúcida quanto dura em relação à democratização do acesso à Justiça. Doutor em direito e pós-doutor em Direito pela Universidade de Lisboa, Portugal, Streck é professor titular da Unisinos, do mestrado e doutorado e leciona Direito Constitucional e Hermenêutica Jurídica. Abaixo, trechos da entrevista que ele concedeu ao Extra Classe por e-mail.

Extra Classe – Na Justiça e no mundo do Direito, como a desigualdade se manifesta?

Lenio Streck – Historicamente, o Direito no Brasil foi feito para proteger as camadas dominantes. O patrimonialismo está visível na legislação. No Brasil, o Direito Privado (civil principalmente) é feito para os que têm. Já o Direito Penal é feito – ainda hoje – para os que não têm. Qualquer dado estatístico mostra isso. Se eu fosse resumir a desigualdade de acesso à Justiça, usaria uma frase de um camponês de El Salvador, referida por José Jesus de La Torre Rangel: “La ley es como la serpiente; solo pica a los descalzos”. Já no Direito civil, a história é semelhante. A Lei de Terras, de 1850, foi exigência dos traficantes de escravos. Mas ela tinha bons elementos. “Casava” posse e propriedade. Daí a noção de terras devolutas. Somente em 1916 fizemos um Código Civil, que, entretanto, descasou posse e propriedade. E a terra se transformou em mercadoria. O resultado todos sabemos: a desigualdade no acesso à terra. Ou seja, desigualdade leva à desigualdade…!

EC – O processo judicial caro e demorado são as duas principais variáveis que, junto com o baixo poder aquisitivo da população, tornam a Justiça desigual?

Streck – Historicamente tem sido desigual. O problema decorre da estrutura da sociedade e da própria estrutura do Judiciário. Mas também decorre de um problema funcional, porque a legislação é elaborada de um modo excludente. Por fim, há também um problema individual, que decorre do imaginário dos juristas. É o que venho chamando, de há muito, a partir de um antigo texto do José Eduardo Faria, de crise do paradigma liberal- -individualista de direito. Fiz uma adaptação no meu Hermenêutica Jurídica e(m) crise, 10 a. ed., e agreguei a questão de que a crise seria de dupla face: de um lado, o problema do modelo liberal- -individualista, ou seja, o direito, preparado para enfrentar os problemas de cariz individual (delitos contra a propriedade etc. e disputas interindividuais no campo civil), não consegue resolver as demandas de uma sociedade que se torna mais complexa a todo o momento. Além disso, o processo judicial é caro. E, cada vez mais, o processo judicial se torna fragmentado. Só se pensa em efetividades quantitativas. Só que, de há muito, não mais nos preocupamos com a qualidade das decisões.

EC- Há quem diga que a falta de juízes oriundos de classes baixas (C, D e E) concorre para ampliar o abismo. O senhor concorda com isso?

Streck – Não creio que os juízes (ou promotores) venham das camadas dominantes. Hoje há uma corrida da pequena burguesia ou das classes médio-baixas em direção à máquina pública. Hoje, ser juiz ou promotor é uma forma de “subir na pirâmide social”. Os dados de que disponho mostram que cada vez mais a classe média (ou menos que ela) está chegando a esses pontos. Mas isso não quer dizer nada. O que acontece é que, ao chegar ao cargo, ocorre uma introjeção do imaginário. A origem da classe social não é mecanicamente determinante do comportamento do juiz. No meio disso há uma coisa chamada ideologia e a noção de imaginário social, enfim, o modo como cada um se coloca e vê o mundo e sê vê no mundo.

EC – Na sua opinião, o que deve ser feito para reduzir essa distância de tratamento entre ricos e pobres na Justiça?

Streck – A primeira coisa é democratizar as relações sociais. Democratizar as instituições. As leis devem ser readequadas e o modo como as aplicamos também. O que sustenta essa desigualdade toda é uma coisa que Luis Alberto Warat já denunciava como sendo o “senso comum teórico dos juristas”. No interior dele, o jurista fala sobre o Direito. Ali, as diferenças sociais “desaparecem” de forma ficcional. São as ficções da realidade e a realidade das ficções. E quem instrumentaliza esse senso comum (espécie de imaginário social ou subespécie do imaginário social)? A dogmática jurídica tradicional, reproduzida pelas faculdades de Direito, a partir de uma cultura manualesca, standard. Parcela considerável dos livros que hoje são utilizados nas salas de aula dos cursos de Direito pelo Brasil afora deveriam ter uma tarja como as das carteiras de cigarro: “o uso constante desse material fará mal a sua saúde mental”.

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