OPINIÃO

A infância e a escola

A que responde essa tendência difundida na sociedade atual, e sustentada por diretrizes do Ministério da Educação, de que as crianças entrem cada vez mais cedo no Ensino Fundamental?
Por Ieda Prates da Silva * / Publicado em 10 de junho de 2012
"Brincar, para a criança, é apropriar-se da realidade, um exercício do vir-a-ser"

Foto: Igor Sperotto

“Brincar, para a criança, é apropriar-se da realidade, um exercício do vir-a-ser”

Foto: Igor Sperotto

A que responde essa tendência difundida na sociedade atual, e sustentada por diretrizes do Ministério da Educação, de que as crianças entrem cada vez mais cedo no Ensino Fundamental? Por lei, os pais são obrigados a matricular seus filhos no 1º ano do Ensino Fundamental aos seis anos de idade. Porém, há casos de crianças que entram já aos cinco anos, por pressão dos pais e aceitação ou indicação das escolas.

A informação de que passaria a ser obrigatório o ingresso de toda a criança de seis anos no Ensino Fundamental chegou a ser comemorada como um passaporte de entrada do Brasil para o Primeiro Mundo. Seria mesmo? Quanto mais tenho trabalhado com crianças e adolescentes, principalmente na saúde pública, mais me parece que nos aproximaríamos de um Primeiro Mundo se nossas crianças permanecessem na escola até completarem o Ensino Fundamental, e avançassem para o Ensino Médio, ingressando depois no mercado de trabalho e/ou na universidade. Não é o fato de ter idade precoce ao entrar na educação formal, e sim o quanto avança em sua trajetória escolar que pode fazer a diferença, tanto na singularidade de cada criança quanto para o país.

Para uma pequena criança o mais importante é brincar. É através dessa atividade lúdica que ela se apropria da realidade, num exercício de encenação do “vir-a-ser”. É o tempo e espaço do faz-de-conta que lhe possibilita, ativamente, encenar situações que ela sofreu, que teme, que anseia ou com as quais sonha. Freud, como bom observador de crianças que era, enunciou que, para os pequenos, brincadeira não é o contrário de seriedade, pois nada mais sério para uma criança do que o brincar. Ou seja, é através da ficção que nos aproximamos e “domamos” a realidade, sendo a fantasia o recurso humano por excelência a possibilitar a “imaginarização” e “simbolização” da realidade.

Da mesma forma que nos preocupamos com um aluno que ano após ano não consegue se alfabetizar, devemos nos preocupar seriamente com uma criança que não consegue brincar, que não adentra o faz-de-conta.

Se encurtarmos o tempo do brincar e do fantasiar, exigindo da criança que muito cedo se atenha à aprendizagem formal, antes que ela tenha navegado suficientemente pelo mar da fantasia infantil, poderemos lhe estar empurrando para dificuldades e tropeços na vida escolar, que seriam provavelmente evitáveis se respeitássemos o seu tempo e a sua estruturação psíquica.

Muitos pais costumam argumentar que seu filho de cinco anos está interessado nas letras, ou já conhece a maioria delas. Mas, por que não deixarmos essa pequena criança brincar com as letras, deliciar-se ou intrigar-se ao escutá-las na voz de um adulto que lê para ela histórias infantis, por exemplo? É o adulto o portador das letras que vão fisgar a criança, que vão mergulhá-la na linguagem (primeiro falada e depois escrita), inicialmente através da relação mãe-bebê, seguindo nas brincadeiras, nos contos e músicas infantis, nas parlendas (versos e rimas que povoam o universo da criança).

Todas essas vivências e experiências do brincar antecedem e preparam a criança para a entrada no ensino formal. Por mais que se afirme que a proposta atual dos anos iniciais considere a dimensão lúdica da infância, permanece a expectativa familiar e social em relação à aprendizagem da lecto-escrita já no primeiro ano. A criança, mesmo com cinco ou seis anos de idade, passa a ter que responder à lógica do desempenho e a ludicidade própria da infância perde espaço. A ideia de que é preciso lotar as crianças de atividades produtivas, desconsidera justamente o fato de que é brincando de ser adulto – e não sendo ou parecendo ser adulto antes do tempo – que as crianças se preparam para a vida. Não devemos nos apressar em fazê-las responder às exigências que regulam a vida adulta, o que não quer dizer nos livrarmos da incumbência de lhes transmitir valores básicos para o viver em sociedade.

*Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), psicóloga da Secretaria de Saúde de Novo Hamburgo, onde desenvolve atividades clínicas no Centro de Atenção Psicossocial para Infância e Adolescência (CAPSi), assessoria técnica da Smed e do Programa Amigos do Bebê; e supervisora clínico-institucional do CAPSi do Grupo Hospitar Conceição, em Porto Alegre.

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