JUSTIÇA

O privilégio da impunidade

Cresce mobilização pelo fim do foro privilegiado, visto como estímulo à impunidade e ao surgimento de figuras intocáveis no Judiciário
Por Clóvis Victória e Gilson Camargo / Publicado em 10 de junho de 2012
Choque de classes: os ministros Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes se enfrentaram em sessão do STF durante debate sobre o foro privilegiado

Foto: Nelson Jr

Choque de classes: os ministros Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes se enfrentaram em sessão do STF durante debate sobre o foro privilegiado

Foto: Nelson Jr

A extinção do foro privilegiado para julgamento de crimes comuns cometidos por autoridades dos três poderes será analisada nos próximos meses na Câmara dos Deputados. Se aprovada em plenário, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC 142/12), de autoria do deputado Rubens Bueno, do PPS do Paraná, deverá acabar com a distinção entre nobres e povo, uma herança da época em que os direitos eram determinados pelos títulos de nobreza, o que não faz sentido em um regime republicano em que todos são iguais perante a lei.

Sem o foro privilegiado, presidentes da República, ministros de Estado e governadores, deputados, prefeitos e vereadores passam a ser julgados pela primeira instância da Justiça comum e não por órgãos específicos, como o Supremo Tribunal Federal ou Superior Tribunal de Justiça. A proposta não extingue completamente os privilégios, preservando o julgamento por órgão especial no caso de crimes de responsabilidade. Como esse tipo de crime tem caráter mais político, como o atentado contra o funcionamento dos poderes, o exercício dos direitos políticos, sociais e individuais e a improbidade administrativa, o foro funciona como proteção para a função pública e não para a pessoa que a desempenha.

Antes mesmo de chegar à Comissão de Constituição e Justiça para análise e posterior votação em plenário, a proposta colocou na pauta a questão dos privilégios, dividindo opiniões. “A sociedade não aceita mais que haja cidadãos de primeira e de segunda classe”, sentenciou o autor da PEC, que atribui à sobrecarga de trabalho dos tribunais superiores a origem da impunidade. “Qualquer cidadão tem de ser julgado pelos seus crimes, pelos seus atos de forma igual no país”, completa o presidente da Câmara, Marco Maia, defendendo o fim do foro privilegiado. “Ele privilegia as autoridades e isso nos leva, muitas vezes, à impunidade. Então, esse foro privilegiado é o caminho da impunidade”, conclui. Para Nelson Marquezelli (PTB/ SP), o foro nos tribunais superiores, em uma única instância, é o que garante a Justiça. “Quando você coloca o homem público, tem que fazer um julgamento rápido, transparente e com aquele que decide, que está no topo do Judiciário”, justificou em entrevista à Rádio Câmara. Jovita José Rosa, da direção colegiada do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, discorda. Para ela, o foro garante a impunidade.

A convicção de que o julgamento por foro especial é um caminho para a impunidade na maioria dos casos é reforçada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). Segundo a entidade, do total de ações penais instauradas diretamente em virtude do foro privilegiado perante o STF, de 1988 a 2010, só 4,6% foram julgadas. No caso do STJ, apenas 2,2%. Dos 130 processos que chegaram ao STF, seis foram concluídos e com a absolvição dos réus. Outros 13 prescreveram antes de ir a julgamento. Das 483 ações recebidas pelo STJ, 16 foram julgadas, resultando em cinco condenações e 11 absolvições, e 71 ações prescreveram antes do julgamento.

Todos esses processos têm como réus parlamentares, ministros e governadores. “A magistratura é contra o foro privilegiado. Sem essa previsão legal haveria mais celeridade e transparência na tramitação dos processos, pois o foro especial dissemina uma sensação de impunidade na sociedade”, ressalta o vice-diretor da AMB no Rio Grande do Sul, Diógenes Hassan Ribeiro.

“No país em que o Judiciário vergonhosamente se caracteriza pela exclusiva condenação dos famosos três pês – pretos, pobres e prostitutas –, a honesta atuação de setores do Ministério Público, aqueles contrários ao MP light, faz com que seja necessário, por intermédio do STF, formado por ministros democraticamente escolhidos pelo monarca, que se proteja, via foro privilegiado, os três pês da outra classe: presidente, prefeitos e parlamentares”, critica Abrão Amisy Neto, subprocurador para Assuntos Jurídicos do MP de Goiás. A extinção do foro privilegiado, diz, é uma posição fechada no MP em nível nacional, que também tenta impedir a sua ampliação para os casos de improbidade administrativa. “O foro é uma opção por um sistema que, na teoria, busca proteger o cargo e que, na prática, protege pessoas”, define Neto.

A ministra Eliana Calmon, que já sugeriu a existência de uma “quadrilha de toga” no país, referindo-se a casos de corrupção no Judiciário, afirmou que o foro privilegiado estimula a impunidade. “É próprio de uma ‘república de bananas’, (e serve) para deixar a salvo as pessoas que querem ficar à margem da lei”, disse, ao anunciar a mobilização de juízes e procuradores que querem o fim desse privilégio. O STF já determinou a extinção do foro privilegiado para ex-ocupantes de cargos públicos até 15 de setembro de 2005.

Ministros do STF divergem 

Em 22 de abril de 2009, uma latente diferença de trajetórias, de herança e cor da pele se materializou numa discussão pública entre dois ministros do STF. O estopim da crise foram divergências em relação ao foro privilegiado entre Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes – que acabaram expondo um conflito de classes e de interesses na mais alta corte do país. Único negro no Supremo, Barbosa acusou Mendes de “destruir a credibilidade da Justiça brasileira” e disparou que não era seu “capanga” do Mato Grosso. A afronta ao então presidente tinha alguns motivos: como presidente do STF, entre 2008 e 2010, Mendes concedeuhabeas corpus aos banqueiros Salvatore Cacciola e Daniel Dantas Mendes, era contra a liberação de pagamento de previdência social a funcionários públicos do Paraná e defendia o foro privilegiado.

Barbosa é contra o estatuto do julgamento de deputados federais, desembargadores, juízes, prefeitos, governadores e oficiais das forças armadas apenas por instâncias superiores do Judiciário. Costuma dizer que o STF jamais condenou um político. Barbosa é o primogênito de oito irmãos, filho de um pedreiro e de uma dona de casa. Aos 16 anos, deixou o Nordeste de Minas e foi trabalhar na gráfica do jornalCorreio Braziliense para custear o segundo grau. Formou-se em Direito na UnB e fez doutorado na França.

A biografia de Mendes também ostenta doutorado em Direito, na Alemanha. Mas o que o distancia da trajetória de Barbosa é a sua descendência. O clã dos Mendes é conhecido, no Norte do país, por ocupar posições de alta patente em tribunais regionais de vários estados. O pai, Francisco Mendes, é nome de estrada em Mato Grosso. O avô, Joaquim Mendes, presidiu o TJ de Mato Grosso por quase dez anos.

O pesquisador Frederico Normanha Ribeiro de Almeida, em sua tese de doutorado A nobreza togada: as elites jurídicas e a política da justiça no Brasil, da Faculdade de Ciências Políticas da USP, em 2010, identificou as relações entre ocupantes de cargos no sistema judiciário e a transmissão de poder. Segundo ele, isso ocorre por meio da elaboração de leis, de homenagens apologéticas nas mídias especializadas ou dos bustos laudatórios e da literatura especializada.

O trabalho acompanhou a trajetória de sobrenomes de cargos de chefia em instituições públicas do campo jurídico, como o STF, o STJ, tribunais de Justiça estaduais e federais e até na OAB. Os mesmos juízes que decidem sobre uma sentença encontram outros “iguais” de classes superiores no poder Legislativo e no poder Executivo e muitos declaram que gostam de jogar golfe ou fazer equitação, ostentando um comportamento que consideram “de elite” e atuam no Judiciário para manter as posições de poder. O pesquisador aponta ainda que os concursos públicos e as faculdades de Direito são instrumentos dessa reprodução e garantia de poder. Almeida identifica o foro privilegiado como indicador de que a desigualdade no Brasil se mantém desde a primeira Constituição, em 1824, e é uma herança da origem colonial.

O artigo 179, por exemplo, restringia o foro privilegiado aos casos cíveis e criminais, abrindo uma brecha para outros casos, como os crimes políticos e de colarinho branco. A Constituição de 1988 é ambígua, pois impede a existência de foro privilegiado, mas adverte sobre suas exceções.

A apropriação do poder

Para Cattani, elites procuram se perpetuar no poder

Foto: Igor Sperotto

Para Cattani, elites procuram se perpetuar no poder

Foto: Igor Sperotto

As desigualdades e os seus mecanismos de reprodução são analisadas pelo professor da Pós- -graduação em Sociologia da Ufrgs, Antonio David Cattani. Para ele, “não é a ideia de privilégio que está presente. São os privilégios objetivos”, ou seja, assim como as desigualdades, eles existem de fato no país, ressalta. “Não apenas são detectáveis, como são evidentes”. Segundo Cattani, entre as principais estratégias de manutenção de privilégios que a elite brasileira emprega está a ocupação de cargos públicos e a sabotagem das reformas, especialmente a fiscal. A seguir, quatro tópicos relacionados à desigualdade social, apontados pelo especialista.

Donos do poder
“O Brasil sempre foi muito desigual. Desde os primórdios da colonização, foram estruturadas rígidas hierarquias na posse da terra e na exploração dos recursos naturais. Como demonstrou Raimundo Faoro em Os donos do poder (1958), segmentos minoritários das classes abastadas conseguiram dominar o aparelho de Estado de maneira a assegurar a apropriação de recursos além da esfera produtiva. Até hoje, a concentração de renda é muito grande e, sobretudo, a posse da riqueza é entendida como direito adquirido”.

Ricos anti-impostos
“Os ricos não aceitam pagar impostos na mesma proporção dos demais cidadãos, estão barrando as reformas tributárias que visam taxar as grandes fortunas e resistem às tentativas de reforma agrária. As classes abastadas conseguiram manter inexpressiva a taxação sobre heranças e sucessões. Por seus prepostos no Congresso e na Administração Federal fizeram com que o sistema tributário fosse orientado para a ampliação da base de arrecadação preservando os ganhos do capital. Isso explica por que a carga tributária incide basicamente sobre o consumo, o que penaliza as camadas mais pobres, enquanto que os dividendos do capital são isentos”.

Mais Estado, menos Estado 
“A estratégia de preservação dos privilégios das classes abastadas contém uma grande contradição: ao mesmo tempo exigem investimentos em segurança, aceitam gastos sociais na Saúde e na Educação, mas se recusam a contribuir. Exigem maiores gastos específicos do Estado, mas lutam pelo Estado mínimo, fomentando campanhas do tipo ‘Chega de tanto imposto’”.

Justiça fiscal
“A justiça fiscal é um processo indispensável para uma sociedade mais equilibrada. Isonomia no pagamento de tributos, fim dos paraísos fiscais, combate à sonegação são alguns dos objetivos das campanhas cívicas, a exemplo da iniciativa do Instituto Justiça Fiscal, de Porto Alegre”.

De engraxate a desembargador

Sejalmo: “no Brasil, o negro é o último a sercontratado e o primeiro aser dispensado”

Foto: Igor Sperotto

Sejalmo: “no Brasil, o negro é o último a sercontratado e o primeiro aser dispensado”

Foto: Igor Sperotto

O juiz Sejalmo Sebastião de Paula Nery é o único negro entre os 140 desembargadores gaúchos. Aos 69 anos, é o titular da 14ª Vara Cível do TJ/RS. Até chegar à posição de mais alto prestígio no Direito estadual, percorreu uma trajetória que também destoa dos seus pares no sistema judiciário. Por seu gabinete, faz questão de frisar, chegam cerca de cem processos por dia, a maioria envolvendo demandas sobre consórcios de automóveis, arrendamento e usucapião. Em 2008, chegou a decidir 24.108 processos. “Trato todo mundo de forma igual, procuro compreender, conciliar, trazer solução para a vida das pessoas e não apenas vitórias ou derrotas judiciais”. Esse comportamento receptivo, explica, vem da sua formação, das dificuldades enfrentadas por alguém que não tem sobrenome europeu, foi menino de rua, sofreu preconceito até na hora de se formar em Direito, em 1971, quando foi barrado no baile de formatura. Considera que seu ingresso na magistratura é sinal de que algo mudou no sistema judiciário, mas o fato de ser somente um negro entre 139 magistrados brancos indica que muito precisa mudar. “Hoje o Judiciário é um baluarte de ajuda aos mais necessitados. O Direito tem sido a profissão em que pessoas como eu mais têm conseguido entrar”, constata.

Natural de Vacaria, filho de uma costureira e de um enfermeiro do Exército, Sejalmo conta que se virou como pode para estudar. Na infância, vendia lenha, engraxava sapatos e passava a maior parte do tempo na rua. Na escola, quando dizia que seria advogado, era motivo de escárnio dos colegas. “Aos 15 anos, constatei o óbvio: se não fizesse nada pra mudar de vida, definitivamente, ninguém faria”. Fez concurso público, passou e se tornou professor ainda na adolescência, mas isso não era o suficiente. “Queria ser juiz e ouvi que negro não entrava na magistratura e que eu nunca iria passar”. Ele relata que trabalhou na universidade para pagar os estudos e foi vereador por 12 anos em São Leopoldo pelo PTB, antes do Golpe Militar, e depois, pelo MDB. Pai de cinco filhos, todos com curso superior, defende a política de cotas para afrobrasileiros e diz que costuma aplicar o que aprendeu na experiência dura de sua vida na rotina como desembargador. “Auxiliar os outros é uma estrada de duas mãos. Se tu ajudas na ida, recebes na volta”, ensina.

 

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