OPINIÃO

Pão nosso de cada tempo

Por Fraga / Publicado em 10 de agosto de 2012

Fraga

Ilustração: Rafael Sica

Ilustração: Rafael Sica

O trigal demora a dourar, o manancial filtra água devagar, a salina precisa de tempo para secar. Em algum tempo isso tudo junto vai dar em pão. Mas o ciclo tem seu ritmo até chegar, entrar e sair do forno.
Ou tinha.

Agora a agricultura transgenicou-se, a água evaporou-se, o sal iodou-se. O trigo, a água e o sol andam passando maus bocados até virarem a mesma massa apressada e serem fatiados às pressas à mesa.

Antes, porém, era a calma. Era o córrego e a espiga enamorados na planície, à espera de um tórrido encontro entre quatro paredes refratárias. O grão moído e a gota úmida unidos pelo fogo deles mesmos, pelo ardente clima ao redor deles. Para que a farinha e a água se fundissem na quentura, os cafetões da padaria punham muita lenha na fogueira. Até o par virar uma coisa só, assim ou assado.

De tudo que os padeiros eram capazes antigamente, a maior capacidade era dar tempo ao pão. A vida precisava fermentar.

E fermentada, precisava da compreensão das mãos hábeis, que acariciavam a massa para cada tipo de destino, em diferentes fornadas.

O pão mais lento que havia era o pão sovado. Do descanso inicial, das horas sossegadas em cima da mesa, a massa então recebia os golpes suaves, o amasso vigoroso mas vagaroso dos padeiros. Isso se repetia por um tempo interminável, numa sova tranquila.

Quando enfim a massa, cansada de tantas torções, cedia ao amálgama forçado, o pão sovado ia pro seu caloroso ritual. Ao sair do forno, não era mais igual a nenhum pão. Era macio que só ele. E suas fatias exibiam uma lisura superficial, onde a manteiga e a chimia se esparramavam, loucas pelo deslizar no pão sovado.

Foi aí que veio a pressa, inimiga dessa refeição.

A mão, calma e morna, deu lugar à máquina, fria e forte. As padarias, chicoteadas por milhões de relógios esfomeados, aceleraram o pão. O fermento não pôde mais descansar sobre as tábuas. A sova ficou mais curta, poucos tapas a mais que na massa comum. Foi o fim do pão sovado, como o conhecíamos.

Porque a fornalha tinha que apressar o cozimento, as fornadas precisavam ficar céleres, o café da manhã devia ser feito em 100 metros rasos. Daí as padarias perderam a prática do vagar. E nas prateleiras, falsos pães sovados têm crise de identidade. Da sova, apenas algumas pancadas; têm corpo tão aerado quanto qualquer outro tipo de pão.

Em muitos lugares, o córrego e o trigal ainda se espiam na paisagem. Ao sol, o córrego marulha; na brisa, o trigal suspira. Sovam lembranças de outrora.

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