SAÚDE

Aids: tendência de aumento entre jovens

O Rio Grande do Sul registra mais do que o dobro da média nacional na taxa de incidência da doença e existe pouco investimento público na prevenção
Por Flavia Bemfica / Publicado em 7 de setembro de 2012
Conforme Boletim Epidemiológico, a taxa de infecção pelo HIV na juventude deve aumentar | Foto: João Souza Junior/divulgação

Foto: João Souza Junior/divulgação

Conforme Boletim Epidemiológico, a taxa de infecção pelo HIV na juventude deve aumentar

Foto: João Souza Junior/divulgação

No final de agosto, um manifesto de instituições e pesquisadores passou quase despercebido do grande público e teve pouca repercussão na imprensa. Intitulado O que nos tira o sono?, o documento afirma que o Brasil perdeu o controle sobre a epidemia da Aids e que hoje dispõe de um programa desatualizado e insuficiente para enfrentar a configuração nacional da doença. Ele pode ser taxado de alarmista por gestores públicos e outra parte dos pesquisadores. Afinal, ser portador de HIV deixou de ser uma sentença de morte e novas descobertas de tratamento surgem a cada ano. O país investe pesado na distribuição de medicamentos de combate à epidemia (R$ 900 milhões à compra de coquetéis só no ano passado). E o Boletim Epidemiológico Aids e DST 2011, do Ministério da Saúde, aponta para uma estabilização da taxa da doença ao longo dos últimos 12 anos.

Mas há sempre o outro lado: no mesmo período, por regiões, a taxa de incidência da doença diminuiu apenas no Sudeste e aumentou no Sul, Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Ainda conforme o boletim, a taxa de prevalência da infecção pelo HIV na população jovem apresenta “tendência ao aumento”. As campanhas de prevenção não se comparam àquelas realizadas no decorrer dos anos 90. A disseminação do vírus entre heterossexuais não recebe a devida divulgação. E o Brasil continua a quantificar oficialmente apenas os casos de Aids e não os de infecção por HIV.

O título do manifesto, a propósito, é uma alusão à participação do Brasil na XIX Conferência Internacional de Aids, realizada em Washington, nos Estados Unidos, no final de julho. Durante a conferência, questionado sobre o que lhe tirava o sono hoje, o representante do governo brasileiro respondeu que dormia tranquilo. Se os gestores nacionais dormem tranquilos, o que dizer daqueles que atuam em solo gaúcho? Porque, quando o tema é Aids, o Rio Grande do Sul e Porto Alegre batem praticamente todos os recordes.

Recorde negativo

Ainda existe muita morosidade com os exames e consultas e o início dos tratamentos com antirretrovirais | Foto: João Souza Junior/divulgação

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Ainda existe muita morosidade com os exames e consultas e o início dos tratamentos com antirretrovirais

Foto: João Souza Junior/divulgação

Apesar de o Rio Grande do Sul ser o recordista da taxa de incidência de Aids, com 37,6 casos para cada 100 mil habitantes (mais do que o dobro da média nacional), de Porto Alegre liderar o ranking brasileiro (seja entre capitais ou entre todas as cidades), e de quatro das cinco cidades com as maiores taxas de incidência da doença serem gaúchas, o comportamento preventivo ou os investimentos em prevenção estão muito distantes do necessário. Para Márcia de Ávila Leão, uma das coordenadoras do Fórum ONG/Aids do Rio Grande do Sul, entre gaúchos a epidemia avança bastante em função do descaso da gestão pública. “Nos últimos dez anos não tivemos investimentos em saúde no geral e muito menos em prevenção à Aids, que deixou de ser prioridade. Tanto no estado como em Porto Alegre, as coisas começaram a mudar nos últimos dois anos, mas ainda são pequenas alterações, e que não produzem resultados imediatos”, avalia.

Márcia refere-se ao fato de que o estado, a capital, e mais um sem número de municípios nem sempre utilizam ou usam apenas em parte os recursos federais disponibilizados anualmente por intermédio dos Planos de Ações e Metas (PAMs) para a Aids. O RS, por exemplo, tem um saldo de R$ 21,4 milhões. Porto Alegre, de R$ 3,8 milhões. Os PAMs são divididos em quatro áreas de atuação, que compreendem nove eixos prioritários. Dentro deles, estados e municípios apresentam anualmente projetos para obter as rubricas. O governo federal entra com uma parte, estados e municípios com contrapartidas. Mesmo que os projetos não sejam executados, os recursos continuam a chegar.

“As duas gestões estaduais anteriores a esta não usavam os recursos e, em Porto Alegre, tivemos até um secretário de Saúde que, por questões religiosas, não priorizava o combate à epidemia”, reclama Márcia. A situação no RS chegou a tal ponto que, em 2009, a não execução dos recursos do PAM foi alvo de uma auditoria do Denasus. Mas somente agora é que o estado está sendo intimado a responder.

CONTRAPONTO − De acordo com o coordenador do Programa Estadual de DST/Aids da Secretaria de Saúde do Estado, Ricardo Charão, os recursos do PAM, referentes a incentivos a serem repassados à sociedade civil, a casas de apoio, a aquisição de fórmula láctea e a apoio para o estado desenvolver suas próprias ações somam R$ 4 milhões ao ano, com contrapartida de 20% por parte do gestor estadual. “Hoje colocamos até mais de 20%”, assinala. Ele diz ainda que o saldo do Rio Grande do Sul junto ao PAM já é inferior a R$ 21 milhões e que, em negociação com o Fórum ONG/Aids, o governo fez um cronograma da execução dos recursos até 2014.

Charão confirma, porém, que o saldo existe porque em anos anteriores o governo não habilitou casas de apoio e nem fez repasses para a sociedade civil. “Há uma morosidade da máquina pública no caso da execução e, quando não há vontade política, a situação piora”, avalia.

Demora no encaminhamento é obstáculo

Outra questão determinante para portadores de HIV e entidades civis que trabalham com o tema é a demora para o encaminhamento aos tratamentos. A rede hoje disponibiliza os chamados testes rápidos, mas, em caso de confirmação da presença do HIV, a pessoa é encaminhada para consulta. Entre a marcação e o atendimento podem se passar três meses, ou mais. A demora acontece também para a realização e obtenção dos resultados dos exames de carga viral e células CD4, que vão determinar se quem é portador de HIV deve ou não iniciar o tratamento com antirretrovirais.

“No estado precisamos aperfeiçoar a oferta de consultas e dos exames de carga viral e CD4. Temos como meta tirar o RS do topo da lista, mas isso não é uma tarefa fácil. As pessoas sabem da importância da prevenção e, mesmo assim, há a opção pelo não cuidado”, diz o coordenador do Programa Estadual de DST/Aids da Secretaria de Saúde do Estado, Ricardo Charão. Ele avalia ainda que as grandes campanhas de prevenção, que praticamente deixaram de acontecer, não causam o mesmo impacto do que no passado. “Hoje há muita dificuldade em mobilizar a população, há uma preponderância do individualismo e apesar de tentarmos fazer campanhas que atinjam a todos, isto é cada vez mais difícil devido à grande fragmentação da sociedade”.

“Nossa meta é tirar Porto Alegre do primeiro lugar da lista, mas não temos como informar quando isso vai acontecer. A máquina é emperrada e a Aids tem causas multifatoriais. A transmissão vertical (de mãe para filho), por exemplo, poderia estar zerada”, admite o coordenador da área técnica de DST/Aids e Hepatites Virais da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, Gerson Winkler.

Winkler admite que em Porto Alegre o diagnóstico ainda é tardio, e que de fato as consultas podem ser marcadas para vários meses depois, mas afirma que não existe problema em relação aos testes de carga viral e CD4. “O problema das consultas é que entre 170 e 180 pessoas ingressam mensalmente no sistema para serem atendidas. Teríamos que aumentar a capacidade do serviço na mesma proporção. Este é o gargalo da epidemia aqui. E, claro, temos que falar do acesso aos serviços de saúde. Sim, ele ainda é difícil, principalmente entre as populações vulneráveis”, completa.

“Eu me sinto um ET”

Tenho 30 anos e não sei há quanto tempo estou com o vírus. Não tenho sintomas e o médico me disse que, depois do contágio, levam uns quatro ou cinco anos para as CD4 começarem a diminuir. As minhas estão normais, mas a sensação é difícil. A gente sente um alívio porque parece que tá tudo bem. E uma agonia porque sabe que um dia as coisas começam a acontecer. Às vezes eu me sinto um ET. No meio de um monte de gente parece que todo mundo é igual. Eu sei, sou igual, mas diferente. A gente também tem preconceito, afinal. As vezes me sinto muito triste. Às vezes qualquer coisa me deixa feliz, porque acho que agora entendo o significado da palavra viver de um jeito que a maioria das pessoas não conhece. Eu descobri o HIV por acaso, no meio de uma bateria de exames. Avisei meu ex-marido. Ele também tem o vírus. Como fui fiel, acho que não fui eu, mas também isso agora não tem muita utilidade. Quando descobri, minha vida acabou. Não conseguia me relacionar, e nem pensar em namorar. Pior, me interessar de verdade por alguém e ter que contar. Isso tá mudando um pouco. Eu gostaria, por exemplo, de ter filhos, e o médico me disse que isso não é impossível.
(M.C.S, depoimento)

25 anos controlando o vírus

Em 28 de agosto de 1987, fui ao Hospital de Clínicas receber o exame que havia feito no mês anterior. O médico entrou na sala e disse a queima- -roupa: “Seu exame de HIV deu positivo, essa doença não tem cura, a estimativa de vida é de dois a três anos. Sabemos muito pouco sobre essa doença, sabemos que se pega através do sexo sem proteção, das seringas compartilhadas e da transfusão de sangue. Não há tratamento no Brasil e a medicação é o AZT importado dos Estados Unidos, o custo da medicação é muito caro”. Saí do HC e entrei no primeiro bar que encontrei e ali fiquei por muitas horas bebendo e me considerando o pior ser humano do mundo. Minha família só ficou sabendo alguns anos depois, quando comecei a tomar o coquetel. Eram 24 comprimidos duas vezes ao dia, os efeitos colaterais eram terríveis, mas era a única maneira de prosseguir vivendo. Logo apareceram dois novos exames primordiais para combater o vírus: o exame de carga viral e o CD4. Os anos foram passando e eu me cuidando e cuidando das pessoas com quem me relacionava. Minha vida sexual é normal, claro que sempre com camisinha. Nunca fiquei doente. Tenho o vírus há 25 anos. (M.C.S, depoimento)

Iniciativas em curso no estado e na capital

O coordenador da área técnica de DST/Aids e Hepatites Virais da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, Gerson Winkler, assegura que, daqui a algum tempo, o teste rápido estará disponível em toda a rede de atenção primária da capital. “Há um ano estamos implantando e hoje entre 30% e 40% das 250 unidades o realizam.” Conforme o coordenador, nos últimos dois anos também tem sido feito um reordenamento na assistência, de forma a aumentar o diagnóstico precoce. “Uma mulher jovem com herpes, por exemplo. O serviço de saúde tem que ser eficiente a ponto de encaminhar esta paciente para um diagnóstico mais detalhado, já que herpes é um sintoma associado à baixa imunidade”.

O estado vai autorizar o laboratório da Faculdade de Farmácia da Ufrgs a realizar testes de carga viral e células CD4. Com o credenciamento passarão a oito os laboratórios que realizam os dois testes na rede pública no RS. O laboratório da faculdade fará 9,8 mil exames ao ano.

O estado também pretende aproveitar a implantação da Rede Cegonha no RS para começar a oferecer os testes de HIV para gestantes e populações prioritárias em todas as 2,7 mil unidades básicas de saúde do estado. A estimativa do coordenador do Programa Estadual de DST/ Aids da Secretaria de Saúde do Estado, Ricardo Charão, é de que até o final de 2012 os testes estejam disponíveis pelo menos nas unidades da região Metropolitana de Porto Alegre.

Maior proporção de casos após os 40 anos

Com relação às faixas etárias, observa-se que a maior proporção de casos de Aids notificados no Sinan, declarados no SIM e registrados no Siscel/Siclom em 2010, na Região Sul, encontra-se entre os 40 e 49 anos de idade (21,0%), seguida pela faixa etária de 30 a 34 anos de idade (18,9%). Em 2010, a faixa etária que exibe a maior taxa de incidência na região é a de 30 a 34 anos de idade (62,3 casos/100.000 hab.), seguida pela faixa de 35 a 39 (62,1), e de 40 a 49 (52,1). Ainda com relação às faixas etárias, entre 1998 e 2010 observou-se uma importante diminuição da taxa de incidência de casos de Aids nas faixas de 20 a 24, de 25 a 29, e nos menores de cinco anos, com aumento da taxa de incidência entre cinco e 12 anos e em todas as faixas etárias após os 30 anos de idade. Na faixa dos 13 aos 19 a taxa de incidência, na faixa dos 4,5 casos/100.000 hab., se mantém estável há anos. Houve uma queda entre os anos de 2005 e 2006, mas depois ela voltou aos patamares anteriores.

Mitos ajudam a propagar a transmissão 

A taxa de incidência nacional de Aids é de 17,9 casos para cada 100 mil habitantes, conforme os últimos dados do Ministério da Saúde, referentes a 2010. Mas, no Rio Grande do Sul, ela é de 37,6 casos para cada 100 mil habitantes. A maior do país. Desde o ano 2000, o estado não sai do topo da lista. Conforme os números da Secretaria de Saúde do Estado, a cada ano surgem entre 3,5 mil e 3,7 mil novos casos de Aids no RS. A eles somam-se cerca de 1,2 mil novos casos de HIV ao ano.

Entre as capitais, é Porto Alegre quem lidera o ranking nacional, seguida por Florianópolis. Elas ocupam os dois primeiros lugares desde 1998. Em 2010 a taxa de incidência de Aids na capital gaúcha foi de 99,8 casos para cada 100 mil habitantes. Apesar de estar em segundo lugar, a taxa de Florianópolis é quase a metade: 57,9 casos a cada 100 mil habitantes. A situação não melhora quando são considerados todos os municípios brasileiros com população superior a 50 mil habitantes. Dos cinco com as taxas mais elevadas, quatro são gaúchos. Aqui, além da capital, puxam a lista Alvorada, em 2º lugar nacional (81,8), Uruguaiana, em 4º (67) e Sapucaia do Sul, em 5º. (66,4). Em 10º lugar está Canoas, em 12º São Leopoldo, em 13º Esteio e em 18º Viamão.

Em 1998 a taxa de incidência de Aids no Rio Grande do Sul era de 28,9 casos a cada 100 mil habitantes. Ou seja, houve um aumento de 30% entre 1998 e 2010. Quando começam os questionamentos a respeito dos motivos que levam o estado e a capital a ostentarem números tão chocantes, uma das explicações é de que, aqui, há mais diagnósticos. A explicação é geralmente utilizada para demonstrar que onde há mais prevenção os números negativos às vezes também são maiores. Mas o argumento não explica o fato de que, em 2010, o coeficiente de mortalidade no país tenha sido de 6,3 óbitos para cada 100 mil habitantes e, no Rio Grande do Sul, de 13,6. De novo, o maior do Brasil.

O descaso recente das políticas públicas não é o único fator a explicar a alta incidência da doença em solo gaúcho. De acordo com a infectologista Cynara Carvalho Nunes, do Complexo Hospitalar Santa Casa, há outras causas. Entre elas, o fato de no RS predominar o subtipo C do vírus HIV, mais agressivo e ligado à transmissão heterossexual. “O subtipo B, que predomina no Rio de Janeiro e em São Paulo, é relacionado à prática de sexo anal, enquanto que o C à prática vaginal. Chegamos à conclusão de que, além da questão do subtipo, casais heterossexuais, principalmente os com relação estável há algum tempo, não têm o hábito de usar preservativo e isto é um costume difícil de mudar”, salienta.

A crença de parte significativa dos homens de que não serão infectados em relações heterossexuais ou de que são muito baixas as chances de serem infectados em uma única relação são dois outros mitos que ajudam a propagar a transmissão. A médica destaca ainda que o fato de a Aids deixar de ser uma sentença de morte acabou fazendo com que parte das pessoas relaxasse na prevenção. E lembra a atenção que deve ser dada à chamada janela imunológica (o intervalo de tempo entre a infecção pelo HIV e a produção de anticorpos anti-HIV no sangue). Durante este período, que varia de 30 a 120 dias, os testes de HIV podem dar um resultado falso negativo.

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