SAÚDE

Caderno especial Erni recebeu um coração novo

A história e a conjuntura atual do sistema de transplantes no estado e no país com entrevistas de médicos e de transplantados, são tema deste caderno especial
Por Clarinha Glock e Marcia Camarano (textos), com fotos de Igor Sperotto / Publicado em 7 de setembro de 2012

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

No dia 31 de julho de 2012, Erni Sebastião Paiva Barros e sua esposa, Rosane Marçal, chegaram atrasados à entrevista com o Extra Classe, no Instituto de Cardiologia, em Porto Alegre.

É que o trânsito desde Rio Pardo, a cerca de 140 km da capital, estava conturbado. Para Barros, 50 anos, motorista aposentado há 14 – desde que teve o último infarto –, o tempo sempre teve um significado especial: segundos seriam decisivos se fosse chamado para um transplante.

Fumante inveterado e amante da carne gorda do churrasco, relata que recebeu uma ponte mamária e duas safenas após dois infartos.

NESTA REPORTAGEM
“Foram 14 cateterismos, uma angioplastia e uma tentativa de tratamento com células-tronco”, completa.

Desde 19 de janeiro de 2009, um marca-passo com desfibrilador mantinha seu coração batendo. O aparelho custou R$ 96 mil pagos pelo SUS.

Os médicos queriam incluí-lo na lista de espera para transplante há três anos e meio, mas ele hesitava. Seus pais, um irmão e um filho morreram devido a problemas cardíacos.

O auxílio de uma psicóloga e a insistência da filha fizeram com que mudasse de ideia. “Ela dizia que eu tinha de viver para conhecer meu neto”.

Gustavo, o neto, completou um ano em agosto. Outra razão: o sobrinho-neto que ajuda a criar e que recebeu o nome do seu filho.

“A espera é uma angústia e estou consciente dos riscos, mas quero ver as crianças crescerem”, disse.

Na noite em que deu essa entrevista, foi chamado para o transplante. Na manhã de 1º de agosto de 2012, recebeu um coração novo.

Recuperando-se da cirurgia, prometeu: “Vou me cuidar, não quero desmerecer o que fizeram por mim. Desde que me operei, às vezes acordo no meio da noite, gargalhando, de pura alegria”, revela.

Subnotificação reduz em 50% potenciais doadores

Foto: Carolina Leal/Santa Casa

Foto: Carolina Leal/Santa Casa

O trabalho das equipes de transplantes, além da corrida contra o tempo, enfrenta as dificuldades de diagnóstico para a morte encefálica de doadores. Em alguns locais do país não há condições para um trabalho mais preciso.

“É necessário pensar que o doador estará sempre internado em uma Unidade de Tratamento Intensivo (UTI), junto com um paciente vivo, disputando a atenção da mesma equipe que cuida dos que estão ali em tratamento”, compara a assistente social Maria Marta Leirias.

A enfermeira Heloísa Foernges enfatiza que “não existe doação de órgãos na rua, o indivíduo deve estar em uma UTI para que haja todas as condições de manutenção e captação”.

“Nosso trabalho é buscar pacientes com morte cerebral, facilitando o processo de diagnóstico”, explica o neurocirurgião Cassiano Ughini Crusius, coordenador da OPO 4, do Hospital São Vicente de Paulo, de Passo Fundo, que atende também a região Missioneira.

Ele ressalta que o processo é criterioso: são realizados sete testes clínicos para avaliar os reflexos neurológicos do paciente.

Depois de seis horas, o processo é repetido por outro médico, e por fim é feito um exame de imagem para evidenciar a ausência de fluxo sanguíneo no cérebro do doador e assim confirmar a morte cerebral.

“Não se abre o protocolo de doação enquanto houver qualquer fator que possa confundir o processo, como um paciente em anestesia ou hipotermia”, assegura.

Crusius acredita que ainda há desinformação e resistência entre alguns médicos para abrir o protocolo. De qualquer forma, a palavra final sobre a doação é sempre dos familiares.

A OPO implantada em janeiro de 2011 em Passo Fundo aumentou em 80% a efetivação de doações na região.

A Central de Transplantes/RS possui a guarda dos dados dos doadores em condições de doar. E é responsável efetivados como doadores. Muitas perdas se dão pela existência de doenças, como Aids e câncer.

Outras vezes, a família não aceita a remoção. Há ainda a falta de tempo para fazer a retirada, o que significa cerca de 30% dos casos. São fatores de perda que refletem a falta de experiência da equipe para manter o doador e dificuldades logísticas.

Lista de espera

A partir de 2011, as equipes de transplantes ficaram com a incumbência de cuidar de seus receptores e alimentar o sistema informatizado de cadastros nas listas únicas.

Conforme critérios definidos pela legislação de transplantes, os receptores são classificados em ordem de prioridade.

A legislação prima pelo melhor aproveitamento dos órgãos. Nem sempre o primeiro da lista será também o primeiro a receber o órgão de que necessita.

Até 2006, fígado era transplantado em quem chegasse primeiro na lista única do Estado. Ainda hoje, córneas e pâncreas são feitos por ordem de chegada. Mas fígado, atualmente, é realizado de acordo com a gravidade.

“Muitas vezes, o caso é tão grave que a equipe resolve não transplantar, porque o paciente não resistiria à cirurgia”, explica a assistente social.

Todo cuidado é tomado para manter o anonimato de quem integra as listas.

O número de transplantes no Estado vem aumentando nos últimos anos e os profissionais acreditam que tenha havido mesmo um boom na última década.

E há razões para isso. Por exemplo, a crescente organização do Sistema Único de Saúde (SUS) para atender à demanda, a quantidade e a qualidade de tecnologias disponibilizadas, a expertise dos profissionais, a qualificação dos meios de diagnóstico, a ampliação do financiamento.

Em abril deste ano, o Ministério da Saúde elevou em até 60% o repasse para transplantes no país. Em 2012, o valor chega a R$ 217 milhões. Tudo é feito em menor tempo e com maior segurança. “Mas é necessário ainda muita conscientização dos cidadãos para doação”, alerta Maria Marta.

A Central de Transplantes/RS é formada por um grupo de profissionais que trabalha há muitos anos junto.

“E tem que ser assim, pois é um trabalho difícil, complexo e que exige cuidados e dedicação”, explica a enfermeira Heloísa Foernges.

Atualmente a equipe é composta por onze médicos, três enfermeiros, um dentista, um psicólogo, dois assistentes sociais, um assessor técnico, 13 estagiários de medicina, um estagiário administrativo, dois auxiliares administrativos e dois auxiliares de regulação médica.

“As crescentes demandas nesta área trouxeram a necessidade de reformulação dos processos de trabalho. A equipe vem sendo ampliada e vários investimentos sendo feitos também pela Secretaria da Saúde do Estado”, ressalta a médica Rosana Reis Nothen, que coordena a Central desde 2011 e esteve à frente do Sistema Nacional de Transplantes.

Doação de sangue

A doação de sangue não se insere no conceito de transplante, mas é um gesto capaz de salvar vidas de pacientes que necessitam de transfusão. O doador deve ter entre 16 e 67 anos e peso superior a 50 quilos.

Não pode doar: quem teve diagnóstico de hepatite após os 11 anos, mulheres grávidas ou na fase de amamentação, pessoas expostas a doenças transmissíveis e usuários de drogas.

É necessário se alimentar três horas antes da coleta, ter dormido pelo menos seis horas, não ter ingerido bebidas alcoólicas e evitado fumo e alimentos gordurosos.

O doador recebe lanche e instruções sobre seu bem-estar após a coleta e poderá conhecer os resultados dos exames e seu tipo sanguíneo. O sangue doado beneficia mais de um paciente.

Sorriso do tamanho da gratidão

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

Na madrugada de 23 de maio de 2003, Filipe Rafael Nunes foi acordado pelo pai, que mal conseguia falar direito de tanta emoção. “Ligaram do hospital?”, perguntou Nunes. “Sim!”.

Havia chegado a hora de receber um coração saudável. Não era a primeira vez que se submeteria a uma cirurgia. Nunes nasceu com Tetralogia de Fallot, deficiência que faz com que o coração não bombeie sangue para todo o corpo.

Para facilitar o tratamento e evitar o pior – avós e tios haviam morrido por problemas cardíacos –, a família se mudou de Cruz Alta para Porto Alegre nos anos 80.

A primeira cirurgia de correção foi aos quatro anos. A segunda, aos oito. Quando ele completou 18, os médicos optaram pelo transplante.

Nunes conta que ficou dois meses na fila de espera. Teve medo de não conseguir superar mais uma cirurgia, mas pensou no esforço de seus pais, no jovem de quem recebeu o órgão, e na família que permitiu a doação.

No centro espírita, ouviu a frase que o fez deixar definitivamente de lado o mau humor do tempo em que não podia brincar como as outras crianças, porque cansava logo: “O que fazes pelos outros, retorna para ti”.

Com 28 anos de idade, ele sorri ao contar que já pode subir lomba e jogar bola sem ter de parar para descansar.

Na primeira vez que se deu conta disso estava no meio de uma partida de futebol.

“Queria correr o dia inteiro e contar pra todo mundo!”, lembra.

Formado como Técnico de Enfermagem, até o final de agosto esperava ser chamado para trabalhar no Instituto de Cardiologia onde foi operado.

“É importante as pessoas se conscientizarem de que quando morrerem não vão levar nada daqui”, diz Nunes. E sorri mais um sorriso de felicidade.

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