POLÍTICA

Um freio aos monopólios

Ratificada pela Suprema Corte argentina, a Lei de Mídias, de Cristina Kirchner, que institui o controle de emissoras de rádio e tevê, barra cartéis e limita o poder político das empresas de comunicação
Por Marcia Camarano / Publicado em 5 de dezembro de 2013
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Foto: Arthur William/ NPC

Ativistas lacram entrada da TV Globo, no Rio, em julho, e pedem aprovação da Lei das Comunicações

Foto: Arthur William/ NPC

A Corte Suprema da Justiça da Argentina determinou, em 29 de outubro, a constitucionalidade de quatro artigos da polêmica Lei 26.522, de Serviços de Comunicação Audiovisual, conhecida como Lei da Mídia, que limita a atuação das empresas de comunicação e implementa a fiscalização do funcionamento dos canais de TV e estações de rádio. Essa lei, aprovada há quatro anos, foi defendida pelo governo da presidenta Cristina Kirchner, sendo uma de suas promessas de campanha, mas teve, como oponentes, as grandes empresas de comunicação daquele país, aliadas aos partidos de oposição. A Corte avaliou, nos últimos meses, a validade dos artigos 41, 45, 48 e 161, que determinam os limites para os números de canais de televisão e estações de rádio, bem como estipulam a máxima abrangência que um meio de comunicação pode ter.

Lei da Mídia obriga 21 grupos de comunicação a vender parte de seus ativos a fim de evitar concentração. O mais atingido é o Grupo Clarín, o maior da Argentina, que terá de ceder, transferir ou vender de 150 a 200 licenças, além de parte de sua estrutura física e equipamentos. O novo marco visa a “garantir o exercício universal para todos os cidadãos do direito de receber, difundir e pesquisar informações e opiniões e que constitua também um verdadeiro pilar da democracia, garantindo a pluralidade, a diversidade e uma efetiva liberdade de expressão”.

Santiago Marino, professor e pesquisador da Universidade de Buenos Aires, que desenvolve investigações nas áreas de política e legislação de comunicação, disse ao site brasileiro Observatório da Imprensa que o processo foi longo e seu resultado valioso, “dado que nosso país tem um sistema de mídia fortemente concentrado, internacionalizado e pouco democrático, com vários setores excluídos”. Lembrou que a lei anterior havia sido sancionada em 1980, durante a ditadura militar no país, que beneficiava alguns setores privados, permitindo a concentração da mídia e excluindo setores sem finalidades lucrativas.

“O projeto é muito interessante e estimulante porque propõe avanços para democratizar a mídia, como garantir a divisão do espectro de modo equitativo (33% para cada tipo de meios, estatais, privados comerciais e sem fins lucrativos), a redução do máximo de concessões (de 24 para 10), a proibição de controlar licenças de TV aberta e de TV a cabo na mesma área, a integração da autoridade de controle de outorgas por parte de minorias políticas e a criação de uma comissão legislativa bicameral para acompanhar o setor”. Marino argumenta que o resultado é fruto de três décadas de debates na sociedade.

DIVIDIDOS – No Brasil, a luta pela democratização da comunicação vem desde a década de 1980, quando foi criado o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), mas os setores que condenam o atual modelo e lutam pela reforma estão divididos. Essa divisão ficou evidente durante audiência pública que debateu o projeto de iniciativa popular sobre a Lei da Mídia Democrática, realizada em 12 de novembro, na Câmara dos Deputados. Parlamentares do chamado campo progressista (PT, PC do B, PDT, PSB, Psol) mostraram que têm pontos divergentes.

O jornalista e professor Celso Schröder, presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), recorda que, em 1985, foi criada uma Frente por Políticas Democráticas, em que também era debatida a necessidade de democratizar o campo da comunicação. “Na época, fomos derrotados e a Constituição Federal foi insuficiente para dar conta do que defendíamos”. Schröder, que também é presidente da Federação dos Jornalistas da América Latina e do Caribe (Fepalc) e dirigente da Federação Internacional de Jornalistas (Fij), aponta que, no Brasil, mais que na Argentina, o grande problema é que os meios de comunicação exercem um papel político determinante na sociedade.

Roseli Goffman, secretária geral do FNDC representando o Conselho Federal de Psicologia, mostra-se satisfeita com o resultado obtido pelos argentinos no campo da comunicação. “Nossos vizinhos vêm fazendo o enfrentamento com o forte monopólio argentino de comunicação (Grupo Clarín) para garantir os limites para a concentração de propriedade dos meios e propor parâmetros para a produção de conteúdos audiovisuais, tendo como sua proposta-chave a gestão dos meios de comunicação dos três setores: o Estado, o campo privado com fim lucrativo e o campo privado não comercial”. E alerta que, em solo brasileiro, a lei vem recebendo, “em manchetes diárias e repetitivas, o combate apaixonado de nossa mídia tupiniquim, por ser uma real ameaça às afortunadas seis a dez famílias que detêm a maior parte das concessões de radiodifusão no Brasil”.

Ela também destaca o histórico de lutas no Brasil. “Há artigos dedicados à Comunicação na Constituição Cidadã de 1988 que jamais foram regulamentados”. Diz ainda que a Lei do Cabo, de 1995, é também uma política pública que inaugura a ideia de um canal comunitário aberto para utilização livre por entidades não governamentais e sem fins lucrativos, trazendo para os canais e frequências uma lógica mais distributiva.

Conferência Nacional de Comunicação

Política

Mídia Ninja/divulgação

Para Roseli, do FNDC, debate ameaça grupos que
dominam a comunicação

Mídia Ninja/divulgação

Em 2009 ocorreu a primeira e única Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), que envolveu cerca de 15 mil militantes por todo o Brasil. “De lá para cá, nós militantes, em especial do FNDC, fomos chamados para algumas conversas com o governo (federal) e depois esquecidos”, relata a psicóloga. “Ao que parece, não havia uma conjuntura propícia para a regulamentação dos artigos constitucionais”, acrescenta, denunciando ainda que houve um “enlace entre Estado, o lobbyda radiodifusão unido ao lobby das empresas de telecomunicação, alinhados na proposta mercantilista da comunicação como atividade precípua do capital privado. Não estávamos sendo convidados para a festa desregulamentadora compartilhada entre o Estado e as empresas privadas”.

Roseli aponta que a discussão, neste momento, está ocorrendo no parlamento, que aprovou, em 2012, a Lei 12.485, que regula as TVs por assinatura, que dispõe sobre o mínimo inicial de 2 horas e 20 minutos de conteúdo nacional no horário “nobre” da programação dos canais, sendo que a metade desses conteúdos deveria ser obrigatoriamente produzida por produtora independente.

“O Congresso Nacional reconvocou o abandonado Conselho Nacional de Comunicação em 2013, e votará nos próximos dias o Marco Civil da Internet, ou seja, se a internet poderá ser uma ferramenta para muitos ou somente para quem pode pagar mais para ter um serviço de qualidade”. Para ela, o Brasil provou que é possível avançar na redução das desigualdades, “mas os setores sociais precisam continuar incidindo no campo dos direitos humanos, entre eles, o direito à formulação de uma comunicação que não seja repartida como butim entre poucas famílias”.

Empobrecimento da cultura brasileira

Política

Renato Araújo/ Câmara dos Deputados/divulgação

Schröder, da Fenaj e Fepalc: “governo não enfrenta
donos da mídia”

Renato Araújo/ Câmara dos Deputados/divulgação

Já Celso Schröder, que acompanhou com expectativa o processo que determinou a constitucionalidade da Lei da Mídia argentina “por expressar a sintonia do governo daquele país com os anseios da sociedade”, não vê a mesma coragem no governo brasileiro. Segundo ele, o modelo de comunicação no país é o que há de pior do ponto de vista da regulamentação. “Estamos em vias de desnacionalização dos conteúdos; com a monopolização da mídia há um empobrecimento da cultura brasileira, uma insuficiência de produtos regionais. Aqui os veículos de comunicação atuam como partidos políticos. Cristina Kirschner teve uma coragem que sua colega Dilma Rousseff não demonstra, que é o enfrentamento às grandes empresas de comunicação”.

Braço que embalou o FNDC desde a sua criação, hoje a Fenaj não faz mais parte de sua direção. E, embora seu presidente relute em apontar uma cisão no movimento pela democratização da comunicação, informa que a Federação dos Jornalistas é contra o Projeto de Lei denominado Mídia Democrática, uma proposta de regulamentação do setor de radiodifusão por considerá-lo particularizado demais.

Para ele, é preciso cobrar do governo federal o Marco Regulatório das Comunicações. “Mas a Dilma não implementa”. E acrescenta: “Este Projeto de Lei, oriundo de alguns segmentos da sociedade, não dialoga com todo mundo, não pode ser apenas sobre radiodifusão. Onde ficam as tecnologias? Somos contra esse projeto inoportuno. Desse jeito, vamos ser massacrados”.

Schröder afirma que o movimento social que atua no campo da comunicação foi cooptado pelo governo federal, interessado na sua agenda eleitoral, e por isso não quer comprar briga com as empresas de comunicação. “Muita gente abdicou de fazer movimento social, desvia a pressão que deveria ser feita ao governo federal sobre o parlamento. Nós sabemos que não vamos conseguir nada deste parlamento composto, 40%, por donos de veículos de comunicação ou testas de ferro”.

E dispara: “quem defende a democratização dos meios de comunicação deveria estar na frente do Palácio do Planalto, exigindo o marco regulatório da Dilma, porque o governo não está enfrentando os donos da mídia. O Lula (ex-presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva) tinha recuado, mas pelo menos fez a Conferência Nacional de Comunicação. Agora, a Dilma abdicou. O movimento começou a responsabilizar o ministro (das Comunicações, Paulo Bernardo Silva), mas a responsabilidade é do governo como um todo. Nada do que foi aprovado na Confecom foi implementado”.

O professor argumenta ainda que, para ter uma lei parecida com a argentina, a presidenta Dilma teria que comprar briga com as grandes empresas de comunicação, como fez Cristina Kirchner. “Mas isso ela não faz, ela acha que se não comprar briga vai ser poupada no processo eleitoral. Só que ela não vai ser poupada. Isso é uma ingenuidade. Dizer que regulação da mídia é o controle remoto é tão ingênuo, pueril, que até envergonha”.

Schröder expõe que Cristina Kirschner comprou e venceu uma briga com uma empresa de comunicação – Clarín – que detém 80% da audiência. “É um absurdo, mas é algo pequeno comparado com a influência que a Rede Globo tem em terras brasileiras. Essa é uma empresa que elege e depõe presidente da República e do Congresso Nacional”.

Argumenta ainda que as empresas de telecomunicações estão ditando o ritmo dos seus negócios no Brasil com a complacência do governo federal. “Precisamos saber: qual o modelo de serviços que o Brasil quer? Temos que regular conteúdos. Quem produz jornalismo? Quais as empresas? Quem produz cultura brasileira? Quem se compromete com 70% para produção nacional?”.

De acordo com ele, o Brasil precisa de um sistema plural, diverso, nacional, que dê conta da produção cultural brasileira. “Mas isso não está acontecendo. É visível o empobrecimento do Brasil nesse aspecto. Não existe produção nordestina, gaúcha ou paulista, porque há uma mesmice pautada pelos negócios, pelo lucro. Isso foi feito na Argentina. Lá eles optaram pela liberdade de opinião, pela oferta múltipla, por vários olhares. E seu governo demonstrou vontade política para isso”.

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