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Golpe civil-militar: 50 anos depois

Por César Fraga / Publicado em 10 de abril de 2014
A foto acima faz parte da exposição Resistir é preciso, no Centro Cultural Banco do Brasil (RJ) e integra o acervo do Instituto Vladimir Herzog

Foto: Orlando Brito/divulgação

A foto acima faz parte da exposição Resistir é preciso, no Centro Cultural Banco do Brasil (RJ) e integra o acervo do Instituto Vladimir Herzog

Foto: Orlando Brito/divulgação

No cinquentenário do golpe de 1964, o Extra Classe entrevista Marcos Napolitano, doutor em História Social pela USP, onde é professor do Departamento de História e leciona História do Brasil Independente. Ele está lançando o livro 1964: história do regime militar brasileiro (Editora Contexto, 368 páginas), em que faz um balanço sobre o golpe civil-militar e discute as principais questões dos “anos de chumbo”. Para tanto, baseou-se em livros, artigos, arquivos e memórias e faz análises políticas e econômicas do período, abordando também questões sociais e culturais.

O livro percorre o período de 1964 a 1985 e busca responder questões que circulam há algum tempo, tanto na imprensa quanto no meio acadêmico. Entre as indagações: a ditadura durou muito graças ao apoio da sociedade civil, anestesiada pelo “milagre” econômico? Foi Geisel, com a ajuda de Golbery, o pai da abertura, ou foi a sociedade quem derrubou os militares do poder? Como era o dia a dia das pessoas durante o regime militar? Como a cultura aflorou naquele momento? O que aconteceu com a oposição e como ela se reergueu? Qual a reação da sociedade (e do governo) à tortura e ao “desaparecimento” de presos políticos? O livro foi organizado em oito capítulos que sintetizam a história deste período e permite que o leitor entenda o que realmente aconteceu na Ditadura Militar Brasileira, sua evolução, a troca de poder, a participação da sociedade civil – tanto no regime em si, quanto para derrubá-lo.

Napolitano também é autor e coautor de vários livros, entre os quais Como usar o cinema em sala de aula, Como usar a televisão na sala de aula, Cultura brasileira: utopia e massificação, História na sala de aula e Fontes históricas (todos pela Ed. Contexto). A entrevista a seguir foi concedida com exclusividade ao Extra Classe, na última semana de março, durante a série de eventos realizados pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas para marcar os 50 anos do golpe realizado em 31 de março e 1º de abril de 1964, dando início à ditadura que se manteve pelas duas décadas seguintes.

Golpe civil-militar: 50 anos depois

Foto: divulgação Editora Contexto

Marcos Napolitano

Foto: divulgação Editora Contexto

Extra Classe – Em sua análise, qual foi o cenário em que se deu o golpe: o de uma esquerda irresponsável, de fragilidade política do governo Jango ou era inevitável?
Marcos Napolitano – Não enfatizaria nenhum dos três elementos. O golpe foi produto de um conflito de projetos para o Brasil e do golpismo histórico da direita autoritária e da direita liberal dos anos 1950 e 1960, que nunca aceitaram nem mesmo a frágil experiência democrático-eleitoral da “República de 46”, sobretudo quando isto se traduzia em ampliação da participação das massas na política.  Poderíamos até dizer que o governo Jango, sobretudo a partir de setembro/outubro de 1963, perdeu a capacidade de administrar a crise e cometeu vários erros políticos. Mas o golpe não foi uma fatalidade, foi uma opção política dos conservadores, incluindo setores civis liberais.

EC – Qual foi a real importância do governo Jango? Em seu livro o senhor cita Darcy Ribeiro, que afirma que o governo de Jango caiu pelas suas virtudes e não pelos defeitos. Quais seriam essas virtudes?
Napolitano – A principal virtude foi colocar para a sociedade uma pauta política de democratização (ampliação do direito de voto, reforma partidária), de reformas econômicas (reformas bancária para ampliar o crédito e tributária, para implantar a progressividade fiscal), sociais (ampliação do acesso à propriedade rural e urbana, ampliação das vagas nas universidades, controle da remessa de capital para o exterior). A questão é que o governo tinha poucos meios políticos e econômicos para viabilizá-las, e sofreu um grande cerco interno e externo, do qual não conseguiu sair.

EC – O golpe não foi exclusivamente militar, na verdade foi resultado de uma aliança que envolve também civis, sendo tramado dentro e fora do país. Como o senhor resumiria os acontecimentos que culminaram na deposição de Jango?
Napolitano– É difícil resumir este processo. Mas acho que a pergunta já respondeu. Foi uma convergência de civis e militares brasileiros, e interesses estrangeiros, unidos sob o lema do anticomunismo e da defesa da ordem jurídica vigente. Entretanto, logo depois do golpe, os novos grupos do poder começaram a mudar esta mesma ordem jurídica (calcada na Constituição de 1946), justamente para ampliar o desenvolvimento capitalista e a tutela do Estado autoritário sobre o sistema político (partidos, Parlamento, poderes republicanos etc.)

EC – Quais os maiores prejuízos ao país causados pelo golpe e pelos governos que dele sucederam?
Napolitano – A ditadura não tinha uma pauta unicamente repressiva. Ao seu modo, os militares tinham uma pauta de reformas, sobretudo no plano político e administrativo, para blindar as políticas de Estado das pressões sociais vindas dos trabalhadores. Por exemplo, a lei de reajuste salarial, que instituiu o arrocho, promulgada logo no começo do governo Castelo. O problema é que a modernização capitalista patrocinada, e as políticas sociais tímidas, aprofundaram as desigualdades históricas da sociedade brasileira. Este é um legado complicado. Outro legado foi a cultura da impunidade diante das violências policiais, sobretudo quando voltadas para o controle social dos segmentos mais pobres.

EC – Por que a “ditabranda”, período de quatro anos do golpe até AI-5, em 1968, é um mito?
Napolitano– Porque se confunde ditadura pra valer com violência policial direta, à base de tortura e censura prévia. Estes são os aspectos mais nefastos das ditaduras, mas a definição de regimes ditatoriais vão muito além disso. No caso brasileiro, os quatro primeiros anos do regime militar combinaram ação repressiva institucional, com relativa liberdade de expressão e repressão policial mais seletiva. Por exemplo, o governo Castelo foi dos que mais cassou e puniu cidadãos e políticos, além de estimular uma profusão de inquéritos policial–militares, que colocou civis sob a Justiça Militar, na maioria das vezes por “crime de pensamento”. Além disso, já havia censura, sobretudo no cinema e no teatro. No meio sindical, o governo Castelo foi dos mais intervencionistas. Além disso, o país esteve sob o jugo dos Atos Institucionais 1 e 2. Enfim, o leitor deve julgar se tudo isto não configura um Estado autoritário, o que a noção de “ditabranda” pode camuflar.

EC – Qual sua leitura das manifestações públicas e organização de marchas e movimentos identificados com valores ligados ao período da ditadura militar no ano do cinquentenário do golpe?
Napolitano –Sinal de um conservadorismo crescente, sobretudo na classe média.

EC – Nos dias de hoje existe coalizão possível de forças para um golpe de Estado nos moldes de 1964? Por quê?
Napolitano –Apesar de uma opinião pública crescente que pode ser considerada “golpista”, sobretudo em seus estratos antigovernistas e antipetistas, estas vozes não têm tradução no sistema político-partidário (a rigor, ainda não há lideranças partidárias que defendem golpe de Estado, como nos anos 1950 e 1960), nem nos quartéis, apesar do incômodo de alguns militares com as investigações dos crimes contra os direitos humanos cometidos durante o regime.

EC – Como o senhor avalia o andamento das apurações na Comissão da verdade?
Napolitano– Acho prematuro avaliar o trabalho da Comissão, prefiro esperar o relatório final. Podemos, no máximo, avaliar o processo, que poderia ser mais aberto.

EC – Por que a questão cultural foi o calcanhar de Aquiles da ditadura?
Napolitano – A ditadura tinha quadros brilhantes e inteligentes nas áreas técnicas, mas carecia de intelectuais humanistas e artistas de prestígio entre a classe média letrada, que consumia cultura. Por exemplo, os velhos intelectuais que compunham o Conselho Federal de Cultura, criado em 1967, não conseguiam construir uma política cultural atraente para estes setores. A ditadura teve de mudar sua política cultural e atrair, nos anos 1970, os artistas de oposição através de uma política de incentivo financeiro que garantia aos artistas relativa liberdade de expressão. Bem relativa, diga-se.

EC – O quanto foi, de fato, exitosa economicamente a ditadura e quais foram os limites do milagre econômico?
Napolitano – As políticas econômicas da ditadura oscilaram muito. Houve forte crescimento, mas no começo e no final do regime houve estagnação e até mesmo um pouco de recessão. Mas podemos dizer que a ditadura completou, à força, a segunda revolução industrial no Brasil.

EC – Até que ponto a indústria cultural e a cultura de massa também contribuíram para a manutenção e derrocada dos militares?
Napolitano – A indústria cultural e a cultura de massa abrigaram muitos artistas de oposição, alguns assumidamente comunistas ou, no mínimo, de “esquerda”. Eram artistas talentosos e competentes, que davam lucro para a indústria da cultura, mas também veicularam um imaginário de oposição, de resistência e de liberdade que pautava sobretudo a classe média escolarizada. Além disso, havia fortes movimentos sociais populares, especialmente urbanos, que eram francamente de oposição, e acabavam transitando neste caldo cultural.

EC – E o papel da imprensa e dos intelectuais?
Napolitano– A imprensa oscilou muito entre apoio estratégico ao regime (principalmente nos seus dez primeiros anos), críticas moderadas no plano político e econômico, e momentos de oposição mais contundente, mas geralmente focada em algum ponto específico (como a luta contra a censura ou a denúncia da estatização da economia sob o governo Geisel).

EC – Como a sociedade civil passou a se organizar a partir de 1976 contra o Estado e como foi crescendo essa organização até os movimentos que ganharam as ruas na década de 1980?
Napolitano– Com a derrota da luta armada de esquerda, por volta de 1973/1974, houve um certo consenso na oposição de que a luta contra o regime deveria ser apoiada em ações políticas institucionais e de massa (ou seja, nas ruas). Mas a batalha das ruas foi dura, durou cerca de quatro anos (1975-1979) entre a missa de Vladimir Herzog na Praça da Sé (um verdadeiro ato público contra o regime, o primeiro pós AI-5 com grande visibilidade) e a ampliação do protesto público calcado nos movimentos sociais (estudantis, operário e de bairros). Por trás destes protestos havia uma crescente rede de solidariedade e organização.

EC – Houve muita corrupção durante a ditadura? Como se deu?
Napolitano – Corrupção sempre houve no Brasil. Mas no tempo do regime estes casos eram censurados. Por isso, se falava menos no assunto. Mas a partir de 1979, as denúncias cresceram, com a liberdade de imprensa reconquistada.

EC – O senhor descreve o governo Figueiredo como de conciliação, porém, com uma mão estendida e a outra na arma. Como se deu a transição e qual o seu significado histórico?
Napolitano– A transição foi negociada e conservadora, no sentido de ter sido hegemonizada por setores liberais moderados da oposição, com apoio de dissidentes do regime. A ditadura também tinha uma agenda inteligente, que previa a transferência paulatina de poder aos civis “confiáveis”. Um dos resultados é a dificuldade em punir os torturadores, pois o sistema jurídico e político pós-regime se mantiveram fieis aos termos da transição negociada, sob tutela militar.

Divulgação

Foto: Divulgação

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EC – O quanto do período ainda vive nas estruturas de poder no país?
Napolitano – Muita coisa mudou. Não gosto de ficar comparando tempos históricos. Se há continuidades, como a cultura de violência policial solidificada durante o regime e o papel das Forças Armadas na “manutenção da ordem interna”, o que é um desvio das suas funções profissionais, muita coisa mudou no Brasil, no sentido da ampliação da democracia e dos direitos. Não podemos jogar fora isto, em nome de um novo conservadorismo de direita e de um novo moralismo presente em vários setores sociais que considera os políticos e a política como um problema em si. Ou, por causa daquela ideia que vemos muito entre jovens de extrema–esquerda, que afirma que a “ditadura não acabou”.

EC – Como o senhor vê a lei de anistia? Há quem diga que os rebeldes pagaram durante a ditadura e que os algozes permaneceram impunes, por isso nunca teria sido equânime, como apregoada.
Napolitano – Obviamente, não foi equânime. É uma lei do regime, “negociada” sob a tutela de um governo militar. Foi feita para “esquecer” sobretudo os crimes de tortura e desaparecimento de opositores, e permitir a volta de lideranças de oposição exiladas e presas. Lembremos que os “crimes de sangue” da esquerda ficaram de fora da lei. E agora a questão é outra, e há muita confusão nesta discussão. O Estado tem que dizer onde estão os desaparecidos, quem matou e como eles morreram. Isto não tem nada a ver com ideologia. Mesmo nas guerras, há um esforço comum entre os antigos inimigos para devolver os corpos e restos mortais de soldados às famílias. No caso dos desaparecidos políticos, independente deles estarem certos ou errados quando pegaram em armas contra o regime, trata-se de um direito básico que não pode ser negado pelo Estado. Este é o primeiro aspecto da investigação dos crimes das ditaduras, da “verdade” perseguida pelas comissões oficiais. Quanto à esquerda, além de perder a luta armada, muitos dos seus membros foram presos (alguns por dez anos), exilados, sequestrados, torturados e mortos.

EC – A memória de 1964 está sendo usada como fator para propagar medo em ano eleitoral?
Napolitano –Não vejo isto. O que existe é um conservadorismo crescente e nostálgico de soluções de força, autoritárias, que se disfarça de um oposicionismo e da luta anticorrupção. Estas duas lutas devem se desvencilhar de qualquer tentação autoritária e golpista.

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