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Império da bola ergue seu palácio

Sede da Federação Gaúcha de Futebol é construída em área municipal nobre, com o metro quadrado mais caro que estádios da dupla grenal, sob névoa de negócios com seguradora carioca
Por Flávio Ilha / Publicado em 12 de maio de 2014
Sede da Federação Gaúcha de Futebol não estará concluída até a Copa do Mundo, conforme prometido

Foto: Igor Sperotto

Sede da Federação Gaúcha de Futebol não estará concluída até a Copa do Mundo, conforme prometido

Foto: Igor Sperotto

O terreno, cedido em 2009 pelos contribuintes de Porto Alegre, tem mais de 5
mil metros quadrados numa área nobre da capital e, a preço de mercado, valeria
hoje facilmente R$ 15 milhões. A construção se arrasta desde 2009, quando o projeto ficou pronto e acabou saindo do papel apenas três anos depois, a um custo estimado de R$ 3,6 mil por metro quadrado – é bom lembrar que a construção da Arena do Grêmio custou R$ 3,1 mil por metro quadrado e a reforma do Beira-Rio não chegou aos R$ 2 mil. Os estádios, também não custa nada mencionar, têm padrão internacional de acabamento e atendem aos requisitos da Fifa para receber jogos oficiais. A cessão é pelo prazo de 60 anos, prorrogável por igual período a partir de 2068. Por tudo isso é natural, embora cause surpresa, que poucas pessoas se disponham a falar sobre a nova sede da Federação Gaúcha de Futebol (FGF), que está sendo construída em frente ao Anfiteatro Pôr-de-Sol.

Conhecido jocosamente como “Palácio do Esporte”, a sede – com vista para o Guaíba e junto a prédios públicos e privados de grande apelo comercial – sintetiza o papel que a FGF tem sobre o combalido futebol gaúcho. A construção de 3,5 mil metros quadrados foi orçada em R$ 7 milhões, mas custará quase o dobro (R$ 13 milhões) depois de ficar congelada por três anos e abrigar, no vasto terreno bem ao lado do novo Fórum, um estacionamento privado. Atrelada à construção da sede do Memorial Luiz Carlos Prestes, em homenagem ao líder comunista e que tem projeto do escritório de Oscar Niemeyer, o Palácio pelo menos já conseguiu uma façanha: vender os direitos de utilização do prédio – os naming rights – para a seguradora Capemisa. O valor da transação: R$ 10 milhões.

Nem Inter e nem Grêmio, é importante salientar, conseguiram comercializar os naming rights de seus novos, e espetaculares, estádios. O negócio da FGF com a Capemisa é cercado de mistério e poucas pessoas se dispõem a falar dele. A empresa, com sede no Rio de Janeiro e que em 2013 adquiriu a tradicional seguradora gaúcha Aplub, atua nas áreas de seguro e previdência privada e tem uma vasta lista de reclamações por parte de clientes, incluindo subfaturamento de prêmios por seguro de vida e auxílio-funeral.

O comerciário Francisco Antônio dos Reis, de São Paulo, relata que a mãe, Edna Tavares dos Reis, pagou as apólices para a seguradora durante 33 anos; ao morrer, em 2008, o filho recebeu R$ 2, 3 mil como indenização, depois de dois meses de negociação com a empresa. O caso foi parar no Procon de São Paulo e virou processo judicial, que ainda não está solucionado. Há centenas de casos semelhantes, judicializados ou não.

A empresa foi criada em 2008 como sucedâneo da falida Capemi (Caixa de Pecúlio dos Militares) – fundada em 1960, a instituição sofreu intervenção em 1983 e ainda hoje, mesmo depois da “solução mágica”, pululam denúncias de desvio de dinheiro e fraude nos contratos, administrados pela empresa carioca. Contatada, a direção da Capemisa disse que não iria se manifestar sobre o contrato com a Federação por se tratar de um negócio entre duas entidades privadas. A FGF tampouco se dispõe a prestar informações, limitando-se a divulgar uma nota em que resume que a parceria, firmada em outubro de 2013, é “condizente com o tamanho e a tradição do futebol gaúcho”. A instituição informa que a nova sede, com inauguração prevista para o segundo semestre, será denominada Edifício Capemisa Aplub, e terá “grande visibilidade”.

Além disso, as companhias contam com “exclusividade em ações dos campeonatos de futebol que estejam sob responsabilidade da Federação, nas suas respectivas áreas”. O dono da construtora que toca a obra, João Inácio Espíndola Melleu, também não fala sobre o projeto e remete toda a responsabilidade para a entidade máxima do futebol. O arquiteto Jorge Debiagi, autor do desenho, explica que o projeto foi finalizado em 2009 e, desde então, todo o acompanhamento passou a ser responsabilidade de quem executa a obra. A nova previsão de término ficou para junho. “Não sei por que demorou tanto, não sei por que atrasou, não estou acompanhando. Parece que a obra está bem feita, mas não posso assegurar isso”, disse Debiagi.

O mais curioso é que a cessão da área previa que a construção do complexo – o prédio da FGF e o memorial a Luiz Carlos Prestes – fosse iniciada “logo após” a promulgação da lei municipal que sacramentou a doação, realizada no dia 18 de junho de 2009 pelo então prefeito José Fogaça (PMDB), e concluída num prazo máximo de quatro anos. O artigo 5º da Lei municipal 10.695 explicita que se essas condições não fossem satisfeitas, a cessão deveria ser revogada. Pelo mesmo artigo 5º da lei municipal que cedeu o terreno à FGF, “a destinação diversa ao proposto” deveria motivar a revogação automática da concessão, “independentemente de ato especial e sem direito de indenização de qualquer espécie”.

Terreno foi explorado como estacionamento por esposa de funcionário
Durante dois anos, o terreno de 11 mil metros quadrados foi explorado comercialmente como estacionamento com 250 vagas pela microempresa de Cristiane Vieira Lapuente, casada com o diretor Comercial e de Marketing da Multisom, Alcindo Dedavid. A Multisom é a rede de lojas de Francisco Novelletto, presidente da FGF, e que patrocina espaços destinados ao futebol nas principais rádios de Porto Alegre”.

A revogação da lei não ocorreu e as obras da nova sede e do memorial só iniciaram porque o escândalo se tornou público em dezembro de 2011. “A prefeitura deveria ter retomado aquela área porque a lei que autorizou a cessão foi f lagrantemente desrespeitada. Defendi essa retomada na época, a Procuradoria-Geral do Município também, mas o projeto acabou sendo continuado à revelia da legislação, o que é lamentável”, disse o vereador Valter Nagelstein (PMDB), que era secretário da Indústria e Comércio de Porto Alegre na época.

Além de ótimo negociante, o presidente da FGF é um mestre em plantar notícias. Por exemplo: informou à imprensa que a sede luxuosa da entidade estaria pronta a tempo de ser integrada à estrutura de apoio à Copa do Mundo, que começa em pouco mais de um mês. O novo edifício seria uma espécie de quartel-general da Fifa em Porto Alegre, o que justificaria o investimento milionário no complexo. A promessa não foi cumprida.

Sede seria inaugurada em março deste ano com grande festa
Francisco Novelletto também “plantou” que o edifício seria inaugurado em março com uma grande festa popular, reunindo uma atração musical nacional entre Skank, Ivete Sangalo, Paula Fernandes e Titãs. Nada disso aconteceu de fato.

Também vazou que um banco público federal estaria interessado em instalar uma agência comercial na sede da Federação, com contrato superior a R$ 1 milhão por ano. Igualmente a notícia não se confirmou. Uma grande montadora de automóveis também queria instalar um show-roomali, mas nada foi contratado porque a data de 2 de junho, espalhada por Novelletto como dia da inauguração, também dificilmente se cumprirá. É provável que a festa fique para dezembro de 2014.

O Palácio do Esporte tem três andares com mais de mil metros quadrados cada um e reserva espaço para um auditório logo na rampa de entrada, além de um restaurante panorâmico no último piso – o espaço ainda não tem empresários interessados. A Justiça Desportiva, que hoje ocupa uma sala de audiências em um edifício no centro de Porto Alegre, terá uma sala especial no primeiro andar. Logo na entrada do prédio, chama a atenção um portal construído em forma de goleira.

Francisco Novelletto e o prefeito José Fortunatti, em maio de 2010, na assinatura de concessão de área para sede da FGF e Memorial Júlio Prestes

Foto: Cristine Rochol/PMPA - Divulgação

Francisco Novelletto e o prefeito José Fortunatti, em maio de 2010, na assinatura de concessão de área para sede da FGF e Memorial Júlio Prestes

Foto: Cristine Rochol/PMPA - Divulgação

PATRIMÔNIO – O catarinense Novelletto assumiu a combalida Federação Gaúcha de Futebol em 2004 – o terceiro mandato vai até 2016. Em dez anos de poder, conseguiu fazer com que a receita da entidade chegasse a R$ 8,5 milhões em 2011 (último dado disponível, de acordo com estudo da Pluri Consultoria) com um lucro líquido de R$ 3,3 milhões no exercício. O patrimônio líquido da Federação chegou a R$ 15,5 milhões.

Sozinha, a FGF contribuiu com metade do lucro das 27 federações brasileiras, só perdendo para a poderosa Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e seus balanços multimilionários. Mesmo assim, com os cofres cheios, o futebol não deslanchou no Rio Grande do Sul. Pelo contrário: o Gauchãoficou em 10º lugar em média de público, atrás de campeonatos onde a tradição dos clubes é menor, como Santa Catarina, Ceará, Pernambuco e Bahia – sem falar em Rio, São Paulo e Minas. O campeonato é o segundo em número de jogos, só superado pelo torneio de São Paulo. O ingresso é o segundo mais caro do país, com média de R$ 30 por partida, de acordo com a consultoria. O fosso entre os dois maiores clubes – Inter e Grêmio – só aumenta: enquanto Santa Catarina e Minas Gerais, por exemplo, têm dois clubes cada um na série B do futebol brasileiro, o Rio Grande do Sul não tem clube algum na segunda divisão.

O diretor da Pluri, Fernando Ferreira, estima que 80% das partidas de futebol no Rio Grande do Sul tenham dado prejuízo no primeiro trimestre de 2014, incluindo todas as divisões administradas pela Federação. “O futebol cobra caro, tem pouca segurança, o conforto, com raras exceções, é zero e a maioria absoluta das partidas não tem relevância. O filme é ruim”, resumiu Ferreira.

Já os negócios de Novelletto vão de vento em popa. Além da cadeia de lojas Multisom, o imperador da bola se associou em 2008 ao empresário Vilson Roncato, dono do VEC (Veranópolis Esporte Clube) e de diversas empresas do ramo da incorporação imobiliária, na Novelletto Roncato. A incorporadora tem quatro empreendimentos em Rio Grande e três em Gravataí. A dupla também incorpora condomínios de luxo no litoral gaúcho.

POPULISMO – Além disso, o populismo do cartola mantém um instituto com seu nome, que recebe doações e ajuda cerca de 40 entidades sociais – geralmente creches ou escolas suburbanas com distribuição de macarrão. O Instituto Francisco Novelletto funciona no mesmo endereço da sede do grupo Multisom. O dirigente também criou – e naturalmente presidiu – o Instituto Gaúcho de Futebol (IGF), que costumava sortear carros e outros prêmios em jogos do Gauchãoaté o ano passado. O programa Gauchão Premiadofoi lastreado com títulos de capitalização pela Aplub – empresa comprada em 2013 pela Capemisa e que manteve os negócios com Novelletto.

O IGF, que encerrou as atividades no ano passado, funcionava no mesmo endereço da FGF. Os sorteios caíram em suspeição quando os ganhadores de dois automóveis zero km não reclamaram o prêmio. O termo de cessão de direitos do sorteio previa prazo de 180 dias para a entrega do bem, que reverteria em benefício do IGF se os vencedores não se apresentassem. Das 133 TVs de 42 polegadas sorteadas em 2012, apenas 11 foram entregues. Dos quatro carros sorteados, dois ficaram com o Instituto.

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