CULTURA

Por um lugar ao shopping

Jovens da nova classe C reivindicam o direito de frequentar os templos de consumo com rolezinhos e ostentação de roupas de grife, enquanto a antiga classe média resiste
Por Edimar Blazina / Publicado em 13 de junho de 2014

Por um lugar ao shopping

Foto: Sxc.hu

Foto: Sxc.hu

Na década de 1990, a juventude da então classe C ecoava, direto da Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, o funk dos MCs Cidinho & Doca que traziam em seus versos um desejo: “eu só quero é ser feliz / andar tranquilamente na favela onde eu nasci / poder me orgulhar, e ter a consciência que o pobre tem seu lugar”. Nos anos 2000, na estabilidade da economia brasileira e certos de que podem ir muito além dos limites sociais, os jovens da nova classe C ostentam poder de compra e continuam buscando a felicidade, porém, o palco agora são os shopping centers das grandes capitais onde, organizados pelas redes sociais, ostentam seus bens materiais e atraem, com sua popularidade no mundo virtual, centenas de iguais para os rolezinhos.

A gíria “rolé”, segundo o dicionário Michaelis, significa dar uma volta, um passeio. E é exatamente esse o interesse dos jovens e adolescentes que participam dos eventos que agitam o país desde o ano passado. Em meio a atos de violência e roubos, os rolezinhos, que chegaram a ser proibidos pela Justiça em São Paulo, desembarcaram em Porto Alegre em janeiro de 2014, quando pouco mais de 20 pessoas se reuniram pela primeira vez no Moinhos Shopping, no bairro Moinhos de Vento, bairro de classe média alta da capital. Na ocasião, o Conselho Tutelar da região recebeu pedidos de providências de moradores quanto à presença de “maloqueiros” no local. O evento, que durou pouco mais de meia hora, teve pouca repercussão e novas edições ainda menores.

Passados alguns meses, os rolezinhos voltam às manchetes, em maio deste ano. Poucos dias depois de um shopping em Rio Grande, na zona Sul do estado, proibir a entrada de menores desacompanhados, após rumores nas redes sociais sobre um possível encontro no local, o shopping Bourbon Wallig, em Porto Alegre, sedia, involuntariamente, um novo rolezinho. A manifestação apresenta a nova cara do movimento, o confronto, ao reunir mais de 400 jovens e terminar em briga entre grupos rivais: os “modinhas” e os “caça-modinhas”.

OS MODINHAS – Conhecidos pelas roupas de grifes famosas, pelo corte de cabelo arrepiado dos garotos, e principalmente pelo comportamento extravagante e popularidade dos seus integrantes em redes sociais como o Facebook, os modinhas são vistos como uma nova tendência entre os jovens e os atuais organizadores dos rolezinhos. De celular em punho, eles fazem de tudo para suas fotos receberem muitas curtidas na web, o que os torna mais conhecidos nesse espaço – espécie de palco em que cliques significam aplausos. Quanto mais cara e exclusiva for a roupa, o tênis, o telefone ou o relógio que usam, por exemplo, mais atenção eles conseguem. É por isso que o shopping se torna um cenário fundamental para que os rolezinhos sejam realizados.

“O shopping é movimentado, tem garotas, bastante gente. A ideia é ter ibope, é tudo por ibope”, explica um dos participantes do grupo virtual Virei Modinha, do qual Rhagin Machado, 20 anos, é um dos administradores. O que começou com uma brincadeira de Rhagin com os amigos, hoje tem mais de 12 mil pessoas associadas à página na rede social. “Meu vizinho criou um evento no Facebook com o nome de Virei Modinha, em uma descarada forma de implorar curtidas na nossa foto, imitando a atitude desesperada dos Modinhas. Na primeira hora já havia mais de 400 confirmados”, exalta o jovem.

Rhagin afirma que o grupo tem regras bem definidas, como o repúdio à violência ou ao racismo, mas admite que não há como controlar as manifestações dos jovens. “Depois que o grupo atinge certo número de participantes, não tem como controlar tudo o que postam ou falam lá, mas faço de tudo para não gerar conflitos”. Os problemas surgem justamente pela popularidade dos modinhas, o que segundo Rhagin, é o que incomoda grupo rival, os Caça-modinhas. “Eles querem fazer justiça com as próprias mãos para dar uma lição nos modinhas. Querem mostrar que são só eles quem pode brigar ou fazer confusão”, reclama um dos participantes do grupo. As brigas acontecem nos encontros marcados pelo Facebook, geralmente em shoppings badalados da cidade, onde os rolezinhos não são bem-vindos.

Para Meirelles, do Data Popular, jovens de classe C veem grifes como defesa contra o preconceito

Foto: divulgação assessoria

Para Meirelles, do Data Popular, jovens de classe C
veem grifes como defesa contra o preconceito

Foto: divulgação assessoria

Novos consumidores e o desconforto das grifes 
Vitrine e palco dos rolezinhos, os shopping centers estão em pleno crescimento no país. Segundo o Ibope Inteligência, em 2013, um centro de compras foi inaugurado a cada duas semanas e até 2017 serão criados 103 novos empreendimentos. No final do ano passado, 459 estabelecimentos operavam no país. A média de visitas dos consumidores habituais é de 4,3 por mês, mas a frequência do público identificado como classe A sobe para 5, chegando a 6 se o recorte for pelo gênero feminino. Já na classe C as visitas caem para 2,1 vezes por mês. Jovens de 17 a 24 anos também vão 4,3 vezes a esses centros de compras e representam um consumidor que desperta grande interesse por parte desses templos do consumo. Tanto que o segmento já não se mostra mais tão assustado com as ruidosas e potencialmente violentas invasões de jovens aos shoppings país afora.

Para a Associação Brasileira de Shopping Centers (Abrasce), o problema dos rolezinhos não é o fato de serem promovidos por jovens de periferia, mas o impacto que a invasão coletiva causa nos demais frequentadores. “O rolezinho causa tanta estranheza e assusta tanto o frequentador do shopping quanto um grupo de 600 idosas entrando ao mesmo tempo e fazendo muito barulho”, compara uma fonte da Associação. A entidade usa a comparação
para explicar que repudia o preconceito e orienta que seus associados não impeçam a realização desses eventos, desde que eles não coloquem em risco a segurança do negócio e dos demais frequentadores.

Porém, aconselha o monitoramento das redes sociais para um maior preparo, como reforço na segurança no dia agendado para acontecer o rolezinho. Os participantes das manifestações são, na sua maioria, filhos da nova classe média. O Instituto Data Popular, especialista em pesquisas sobre classes emergentes, estima que os jovens da chamada classe C têm renda total de R$ 129,2 bilhões, mais do que as classes A, B e D, que juntas somam R$ 99,9 bilhões.

Agora com poder aquisitivo, a maioria dos jovens da periferia passou a consumir produtos de marcas aos quais seus pais nunca tiveram acesso. “A marca funciona como uma armadura, uma defesa contra o preconceito no entendimento desses jovens”, interpreta Renato Meirelles, diretor do instituto de pesquisas. A reação por parte das grifes,  incomodadas com a associação das suas marcas a um novo consumidor indesejado, foi imediata. Segundo Meirelles, o Data Popular atende um “grande número” de empresas que não sabem o que fazer com a popularização dos seus produtos, antes destinados a um consumidor exclusivo. “O consumidor de elite não quer um cara com menos grana usando a mesma marca que ele”, explica. Para o pesquisador, “não faz sentido ignorar esse público”, que tem grande poder de compra.

Inclusão social pelo consumo
Movimentos como os rolezinhos são registrados desde 2010 nos Estados Unidos, onde a desigualdade social é o principal problema. Lá as ações promovidas por jovens em shoppings foram contidas pela polícia, segundo especialistas ouvidos pelo jornal The New York Times, por serem promovidas, em sua maioria, por negros de bairros pobres em locais predominantemente de brancos. Na Filadélfia, em 2011, a prefeitura chegou a proibir que adolescentes saíssem às ruas desacompanhados após às 20h para evitar os encontros.

Para a antropóloga Lucia Mury Scalco, o rolezinho não é apenas uma brincadeira de jovens, mas um fenômeno complexo. “Ele trouxe à tona – de forma evidente – as estruturas da desigualdade e da segregação racial profundamente enraizadas na sociedade brasileira, uma vez que a maioria desses jovens é composta por negros e pobres”, analisa.

Lucia, que pesquisa o comportamento de jovens no Morro da Cruz, na zona leste de Porto Alegre, desde 2009, aponta que o shopping é muito mais do que um espaço de encontro para este grupo. “É um lugar simbólico que confere prestígio e que os jovens das classes populares querem ocupar e usufruir”, conceitua. Da mesma maneira, as roupas de grifes, tão cobiçadas por eles, ganham valores ainda maiores. “As dimensões simbólicas do consumo se sobrepõem às práticas. Um símbolo socialmente valorizado é tão vital para a existência humana quanto o alimento. A inclusão social se dá através da dimensão do consumo. Na visão desses jovens, pelo consumo é possível inverter a realidade”, constata a antropóloga.

Ela relata que, em suas pesquisas, se deparou com comportamentos tão surpreendentes quanto reveladores. Um exemplo é a fala dos vendedores de shopping, que afirmam serem capazes de identificar os novos consumidores apenas pela postura. “Não adianta eles se vestirem com marca e virem pagar com dinheiro. Pobre só usa dinheiro vivo. Eles chegam aqui e a gente na hora vê que é pobre”, explica um vendedor de loja em entrevista à pesquisadora. “Isso tem um componente bem cruel, porque mostra que não adianta esses jovens pobres gastarem muito para comprar tênis, camiseta e boné de marca, pois mesmo assim o estigma permanece”, aponta.

Lucia ressalta que iniciativas como as adotadas em São Paulo, onde para acabar com os rolezinhos a prefeitura passou a promover eventos na periferia, são bem-vindas, pois proporcionam espaços de entretenimento para os jovens em suas comunidades. Entretanto, ela pontua: “os jovens da periferia, como toda e qualquer pessoa, têm o direito de livre circulação na cidade. Eles gostam e vão continuar indo a shopping centers”. Ela resume a análise com a frase que ouviu de um dos meninos com quem conversou: “Eu não sou o jovem pobre, favelado, sem perspectiva. Eu to podendo”.

 

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