ECONOMIA

O 1% mais rico está cada vez mais distante dos outros 99%

Conforme o economista francês Thomas Piketty, a riqueza herdada se multiplica em oposição à renda dos trabalhadores comuns e da classe média
Por César Fraga / Publicado em 12 de dezembro de 2014

 

O 1% mais rico está cada vez mais distante dos outros 99%

Ilustração: Pedro Alice

Ilustração: Pedro Alice

Para o economista sensação do momento, o francês Thomas Piketty, autor do calhamaço de mil páginas na edição brasileira, O Capital do Século XXI (Editora Intrínseca) – a edição americana é mais compacta – , “a redução da desigualdade jamais virá do crescimento econômico”. Ele defende um sistema tributário progressivo sobre grandes fortunas. Para ele, em palestra ministrada na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEAUSP), no último dia 26 de novembro, a igualdade de oportunidades de acesso à educação é fundamental para mudar o rumo da concentração da renda pesquisada nos 20 países mais ricos. Mesmo não sendo marxista, afirmou: “Marx é possivelmente mais importante que Jesus”. [Nota do editor:  a conferência que serviu de base para esta matéria foi transmitida em vídeo pela universidade via IPTV/USP (Internet Protocol Television) e pode ser assistida na íntegra com tradução abaixo]

Assista a íntegra da palesta de Thomas Piketty, na FEAUSP, em 26 de novembro:

Na USP, Piketty criticou a falta de transparência na divulgação das estatísticas relacionadas ao imposto de renda que impede estudos com maior precisão sobre a realidade brasileira. Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) mostram um nível de concentração, e o imposto de renda, outro. Segundo ele, as pesquisas domiciliares precisam ser complementares aos dados do IR.

Também fez alusão a uma pesquisa recente de especialistas da UnB que utilizou seu método, que mostra que a desigualdade não só estagnou como era maior do que se imaginava. Seu livro defende, a partir da análise de dados coletados de 20 países, que a desigualdade de renda estaria voltando a aumentar no mundo após décadas de queda. Para fundamentar sua tese, o economista francês usou dados anônimos obtidos a partir de declarações de Imposto de Renda. Piketty não incluiu os dados brasileiros em seu livro, pois as estatísticas sobre Imposto de Renda não foram liberadas pela Receita Federal. E só por isso o Brasil ficou fora da obra.

“É só você olhar os dados (sobre a concentração da renda) nos 10% mais ricos do Brasil e dos EUA para entender porque essa transparência (dos dados) é importante”, afirmou. “Se você considera essas estatísticas (da PNAD), o Brasil é menos desigual que os EUA, mas se olha os dados do imposto de renda usados pela equipe de (Marcelo) Medeiros (da UnB), o Brasil é mais desigual”, pondera. O trabalho da UnB mencionado por ele foi publicado em outubro deste ano e é assinado por Marcelo Medeiros, Pedro Souza e Fábio Castro.

Pela primeira vez, o levantamento analisa dados da Receita Federal utilizando uma  metodologia desenvolvida por Piketty em 2001 e conclui que os 5% mais ricos da população detinham 44% da renda do país em 2012 − não 35% como aponta a PNAD. Além disso, a pesquisa diz que o coeficiente de desigualdade (Gini) teria permanecido praticamente estável de 2006 a 2012 − enquanto pela PNAD a taxa teria caído 3%. “No que diz respeito (à renda) concentrada nos 10% mais ricos da população, quando olhamos os dados fiscais (do imposto de renda, usados por Medeiros) e os da pesquisa a domicílio (PNAD), o resultado muda totalmente”, afirmou o francês.

RESUMO – Para Piketty, a diminuição da desigualdade de renda depende de políticas de valorização do salário e de políticas inclusivas. E o acesso à educação de qualidade é o mais importante mecanismo para diminuir essa desigualdade. É preciso também criar taxações progressivas de renda e fortalecer movimentos trabalhistas.

O 1% mais rico está cada vez mais distante dos outros 99%

Ilustração: Pedro Alice

Ilustração: Pedro Alice

O 1% mais rico está cada vez mais distante dos outros 99%

Foto: Divulgação Intrínseca

Thomas Piketty

Foto: Divulgação Intrínseca

Nunca mais discutiremos desigualdade como antes
O Prêmio Nobel de Economia 2008, Paul Krugman, em artigo publicado no New York Times, assim que o livro foi lançado nos Estados Unidos (com 400 páginas a menos que no Brasil), em abril passado, já adiantava que a obra revolucionaria profundamente a forma como pensamos concentração de renda e desigualdade. Krugman destaca que se tornou comum afirmar que estamos vivendo uma segunda Belle Époque ou Era de Ouro, que Piketty credita à ascensão do “1%” mais rico. O economista destaca que só sabemos isso pelo trabalho de Piketty e seus colegas, principalmente Anthony Atkinson, de Oxford, e Emmanuel Saez, de Berkeley, responsáveis pelo desenvolvimento de técnicas estatísticas pioneiras que tornam possível rastrear a concentração de renda e de riqueza no passado distante − até o começo do século 20, no Reino Unido e Estados Unidos, e até o final do século 18, no caso da França.

No artigo, Krugman diz que o resultado foi uma revolução na compreensão sobre as tendências da desigualdade em longo prazo. Antes dessa revolução, a maioria das discussões sobre a disparidade econômica mais ou menos desconsiderava os muito ricos. Alguns economistas (para não mencionar políticos) tentavam sufocar aos gritos qualquer menção à desigualdade. Os debates sobre desigualdade se restringiam à disparidade entre os pobres da classe trabalhadora e as pessoas prósperas, mas não mencionavam os verdadeiramente ricos. Portanto, foi uma revelação quando Piketty e seus colegas demonstraram que as rendas do hoje famoso “1%”, e de grupos ainda mais estreitos, na realidade representavam a história mais importante na ascensão da desigualdade. “É um livro extremamente importante em todas as frentes. Piketty transformou nosso discurso econômico; jamais voltaremos a falar sobre renda e desigualdade da maneira que fazíamos”.

O 1% mais rico está cada vez mais distante dos outros 99%

Ilustração: Pedro Alice

Ilustração: Pedro Alice

Especialista em Piketty explica a obra
O Jornal Extra Classe ouviu com exclusividade, via Skype, a economista Monica Baumgarten De Bolle, que inicialmente apaixonada pela obra, a traduziu do original para a edição brasileira. Primeiramente, faria apenas a revisão técnica, mas acabou por fazer também a tradução, tornando-se assim referência obrigatória sobre o livro no Brasil. Ela falou diretamente de Washington DC, onde reside e atua como Global Fellow (pesquisadora) do Woodrow Wilson Center for International Scholars. É macroeconomista, sócia-diretora da Galanto | MBB Consultoria e diretora do Iepe/Casa das Garças, além de professora do Departamento de Economia da PUC-RJ.

Chefiou a área de Pesquisa Macroeconômica Internacional do Banco BBM de 2005 a 2006 e foi economista do Fundo Monetário Internacional em Washington, DC, entre 2000 e 2005. É PhD em Economia pela London School of Economics (set/2001), tendo escrito sua tese de doutorado sobre crises financeiras. É autora, junto com Dionisio Dias Carneiro, do livro A Reforma do Sistema Financeiro Americano: nova arquitetura internacional e o contexto regulatório brasileiro e, junto com Edmar Bacha, dos livros Novos Dilemas da Política Econômica – Ensaios em Homenagem a Dionisio Dias Carneiro e O Futuro da Indústria no Brasil: A Desindustrialização em Debate. Escreve mensalmente para o jornal O Estado de S. Paulo e semanalmente para O Globo a Mais, publicação vespertina do jornal O Globo para iPad.

Além disso, escreve análises econômicas sobre o quadro macroeconômico brasileiro para a Economist Intelligence Unit. Em geral, setores chamam a Casa das Garças, que teve entre seus idealizadores Edimar Bacha, de ninho dos tucanos, algo que lhe deixa furiosa. Ela afirma não ter qualquer vínculo partidário, mas reconhece que muitos dos integrantes da organização são de fato tucanos.

Extra Classe – A concentração de renda ameaça a democracia?
Monica de Baumgarten de Bolle – Ameaça bastante porque você tem, dependendo do grau de concentração de renda, se imaginarmos um extremo em que o topo do topo da pirâmide de distribuição de renda, quer dizer, tirando assim o 1% mais rico da população que leva pra casa 80% da renda e da riqueza gerada pela economia, isso daí evidentemente gera uma tensão política e socioeconômica enorme. Então eu acho que quando a gente olha para o século 19, que é uma das coisas que o Piketty faz e volta o tempo todo ao século 19, o ponto que ele tenta fazer é que não é à toa que algumas ideias e algumas utopias surgiram justamente neste período. Você tinha justamente uma pequena parcela da população que detinha uma parte importante e muito significativa da renda, e uma parte muito grande da população absolutamente destituída. Isso daí mesmo depois da revolução industrial, porque cabe lembrar que no início da revolução industrial o que se tinha era um trabalho assalariado, ou seja, as pessoas que trabalhavam nas fábricas não ganhavam quase nada. Isso está muito presente na literatura do século 19, que o próprio Piketty usa como exemplo, o que é muito legal, pois dá uma ilustração muito vívida do problema, mas se pegar, por exemplo, os livros de Charles Dickens, Émile Zola, Balzac, a gente sente exatamente essa tensão. Aliás, isso é muito presente, principalmente em Dickens, que é daquela classe de trabalhadores que ficavam no chão das fábricas, que tinham vidas absolutamente desoladoras e não conseguiam melhorar, ter nenhuma perspectiva de mobilidade social, em uma época em que não existiam direitos. Então tudo isso criou um clima de tensão, que levou em alguns casos na Inglaterra, por exemplo, ao início da discussão do surgimento de direitos, ao início do estado de bem-estar social, que iria começar a aparecer na Europa, mais para o século 20 do que para o século 19, mas todos esses foram desenvolvimentos no sentido de aplacar essas tensões. Então tivemos no século 19 ou esse caminho que foi o caminho mais virtuoso, de tentar criar condições para aplacar essas tensões que existiam, ou se partia para o outro lado que foram as revoluções, como ocorreu na Rússia, onde o experimento comunista foi feito em grande escala. A questão da desigualdade, quando ela é extrema, ela gera sim um ambiente de muita tensão política, de muito deslocamento socioeconômico e é ruim para tudo.

"Piketty propõe uma solução controversa, que é instituir um imposto global progressivo sobre grandes fortunas"

Foto: Divulgação

Foto: Divulgação

Extra Classe − E no cenário em que a gente vive hoje, em que já tivemos os modelos de bem estar social, do crescimento econômico do pós-guerra, e depois disso a experiência neoliberal de Estado mínimo e globalização, e hoje se discute crise mundial, inclusive no Brasil, como você vê essa situação comungando das ideias do Piketty e estabelecendo um paralelo com a obra, que aliás defende maior intervenção do Estado na economia? Como você vê esse 1% de muito ricos no Brasil, das políticas existentes, num cenário aparentemente de crise nesta virada de ano pós-eleitoral?
Monica − Deixa eu falar um pouco de mundo, e depois eu vou falar um pouco de Brasil. No mundo hoje, no eixo entre os países desenvolvidos, Estados Unidos de um lado e Europa do outro – o Japão é um caso à parte, porque é um país muito igualitário, mas também é uma ilha onde as coisas são um pouco mais fáceis –, mas tanto na Europa como nos EUA, essa questão da desigualdade hoje tem proporções extremamente importantes no debate público. Aqui nos EUA até mais do que de certo modo na Europa, o que é surpreendente. Na Europa de todo modo, os países ainda têm um estado de bem-estar social, apesar de enfraquecido. Aqui nos EUA, como as redes de proteção social são muito mais frágeis do que na Europa pelas próprias convicções do país e de sua linha ideológica, esse tema da desigualdade está presente como nunca. Praticamente todos os dias temos um artigo sobre o assunto ou no New York Times ou no Austin Journal, obviamente antagônicos, o primeiro dizendo o quão grave é o problema no país e o segundo dizendo que não. Porque o que acontece aqui é que antes da crise você já vinha num processo de aumento da desigualdade. Mas isso ficou muito evidente depois da crise de 2008, quando as pessoas que foram mais abaladas e que sofreram mais as consequências foram as da classe média e as mais pobres. São sempre aqueles que não podem se defender tão bem. E a recuperação tem sido muito lenta, embora os EUA estejam melhor do que a Europa, onde ainda não há recuperação. Aqui, os salários estão estagnados há seis anos, com isso se tem uma parcela muito grande da população que não teve qualquer aumento de renda nesse período e uma parcela pequena da população, o 1% que leva para casa 50% da renda gerada nos EUA são exatamente aquelas pessoas que não vivem de salário, vivem de outras fontes de renda derivadas de riqueza, de acumulação de ativos, ações em bolsa, que se beneficiam das altas das ações que temos visto. Isso gerou, por exemplo, o movimento Occupy Wall Street.

Extra Classe − E a riqueza dessas pessoas independe da produtividade do país crescer ou não, está correto, eles enriquecem até na crise?
Monica – Exatamente, então nesse sentido, isso que acontece hoje nos EUA são ecos do século 19, e o Piketty faz esses paralelos, que de fato cabem na situação atual. É óbvio que o mundo passou por inúmeras transformações e as economias não são mais iguais ao que eram há 200 ou 300 anos, mas isso não quer dizer que você não tenha o mesmo tipo de tensão ou tensões semelhantes às que se tinha naqueles tempos. Esse é um pouco o quadro nos Estados Unidos.

Extra Classe – Aproveitando a deixa,  gostaria que você falasse um pouco das críticas que o livro recebeu tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra e da receptividade que teve, principalmente nos EUA?
Monica – A receptividade tem relação direta com esse problema que o país vive hoje. Então você ter um livro que trata da desigualdade num país que está discutindo desigualdade é óbvio que essa obra vai pegar, ainda mais sendo um livro tão acessível ao público geral. Porque é um livro que tem como pano de fundo a desigualdade, e nisso o Piketty foi extremamente feliz, porque é uma coisa que livros de economia tipicamente não fazem, ele resgatou uma narrativa histórica para situar o problema da desigualdade hoje. Isso é uma coisa que toca muito diretamente na vida das pessoas. Então a receptividade aqui tem relação direta com o drama que o país vive. Já as críticas foram muito mais direcionadas à história do imposto sobre grandes fortunas, que é uma proposição do autor, do que qualquer outra coisa do livro. O livro é 90% discussão sobre desigualdade e distribuição de riqueza e tentativas de apontar razões por que a gente chegou onde chegou, e como é que a gente entende isso a partir de uma perspectiva histórica, e 10% apenas, no finalzinho do livro, é uma tentativa de pensar de que maneira se pode atacar esse problema no mundo. E, evidentemente, como o Piketty propõe uma solução controversa, que é instituir um imposto global progressivo sobre grandes fortunas, essa parte do livro acabou chamando a atenção dos setores digamos mais conservadores aqui nos Estados Unidos. Porque tipicamente o que se quer de um sistema tributário que ele seja progressivo, para que se tenha uma maneira mais justa de tributar essas pessoas. Aquelas pessoas que têm mais renda e riqueza, em tese, deveriam pagar mais impostos do que aquelas que têm menos renda. Só que não é isso que acontece.

Especialista em Piketty explica a obra

Foto: capa, reprodução

Foto: capa, reprodução

Extra Classe – Mas essa já é uma reivindicação antiga dos movimentos sociais no Brasil?Monica – Esse tema da progressividade da estrutura tributária é consensual no mundo hoje. Não tem quem não aceite a tese. Salvo aqui nos Estados Unidos, que o George Bush, quando fez aquela história de cortar os impostos dos mais ricos (risos) e deixou os mais pobres, coitados, a ver navios, em todo o mundo existe um consenso que o melhor tipo de estrutura tributária, para fins de justiça social, é uma estrutura progressiva. A regressiva é a pior possível, pois penaliza os mais pobres e beneficia os mais ricos. Embora se tenha alguma discussão em torno deste modelo, hoje em dia é bem aceito. Mas obviamente esse 1% não quer ser tributado, ninguém quer. Então, na hora que o Piketty propõe o imposto sobre as grandes fortunas foi duramente atacado pelos setores que representam esse 1% e pelos setores de visão mais conservadora, um pouco na linha de que se você institui um imposto sobre essas fortunas retira o ímpeto empresarial daquelas pessoas que realmente inovam e empreendem e criam empregos, não deixa de haver uma certa verdade nesse argumento, mas por outro lado, imposto é por definição distribuição de renda também, pois é um instrumento de arrecadação para o governo. Então a gente tem de pensar sim nessas coisas, para procurar caminhos para tentar reduzir as desigualdades. E isso também sofreu muitas críticas na Inglaterra depois que teve aquele artigo no Financial Times, que na minha opinião, para usar um termo popular na campanha presidencial no Brasil, foi leviano. E uma tentativa meio tosca de tentar desqualificar o Piketty, tanto que depois recebeu uma crítica na The Economist.

Extra Classe – Foi bem ideológico o artigo do Financial Times, não foi?
Monica − Ideológico e, no final das contas, malfeito. O que eles fizeram foi replicar a  metodologia do Piketty, porém, usando outras fontes de dados. Só que o que eles fizeram não é minimamente razoável do ponto de vista de compilação de dados estatísticos. Foi infeliz.

Extra Classe – Piketty, além de defender essa tributação das grandes fortunas, também fala que a democracia necessita de uma classe média forte. Como fortalecer a classe média. Qual a fórmula?
Monica − Esse é que é o ponto. Quais são os mecanismos que você tem de buscar para fortalecer a classe média. Mas antes gostaria de fazer um último comentário sobre o imposto sobre grandes fortunas. O próprio Piketty disse o seguinte a respeito disso: “isso daí eu coloquei no livro como uma possível proposta, mas eu sei que é uma proposta que tem falhas, é difícil de implementar, um tanto ingênua, por ser global.

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