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A desconstrução das desigualdades

Por Grazieli Gotardo / Publicado em 11 de agosto de 2015

A desconstrução das desigualdades

Foto: Ximena León Contrera/ USP

Foto: Ximena León Contrera/ USP

O fenômeno da desigualdade é muito mais complexo que sua dimensão monetária. A partir desse princípio e da posse de seis edições dos Censos do IBGE, de 1960 a 2010, professores do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), de São Paulo, desenvolveram o livro Trajetórias da Desigualdade: como Brasil Mudou nos últimos 50 anos (Ed. Unesp/CEM, 2015). A publicação tem como organizadora a professora da Universidade de São Paulo (USP), pós-doutora em Ciência Política pelo Massachussets Institute of Technology (MIT), Marta Arretche, que também coordena o CEM. De acordo com a pesquisadora, a trajetória recente das desigualdades no país mostra que não existe a potencial incompatibilidade entre democracia, suas instituições políticas e a redução dos indicadores de desigualdade como defendiam as ciências sociais dos anos 1990. Porém, o ambiente democrático sem políticas efetivas é insuficiente para a redução das distâncias sociais. A publicação representa o maior balanço sobre desigualdades já feito no país, com
14 estudos inéditos sobre aspectos como renda, escolaridade, mercado de trabalho, participação política, acesso à saúde e questões de gênero. “Sob o regime democrático contemporâneo, as dimensões mais inaceitáveis das desigualdades sociais no Brasil foram bastante reduzidas”, afirma a pesquisadora nesta entrevista ao Extraclasse.

Extra Classe – Por que apenas a análise de renda não é suficiente para avaliar a desigualdade?
Marta Arretche – As avaliações sobre a desigualdade têm se concentrado excessivamente em apenas uma dimensão, a renda, e extrapoladas, por dedução, para as demais. Mas a desigualdade não se resume à renda. A renda real dos indivíduos é afetada pelo gasto social no momento presente e sua renda futura é afetada por efeitos intertemporais de políticas. Além disso, as condições de vida são parte integrante de uma vida decente. Concentrar nossa análise da desigualdade na dimensão da renda implica logicamente a limitação do rol de mecanismos que permitem sua redução. Parte expressiva das interpretações que concluem que pouco mudou no Brasil nos últimos 50 anos é derivada de um viés negativo de seleção dos indicadores com pior desempenho e, sobretudo, de uma métrica móvel segundo a qual exigências mais elevadas são adotadas à medida que progressos são obtidos. O viés de seleção também afeta a interpretação que sustenta que um novo Brasil emergiu das mudanças recentes. De modo geral, esta inferência está baseada na seleção das dimensões cuja inflexão positiva foi mais destacada. Adotar uma estratégia de investigação que desagrega diferentes dimensões da desigualdade, observa sua trajetória no longo prazo e aplica a mesma métrica para todo o período nos permitiu uma interpretação empiricamente robusta sobre as trajetórias das desigualdades e os mecanismos para sua redução.

EC – A pesquisa apresentou alguma novidade para a ciência social?
Marta – Dois alicerces da ciência social comparada foram abalados pela acumulação de sólidos conhecimentos empíricos acerca da trajetória da desigualdade nos últimos 50 anos. O primeiro sustentava que a democracia levaria à redução das desigualdades sociais nas economias avançadas. A democracia também preservaria estas conquistas sociais no primeiro mundo, devido aos custos eleitorais das políticas de imposição de perdas. O segundo alicerce sustentava que esta rota virtuosa estava interditada ao Brasil. Aqui, os direitos sociais foram expandidos por regimes autoritários e orientados a produzir desigualdades entre categorias de cidadãos. A inversão da sequência virtuosa descrita por Marshall (Thomas H. Marshall, autor que desenvolveu a distinção entre as várias dimensões da cidadania) produziria no Brasil efeito distinto daquele obtido no primeiro mundo, teria implicado desvalorização das instituições representativas. Ademais, a escolha por instituições políticas propensas a facilitar o veto a propostas redistributivas, em particular presidencialismo e federalismo, tornaria altamente improvável a aprovação de políticas para a redução das desigualdades. Nosso estudo sobre o Brasil mostra que, sob o regime democrático contemporâneo, a desigualdade foi reduzida em múltiplas dimensões relevantes. Caiu muito a desigualdade de renda, cresceu o acesso ao ensino fundamental, a energia elétrica e a coleta de lixo tornaram-se praticamente universais; a figura do trabalhador rural que nunca foi à escola está em vias de desaparecimento; a associação entre pobreza e falta de acesso a serviços básicos diminuiu sensivelmente; as desvantagens de mulheres e não brancos no mundo escolar e do trabalho foram reduzidas; a desigualdade nas condições de vida entre regiões ricas e pobres foi atenuada; a desigualdade de participação eleitoral é baixa e ampliaram-se significativamente os canais institucionalizados de participação extraparlamentar.

A desconstrução das desigualdades

Imagem: reprodução

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EC – Qual a origem da desigualdade no Brasil e quando ela começou a ser enfrentada?
Marta – A trajetória recente das desigualdades no Brasil autoriza refutar a interpretação de que haveria uma potencial incompatibilidade entre a democracia, suas instituições políticas e a redução da desigualdade no Brasil, tal como proposto pela literatura em ciências sociais dos anos 1990. Disto não decorre, contudo, que a democracia seja causa suficiente para a redução das distâncias sociais, como mostra a trajetória recente das democracias avançadas. No Brasil, sob a democracia, diminuiu sensivelmente a desigualdade de renda entre os mais ricos e os extremamente pobres, muito embora seu grau ainda seja muito alto. Esta dimensão da redução da desigualdade é explicada principalmente pelo gasto social e pela política do salário mínimo. A desigualdade de rendimentos no mercado de trabalho também diminuiu, mas a um ritmo bem mais moderado. A trajetória desta dimensão, contudo, é em grande medida explicada por mecanismo distinto. É principalmente afetada pela tardia e gradual expansão da oferta de educação, que ainda está restrita ao nível fundamental de ensino. Portanto, parte importante da trajetória recente da desigualdade de renda no Brasil é resultado da combinação de políticas distintas. Não pode ser explicada por qualquer mecanismo isolado, nem é um subproduto direto da democracia. Além disto, revela que decisões sobre o destino do gasto público e sobre as regras das políticas têm impacto efetivo sobre a desigualdade de renda.

EC – Qual o papel das políticas públicas?
Marta – A trajetória recente do Brasil demonstra que as políticas e suas regras têm impacto crucial sobre a pobreza e a desigualdade. Parte substancial da redução das desigualdades sociais no Brasil foi resultado da combinação em um curto período de tempo da adoção de diferentes políticas cuja trajetória foi independente. Nosso estudo, entretanto, revela que não devemos atribuir as mudanças em curso na estratificação social brasileira exclusivamente às políticas. Desenvolvimentos anteriores, entre os quais uma revolução silenciosa no comportamento das mulheres, cujas consequências sobre a composição demográfica e as normas sociais começam a ser exploradas, não são de modo algum irrelevantes.

EC – É possível associar a redução da desigualdade com a evolução do acesso à educação?
Marta – A associação entre educação e renda opera em duas direções. A origem social dos indivíduos afeta seu acesso à educação e o desempenho escolar assim como há um prêmio associado à educação que distingue indivíduos mais e menos escolarizados no mercado de trabalho. Isoladamente, a educação seria o fator que mais determina as oportunidades no mercado de trabalho. Nos últimos 50 anos ocorreram mudanças substanciais na extensão em que as desigualdades sociais afetam as oportunidades educacionais. A universalização do acesso ao ensino básico – quase 70% dos jovens que entraram no sistema educacional completaram oito anos de estudo em 2010 em contraposição a uma taxa de 10% em 1960 – e a consequente entrada massiva de jovens no ensino médio implicou um deslocamento, por efeito de saturação, do nível de ensino em que a origem socioeconômica opera como um constrangimento sobre a progressão escolar. Ainda que  m número crescente de jovens tenha ingressado no ensino médio e no ensino superior, as taxas de conclusão destes níveis de ensino entre os jovens são muito inferiores às de entrada. Além disso, as desigualdades de oportunidades revelaram-se persistentes para o ensino médio e até mesmo aumentadas para a conclusão do ensino superior. Nosso atraso educacional – qual seja, os muito baixos níveis de escolaridade da população brasileira – e, portanto, a escassez de mão de obra qualificada, foram responsáveis pelos elevados diferenciais de salário no mercado de trabalho. Logo, o aumento da escolarização aumentou a oferta de mão de obra mais qualificada e, por consequência, reduziu o prêmio pelos diferenciais de escolaridade. Portanto, a queda da desigualdade de renda no mercado de trabalho teve como origem a expansão dos níveis de escolaridade da população economicamente ativa.

EC – É possível comparar o efeito das políticas adotadas nos últimos governos?
Marta – O Programa Bolsa Família teve um impacto muito importante na redução da extrema pobreza e isto tem a ver com seu desenho. Os erros de vazamento são de limitada intensidade, o que é explicado pela centralização da autoridade para distribuição dos benefícios. Nos programas adotados por FHC, no início de 2000, os benefícios eram transferidos do governo federal para os governos municipais, que detinham, por sua vez, a autoridade sobre sua alocação. O Bolsa Família, no governo Lula, eliminou essa intermediação. A combinação de escala do número de beneficiários e autoridade centralizada para a distribuição do benefício não é, portanto, irrelevante. Ampliar o número de beneficiários sem garantir sua efetiva focalização não teria produzido os ganhos de renda dos extremamente pobres. A política em torno do salário mínimo está no centro da redução da desigualdade de renda. Por política do salário mínimo, entendo tanto a atualização dos valores quanto as categorias sociais afetadas por esta valorização.

EC – E em relação ao salário mínimo?
Marta – Desde 1940, os salários no mercado formal de trabalho estão atrelados à decisão governamental sobre o valor do salário mínimo. A Constituição Federal de 1988 estabeleceu o salário mínimo como piso das aposentadorias rurais e urbanas. A implementação do Benefício de Prestação Continuada iniciou em 1995. Logo, o universo de protegidos pela política do salário mínimo foi resultado de mudanças endógenas que se desdobraram no tempo. Uma vez incorporado um amplo contingente de indivíduos mais vulneráveis, a trajetória de sua renda passou a depender da política de valorização do salário mínimo. Na trajetória recente, esta valorização iniciou no governo Fernando Henrique em 1994, mas sua aceleração somente ocorreu a partir do governo Lula.

EC – Como as mudanças nas estruturas familiares incidem sobre as desigualdades?
Marta – Ocorreu uma revolução silenciosa na vida privada no Brasil nos últimos 50 anos, revolução esta da qual as mulheres foram as principais protagonistas. Não apenas a expectativa de vida aumentou, como as desigualdades entre os que vivem mais e menos tempo vêm diminuindo. Paralelamente, ocorreu um encolhimento da descendência, isto é, caiu expressivamente o número de filhos por mulher em idade fértil. Ter filhos passou a ser uma escolha que acompanhou a transição rural-urbana, a massiva presença da mulher no mercado de trabalho, bem como o aumento da escolarização feminina. Não menos intensas foram as mudanças nos arranjos familiares. Há crescente heterogeneidade das configurações familiares. O número de casamentos formais caiu significativamente assim como aumentaram as separações conjugais. Isso não significa, contudo, um enfraquecimento da relevância do modelo familiar nuclear. Diferentemente, as uniões consensuais cresceram exponencialmente, revelando a convivência de múltiplas e mutáveis formas de convivência e de criação de filhos. A despeito da persistência de desigualdades, as margens de liberdade e de escolha aumentaram muito para as mulheres
neste último meio século.

EC – Em termos de mercado de trabalho no Brasil, quais mudanças tiveram maior impacto?
Marta – A queda da desigualdade no mercado de trabalho inicia apenas no final dos anos 1990. Esta trajetória é em grande parte explicada pela expansão – tardia, porém massiva – da oferta de ensino no Brasil a partir dos anos 1990. Portanto, a “onda que levantou o barco” no mercado de trabalho não é contemporânea do momento em que o barco é levantado, como ocorre com as de transferência de renda ou de valorização do salário mínimo. Diferentemente, esta é resultado de políticas implementadas em momentos anteriores no tempo. A queda da desigualdade no mercado de trabalho está associada à trajetória da política educacional.

EC – Quais as principais conclusões da pesquisa e que projeções podem ser feitas?
Marta – Sob o regime democrático contemporâneo, as dimensões mais inaceitáveis das desigualdades sociais no Brasil foram bastante reduzidas. A fusão de vantagens em uma pequena parcela da população e a distância que a separava de uma grande maioria que acumulava desvantagens em diferentes dimensões foi sensivelmente diminuída. Mas este resultado não foi um subproduto automático da democracia. A relação entre esta e a redução das desigualdades é mediada por políticas. É plausível supor que a competição política e a limitada desigualdade de participação eleitoral operem como incentivos à adoção dessas políticas. Esta relação não torna menos relevante que o mecanismo que aciona a redução das desigualdades está no desenho das políticas; mais especificamente, na adoção de regras de elegibilidade e de gestão que não apenas reduzam desigualdades de renda, mas também afetem a extensão em que esta opera como um obstáculo para a titularidade em outras dimensões relevantes do bem-estar. A queda simultânea destas desigualdades no Brasil não foi resultado de nenhum fator isolado, mas da combinação no tempo do efeito de diferentes políticas orientadas a públicos diferentes, cuja característica comum tem sido a orientação de reverter a longa trajetória de estabilidade da elevada desigualdade no Brasil. É plausível, portanto, supor que o primeiro efeito da democracia sobre a desigualdade seja corrigir seus aspectos mais inaceitáveis. Uma vez atingido este ponto, as sociedades se defrontam com uma decisão crucial que consiste em continuar nesta trajetória ou não. Veremos no futuro próximo quais escolhas a sociedade brasileira fará…

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EC – Como está sendo observado pela ciência social o aumento das diferenças em países desenvolvidos?
Marta – Ambas trajetórias, dos países desenvolvidos e do Brasil, subverteram teorias solidamente estabelecidas. Contrariando essas expectativas, as evidências têm revelado que a sociedade de classe média que emergiu no pós-2ª Grande Guerra pode não ser duradoura. Contrariando trabalhos clássicos como os de Eric Hobsbawn e Gösta Esping-andersen, a era dourada parece ter sido antes uma pausa na trajetória da concentração da riqueza do que expressão de transformações nos sistemas de estratificação econômica. Ainda que os EUA sejam muito mais desiguais do que os países europeus, o formato de U descreve a trajetória geral da desigualdade de renda, com tendência ascendente a partir da década de 1970. Por consequência, os níveis de pobreza aumentaram substancialmente nas democracias avançadas. Como isso foi possível se “uma característica-chave da democracia é a contínua responsividade do governo às preferências de seus cidadãos, considerados como politicamente iguais”? Para a teoria econômica, esses fatos não parecem ser menos desafiadores. Ainda que Simon Kuznets tenha sido muito mais cauteloso que seus comentadores, suas “especulações preliminares” deram origem a uma agenda de investigação que buscou evidências e razões para um U invertido na trajetória secular da desigualdade da renda: o crescimento da desigualdade ocorreria apenas nas fases iniciais do processo de industrialização; estágios mais avançados de desenvolvimento seriam acompanhados por redução das desigualdades.

EC – O estudo aponta uma transformação nos hábitos religiosos dos brasileiros. O que foi constatado?
Marta – O Brasil converteu-se de um país maciçamente católico, do Brasil rural dos anos 1960, em um país caracterizado pelo pluralismo religioso, sob um contexto altamente urbanizado. A história religiosa deste último meio século foi a história da progressiva perda de hegemonia da igreja católica, que não apenas perdeu membros declarados como manteve um grande número de católicos não praticantes. Entretanto, essa trajetória esteve longe de representar o fim da religião, posto que os sem religião revelaram avanço modesto ao longo desse período. A progressiva perda de importância relativa do catolicismo deu lugar à proliferação de diferentes filiações religiosas. Consolidou-se no Brasil o pluralismo religioso, como resultado das intensas transformações societais experimentadas nas últimas décadas, bem como das estratégias de proselitismo das religiões. Essa pluralidade de filiações religiosas, contudo, não está isenta de estratificações. A hegemonia católica permaneceu restrita ao meio rural. No meio urbano, cresceram mais aceleradamente os evangélicos, em particular nas metrópoles, dada sua maior presença – em particular dos pentecostais – na base da pirâmide social. Os espíritas, por sua vez, se concentram nos mais escolarizados e com maior renda.

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