OPINIÃO

Tesouros da decrepitude

Publicado em 12 de novembro de 2015

Milhões de neurônios morrem diariamente no cérebro, esse cemitério sob penteados esquisitos. Ainda não se sabe se existe variedade de causa mortis (neurônios distraídos em divagações atropelados por pensamentos de estalo, ou eletrocutados por lampejos criativos, ou por sedentarismo intelectual, ou ainda por esgotamento nervoso diante de provas do Enem ou no enduro da realidade nacional) ou se morrem por motivo único, a finitude programada pelo DNA, esse serial killer que age na surdina em nossas veias.

Tesouros da decrepitude

Ilustração: Sica

Ilustração: Sica

Sabe-se que os neurônios envelhecem mais rapidamente que o resto das células, alguns já caducam no berçário. Parece que há um cronômetro impiedoso que, como um atirador de elite, mira e liquida neurônios com petardos de tempo comprimido. Segundos viram décadas e a família do neurônio, coitada, quando pensa em se despedir do ente querido, o neurônio já foi pro além, em alguma parte insabida da caixa craniana. O pior é que cada neurônio, na hora da sua morte, se agarra às nossas lembranças como se fossem as dele e leva várias com ele pro limbo mental, logo ali atrás do lobo frontal.

Para não tratar esse assunto de forma impessoal, confesso que muitos dos meus neurônios já estão com mais de 100 anos. Para eles deve até haver vaga reservada em todos os lobos, com a pintura azulzinha de um neurônio encurvado. Ali estacionam, pra descansar do esforço de raciocinarem em vão, enquanto neurônios jovens bebem adrenalina sem moderação e têm overdoses de ideias. Já os neurônios idosos sofrem de vertigem em meio à turbulência das sinapses. E eles adoram a zona zen, porque lá podem enganar a fisiologia, fingindo que meditam.

Um dos meus mais antigos neurônios, sobrevivente de primevas elaborações cerebrais, apelidei de Matusalém. Além de não me retrucar, não serve nem pra informar o que comi ontem. Tão velho que o Censo Anual do Córtex o ignora, e as tomografias não incluem o ancião no resultado impresso.

Não sei direito como funciona esse relógio temporal, sei que tiquetaqueia silenciosamente sem parar na minha imaginação cada vez menos imaginativa. Basta ver a falta de originalidade dessa crônica.

Com os oprimidos, o Poder é um folgado; para os poderosos, é um folguedo.

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