MOVIMENTO

A comida com sabor, saber e identidade

Inspirada no movimento Slow food, a gastronomia regional aposta na autenticidade e integridade dos alimentos e valoriza a cultura local
Por Renato Dalto / Publicado em 15 de dezembro de 2015
Foto: Hans-Peter Siffert/ Arquivo Movimento Slow Food

Foto: Hans-Peter Siffert/ Arquivo Movimento Slow Food

Meret Bissegger, cozinheira da Casa Merogusto, no Terra Madre Day, organizado na Suiça pelo movimento Slow Food

Foto: Hans-Peter Siffert/ Arquivo Movimento Slow Food

Comer, saborear e, de preferência, pensar no que come. Este movimento em torno da mesa não cabe num único nome, mas tem como centro a cozinha, a terra e a in­tegralidade da relação entre pessoas e alimentos. Começam a se esboçar sinais de uma grande rede que tem como parâmetro a cozinha regional, o ali­mento justo e saudável e a recuperação do sabor com um toque de saber. “É um trabalho que passa muito pelas escolas. Houve um afastamento das pessoas do ato de cozinhar e a industrialização do alimento afastou as pessoas de pensar no que comem”, diz Jussara Dutra, psicóloga e formada em gastronomia que, durante o governo do estado de Tarso Genro, assumiu a cozinha do Palácio Piratini e fez disso um grande centro de fomento à culinária regional.

Foi demarcado um mapa onde a cozinha ser­viu como ponto de diálogo com saúde, educação, desenvolvimento regional, identidade cultural. Ci­dades da Serra, região Central, Fronteira e Mis­sões serviram como berço dessa política pública. O ponto de partida foi um edital lançado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do RS (Fapergs) que permitiu a criação de um grupo de estudos da gastronomia regional. No entanto, por trás disso, está um movimento mundial que se estende por quase duas centenas de países: o slow food, criado na década de 1980 pelo italiano Carlo Petrini, que tem como princípio o alimento bom, limpo e justo. Enfim, uma grande rede que vai, literalmente, da cozinha de casa a um movimento planetário.

É um movimento de apropriação da simpli­cidade e da autenticidade dos frutos da terra, da identidade cultural, do sentido de pertencimento e de apropriação do ato humano mais básico, o de se alimentar. Jussara vê também que a glamouri­zação do que se chama de alta gastronomia pode estabelecer uma elitização e uma desvalorização da cozinha local ou regional.

“Na verdade, penso que a alta gastronomia não exilou as pessoas e sim a gourmetização, pois esta não leva em consideração os aspectos relacio­nados à essência da cozinha. Neste sentido, a gas­tronomia está indo a passos largos para a descarac­terização da cozinha com identidade. Os próprios cozinheiros acabam também por seguir tendências ou influências gastronômicas que não refletem o saber fazer da gastronomia propriamente dita, gastronomia esta que possui história, está impregnada de cultura, representa a localidade e principalmente identifica e diferencia as regiões”, opina Roberto do Nascimento e Silva, do Curso Superior de Tecnologia em Gastronomia da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc).

Feira Ecológica da Secretaria Estadual da Agricultura, Pecuária e Agronegócio (Seapa) já abasteceu a cozinha do Piratini, quando a prioridade eram alimentos orgânicos nas refeições

Foto: Camila Domingues/Palácio Piratini

Feira Ecológica da Secretaria Estadual da Agricultura, Pecuária e Agronegócio (Seapa) já abasteceu a cozinha do Piratini, quando a prioridade eram alimentos orgânicos nas refeições

Foto: Camila Domingues/Palácio Piratini

No Rio Grande do Sul, estado de enorme diversidade, esse movimento ganhou força nas festas regionais e no mapeamento de novas possibilidades. Por exemplo: há dois anos acontece na fronteira Santana do Livramento ‒ Ri­vera o Festival Binacional de Eno Gastronomia e Produtos do Pampa, que está servindo também como um impulso a todo um processo de desenvolvimento regional. A começar por duas vocações do lugar: a produção de vinhos e de carne.

Atílio Ibargoyen, produtor rural e proprietário do Hotel Fazenda Palo­mas, fala dessa forma de aproximar o produtor e o consumidor e descortinar, enfim, uma cozinha em que a simplicidade é um grande valor a ser agregado. “Oferecemos a qualidade que vem do ambiente, do tipo de criação dos ani­mais. Além disso, nesta região da fronteira, a gastronomia pode ser uma alter­nativa a essa sazonalidade cambial ao oferecer um produto que é um atrativo permanente”.

Um movimento social
Entretanto, se há a produção e o preparo de comida a partir de fatores como tradição e consci­ência de quem consome, é necessário também pen­sar a questão por outro lado. “A alimentação não é só para quem pode pensar no que consome”, alerta Tainá Zaneti, professora do curso de Gastronomia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Ela já participou de um projeto da Universidade de Brasília (UnB) para a valorização dos frutos do cerrado, integra o movi­mento do slow food e vê, em toda essa questão, a ne­cessidade também de elaboração de políticas públi­cas. Ou seja: a transformação da cozinha pressupõe um outro horizonte também da sociedade.

Por isso, Jussara Dutra fala na escola. A educação pelo gosto é também a consciência de um lugar, de uma história, de uma me­mória passada através do alimento. Ela lembra de uma pesquisa sobre frutas feita com alunos, que mostra um absoluto desconhecimento das 54 espécies nativas que proliferam no estado. Consciência do que come, consciência de si mesmo, cordão umbi­lical que liga uma pes­soa ao mundo. Como as plantas e os animais, cada um também tem o seu terroir, ou seja, o lugar onde viceja, vive e prospera. É o que afirma Roberto do Nascimento e Silva.

Movimento mobiliza a gastronomia local de diversas partes do mundo, a exemplo dessa oficina com mulheres palestinas

Foto: Beit Karama/Arquivo Movimento Slow Food

Movimento mobiliza a gastronomia local de diversas partes do mundo, a exemplo dessa oficina com mulheres palestinas

Foto: Beit Karama/Arquivo Movimento Slow Food

“A questão da gastronomia tem alguns condi­cionantes básicos: o sentimento de pertencimento (reconhecimento das pessoas em se reconhecerem através da gastronomia oferecida), atração de pesso­as para a região para conhecer a gastronomia local, configuração dos terroirs e de indicações geográfi­cas. No Brasil existem duas certificações: Indicação de Procedência e Denominação de Origem, como por exemplo os vinhos do Vale dos Vinhedos (RS), e o café do Cerrado Mineiro (MG). Mas, a priori, sempre se buscam regiões reconhecidas territorial­mente, através da construção de um processo histó­rico e cultural”.

A questão talvez seja simples: se apropriar da cozinha para se conhecer e se dar a conhecer. E assim estabelecer redes, vínculos e parâmetros de uma vida melhor em todos os sentidos. Ou, como afirma, Silva, simplesmente isso: “A melhor gastro­nomia é aquela desenvolvida com amor, respeito e dedicação independentemente do grau de sofistica­ção do prato. E que tenha por objetivo a satisfação de todos os envolvidos no processo, desde o produ­tor rural até o comensal final”, constata.

Impulso ao desenvolvimento local
Costuma-se dizer que Livramento, na Frontei­ra Oeste do Rio Grande do Sul, é a cidade do já teve: já teve prosperidade, já teve um frigorífico, já teve um lanifício. Hoje só tem saudade de um pas­sado que, olhado de longe, sempre parece melhor pintado com as cores da fantasia.

O italiano Carlo Pietrini, idealizador do movimento slow food fala para chefes de cozinha no Festival de Eno Gastronomia

Foto: Alan Gonçalves/Divulgação

O italiano Carlo Pietrini, idealizador do movimento slow food fala para chefes de cozinha no Festival de Eno Gastronomia

Foto: Alan Gonçalves/Divulgação

O Festival Binacional de Eno Gastronomia e Pro­dutos do Pampa, que caminha para a sua terceira edi­ção, revitalizou a fronteira, com a integração do lado uruguaio através de Rivera. Em torno dessa grande mesa sentaram grandes chefs nacionais (como Ana Luiza Trajano), ONGs de desenvolvimento rural (como a Alianza de los Pastizales), produtores locais de vinho e carne, turistas e público em geral.

Os primeiros resultados dis­so: pecuaristas já discutem como melhorar a produção de carne em campo nativo; está abrindo um frigorífico para abate de cordeiros e o festival caminha para a terceira edição. Na segunda, realizada este ano, Carlo Petrini, o criador do slow food, esteve por lá. Saboreou churrasco, conversou com pessoas, deu um ar cosmopolita ao encon­tro local. Mostrou o óbvio: a gran­deza da boa mesa está no valor e na força da simplicidade.

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