OPINIÃO

Há juízes em Berlim?

Por Marcos Rolim / Publicado em 8 de março de 2016

 “Muitos dos que aplaudiram a decisão por certo ficariam indignados se, com base no mesmo entendimento, o Tribunal Superior do Trabalho permitisse a imediata execução das condenações trabalhistas confirmadas em 2ª instância. O mesmo poderia valer para as indenizações cíveis. Por que razão, afinal, haveria mais garantias aos condenados no cível do que no crime?“.

O Supremo Tribunal Fede­ral (STF) decidiu que as penas de prisão podem começar a ser cumpridas a partir de condenação em 2ª instância. A decisão despertou, de imediato, a simpatia dos que estão conven­cidos de que se prende pouco no Brasil e que nossas leis penais são frouxas. Houve mesmo quem tives­se aventado que a decisão porá fim à impunidade e que o STF, final­mente, se ergue contra o “prende e solta”, fenômeno que, segundo o senso comum, inferniza o Brasil.

No parágrafo acima há um universo de simplificações e equí­vocos. Primeiro, a decisão do STF não afetará as taxas de impunida­de. Ela permitirá que condenados pelos Tribunais de Justiça sejam presos enquanto aguardam ape­lação em 3º instância. A medida atingirá sobretudo os réus com maior poder aquisitivo, aqueles que costumam chegar aos Tribu­nais Superiores.

Como o número deles é proporcionalmente peque­no e a decisão não é erga omnes, a medida terá impacto menor do que se imagina. Entendo como razoável que condenados pela Justiça criminal em 2ª instância sejam presos – até porque em 3ª instância não se discute mais ele­mentos da prova. Há, entretanto, um probleminha: a Constituição Federal diz que “Ninguém será considerado culpado até o trânsi­to em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, inciso LVII). A decisão do STF, por maioria de seus membros, ignora o trânsito em julgado, admitindo a anteci­pação da execução penal.

Assim, parece evidente que o caminho de­mocrático para fazer valer o enten­dimento do STF exigiria mudança da Constituição o que, no caso, por envolver “cláusula pétrea”, só poderia ser feito por Assembleia Constituinte. Repito que concordo com a opinião da maioria do STF. Não concordo é que o STF descon­sidere, por pragmatismo, os ter­mos da própria Constituição.

Muitos dos que aplaudiram a decisão por certo ficariam indig­nados se, com base no mesmo entendimento, o Tribunal Superior do Trabalho permitisse a imediata execução das condenações traba­lhistas confirmadas em 2ª instân­cia. O mesmo poderia valer para as indenizações cíveis. Por que razão, afinal, haveria mais garan­tias aos condenados no cível do que no crime?

Enquanto isso, temos em nossos presídios cerca de 250 mil pessoas trancafiadas preventivamente. Ou seja, 40% da massa carcerária brasileira é composta por pessoas que não foram condenadas nem em 1ª instância. Parte expressiva deste contingente será absolvida. Muitos, efetivamente, porque não praticaram os crimes pelos quais foram acusados; outros, porque a investigação policial não existiu ou foi tão precária que não há prova que autorize a condenação.

Entra­mos, aqui, no centro do problema da impunidade no Brasil: a qua­lidade da prova. Ao contrário do que a ignorância disseminada re­produz, a impunidade não decorre de lei frágil, mas de investigação inepta. Sobre o “prende e solta” seria necessário repetir à exaustão que a prisão é, salvo as exceções previstas no Código de Processo Penal, o resultado de condenação judicial. Não se prende alguém para que, depois, o encarcerado prove sua inocência.

A civilização democrática recusou este caminho e a literatura tratou de denunciá-lo pelo talento de escritores como Ka­fka. Os que reclamam do “prende e solta” sugerem, entretanto, sem que se deem conta, um caminho similar ao que Kafka descreve em O Processo onde se desconsidera que a regra do processo penal é a liberdade. Vale dizer: a prisão é imposta aos considerados culpa­dos por sentença judicial, não aos detidos pela polícia.

Neste particu­lar, a imprensa faria um bem extra­ordinário se explicasse que “prisão em flagrante” não significa que o suspeito tenha sido preso no mo­mento em que praticava o delito. Situações do tipo, aliás, são rarís­simas. “Flagrante” no Brasil signifi­ca a prisão feita até 24 horas após o fato criminal e é, quase sempre, o chamado “flagrante presumido”, onde a autoridade policial deduz que há indícios de que o detido possa ter cometido o crime.

Daí até se saber se o suspeito foi o autor do delito há um caminho estabele­cido pela Constituição: o processo penal onde haverá uma acusação formal, a ampla defesa e o con­traditório, garantias fundamentais que nos protegem do arbítrio.

Não devemos ignorar ou me­nosprezar as garantias constitucio­nais, sob pena da ruína do Estado Democrático de Direito. François Andriex, no conto intitulado O Mo­leiro de Sans-Souci, nos oferece a razão básica: Frederico II, Rei da Prússia, pretendia comprar a pro­priedade de um moleiro que, não obstante, recusava todas as ofer­tas. Não venderia a propriedade onde estava seu moinho por dinhei­ro algum.

Então o rei diz: “sabes que, como rei, posso tomar suas terras sem qualquer pagamento? Ao que o moleiro respondeu: “o senhor, tomar-me o moinho? Só se não houvesse juízes em Berlim”.

* Marcos Rolim é Doutor em Sociologia e jornalista. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe

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