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A leal e valorosa cidade que resistiu aos Farrapos

Por Naira Hofmeister / Publicado em 13 de junho de 2016

 

Título que Porto Alegre ostenta em brasão e bandeira foi dado em 1841 por reconhecimento à lealdade ao Império do Brasil por resistir a um cerco dos rebeldes farroupilhas, que durou mais de mil dias, e que teve início há 180 anos. Era um junho como este, só que em 1936. Na madrugada do dia 14 para o 15, um grupo de prisioneiros políticos encarcerados consegue liberar-se e retomar o controle de Porto Alegre para o Império brasileiro, expulsando o exército Farroupilha que dominava a cidade desde o 20 de setembro de 1835.

A reconquista da capital da província para as tropas Legalistas, que tinham a missão de combater os Farrapos, foi um marco na guerra civil gaúcha. Em Porto Alegre, deu origem a um cerco que durou quatro anos – mais de 1,2 mil dias, com duas pequenas tréguas – e a uma vitoriosa resistência reconhecida pelo governo imperial, que em 1841 outorgou à cidade o título de Leal e Valorosa, ainda hoje inscrito no brasão de armas e na bandeira municipal.

A data da reação Legalista em Porto Alegre – 15 de junho – chegou a ser considerada feriado na cidade, decisão que foi revogada mais tarde. Em âmbito estadual, expôs o fracionamento do Partido Farroupilha, que se acentuaria nos anos seguintes, transformando-se em fator decisivo para o desfecho da luta em 1845. “A tomada e o cerco a Porto Alegre já expressam as contradições do movimento, as divergências entre as facções que, no fim da guerra, vão trair e matar umas às outras”, assinala o historiador e professor da Universidade de Passo Fundo (UPF) Tau Golin.

A leal e valorosa cidade que resistiu aos Farrapos

Foto: Igor Sperotto

Sérgio da Costa Franco, historiador

Foto: Igor Sperotto

Apesar da importância central, o episódio é pouco conhecido da população gaúcha e não mereceu especial atenção dos historiadores. “Os Farrapos fracassaram em Porto Alegre, mas não interessa estudar esse fato, pois o discurso sobre a guerra é sempre de glorificação”, acredita um dos poucos especialistas a se debruçar sobre o tema, o também historiador Sérgio da Costa Franco (foto ao lado). Em 2011, Franco chegou a editar o livreto Porto Alegre sitiada, pela Editora da Cidade. “Foi para compensar a absoluta falta de bibliografia”, justifica.

Em 136 páginas em formato pocket, relata como foi que os Legalistas reverteram o domínio Farroupilha após o combate imortalizado no quadro A tomada da Ponte da Azenha, do pintor Augusto Luiz de Freitas (que ornamenta o hall do Instituto de Educação General Flores da Cunha, em Porto Alegre), e as inúmeras batalhas e escaramuças entre as tropas que se seguiram. Na obra, o historiador se vale de depoimentos colhidos em jornais
e em diários de quem viveu aquele período. “Mas ainda há muita coisa inédita nos arquivos do Instituto Histórico e Geográfico, correspondências dos comandantes das guarnições que nunca foram examinadas, é só alguém ter interesse em procurar”, alerta.

Homenagem aos algozes
Comandando o front Farroupilha em Porto Alegre estavam os grandes heróis Farrapos, cuja participação no cerco à capital deixou marcas na história e até na geografia urbana. Foi deixando um combate perdido que Bento Gonçalves caiu preso em 1836, ao se retirar da capital ao fim da primeira etapa do cerco, em setembro, na famosa batalha da Ilha do Fanfa. O general Antonio de Souza Netto foi o responsável por levantar novamente o cerco meses depois, erguendo inclusive uma fortificação para abrigar as tropas “numa elevação entre o Passo da Areia e o Caminho do Meio” – esse local ficou imortalizado pela Avenida do Forte, que é uma provável referência ao abrigo das tropas Farrapas. Neste ponto, revela Sérgio da Costa Franco em seu livro, havia, além das casas e do fosso que protegia a guarnição, cinco peças de artilharia, utilizadas para fazer
fogo aos inimigos.

Apesar de algozes, Bento Gonçalves e seus companheiros são reverenciados tanto em Porto Alegre como no resto do Rio Grande do Sul. “Incoerente, a cidade ergueu monumentos e votou homenagens aos sitiadores que a maltrataram e esqueceu os soldados, marinheiros e paisanos voluntários que garantiram sua integridade em quatro anos de lutas”, lamenta o historiador Franco.

Reação imperial contou com apoio popular em Porto Alegre
Porto Alegre vivia desde a madrugada do 20 de setembro de 1835 sob o comando das tropas Farroupilhas. As divergências entre as facções e o domínio da mais radical estabeleceram um clima de tensão e medo na cidade. Relatos colhidos por Sérgio da Costa Franco dão conta de “espancamentos de pacíficos cidadãos, mutilações de orelhas, casamentos forçados e assassinatos” levados a cabo pelo exército Farroupilha contra a população citadina.

Outra medida impopular foi a perseguição imposta aos portugueses que haviam optado por permanecer no Brasil após a Independência; um projeto de lei chegou a ser apresentado para deportar esse contingente populacional do estado. “Só que Porto Alegre vivia do comércio com o Rio de Janeiro e os portugueses eram a força econômica da cidade, que estava sendo hostilizada”, observa Sérgio da Costa Franco.

Diante desse cenário, não surpreende que os porto-alegrenses tenham pegado em armas para combater os revolucionários. Desde a noite em que os prisioneiros imperiais conseguiram escapar  das prisões para retomar a capital, o contingente de voluntários ao lado das tropas imperiais foi decisivo para equilibrar as inúmeras batalhas do cerco a Porto Alegre.

“Na iminência de ataques, a população afluía às trincheiras com as armas de que pudesse dispor”, acrescenta Franco. Em alguns casos, os civis representam mais da metade dos combatentes Legalistas, conforme anotações de cronistas da época.

O cerco: canhonaços e fome
Se a reação em Porto Alegre pode ser interpretada como rechaço aos Farrapos, o cerco à capital que se seguiu só aumentou os problemas da população, que, além da violência, passou a conviver também com problemas causados pelo confinamento, como o racionamento de comida e a dificuldade para manter a limpeza urbana. “A cidade parou durante quatro anos, ficou restrita ao que hoje é o Centro Histórico, atrás das trincheiras”,
revela Sérgio da Costa Franco.

Essas trincheiras haviam sido iniciadas pelos próprios Farrapos, quando ainda comandavam a cidade e foram aprofundadas pelos Legalistas, marcando o contorno urbano onde era possível garantir alguma segurança. A carne escasseou, porque o matadouro municipal ficava nos campos da Várzea (atualmente, Parque da Redenção), além portanto desse perímetro, que terminava na Santa Casa. Os açougues da capital chegaram a pedir anistia de taxas à Câmara Municipal: “A crer no requerimento, não houve consumo de carne durante 15 dias”, escreve Franco em Porto Alegre sitiada.

Nem mesmo a transferência das atividades de abate para a região onde hoje está instalado o Camelódromo foi suficiente para contornar a situação, porque a maioria dos rebanhos chegava a pé até a cidade, tocados por tropeiros que precisavam subornar os chefes Farroupilhas para passar algumas cabeças de gado para dentro das trincheiras. Por outro lado, as investidas dos Farrapos para retomar o controle da cidade submetiam os habitantes a uma rotina de canhonaços e troca de tiros entre as frentes de combate. A guerra não se dava exclusivamente nas trincheiras, mas avançou pelo Guaíba – especialmente nos primeiros meses, enquanto Bento Gonçalves manteve quatro embarcações circulando entre a saída do rio para a Lagoa dos Patos e a cidade, eventualmente abrindo fogo inclusive sobre a área urbana.

Rio Grande do Sul era Legalista

Reprodução: A tamada da ponte da Azenha

Reprodução: A tamada da ponte da Azenha

Rio Grande do Sul era Legalista
Segundo Tau Golin, assim como a história não registrou o amplo apoio da população de Porto Alegre aos Legalistas, é um equívoco vender a ideia de que os Farrapos representavam a totalidade dos gaúchos, especialmente depois que o general Netto decretou a separação do Rio Grande do Sul e a criação da República do Piratini. “Apoiar a secessão significava abrir mão de uma proteção e uma cidadania que haviam sido conquistadas apenas com a Independência do Brasil, em 1822, e que antes não existiam. Não era só Porto Alegre que apoiava o Império, a maioria do Rio Grande do Sul era Legalista”, revela. Sérgio da Costa Franco concorda e lembra que nenhuma das três principais cidades da época – Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas – se rendeu aos farroupilhas. “Essa versão gloriosa da Revolução Farroupilha nasce com o Partido Republicano, que toma a história e a trata como política”, condena.

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