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Enfrentamento seletivo da violência não funciona

Por Flavia Bemfica / Publicado em 13 de junho de 2016

Enfrentamento seletivo da violência não funciona

Igor Sperotto

Igor Sperotto

O Brasil hoje vive um paradoxo no qual os índices de violência são assustadores e, ao mesmo tempo, há uma população carcerária cada vez maior.

Dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), do Ministério da Justiça, divulgados em dezembro, com números referentes a 2014, mostram que o país tem uma proporção de 306 presos para cada 100 mil habitantes, enquanto que a média mundial é de 144/100 mil.

Isoladamente, o Brasil só perde para, pela ordem, Estados Unidos, Cuba, Tailândia, Rússia e Ruanda. Somente em 2014, de acordo com o relatório, um milhão de pessoas passou pelo sistema prisional no país.

E a população carcerária – 622 mil pessoas, das quais 40% são presos provisórios, cresce à velocidade de 7% ao ano: no início da década de 1990, ela não passava de 90 mil.

O juiz da Vara de Execuções Criminais (VEC) de Porto Alegre, Sidinei Brzuska, responsável pela fiscalização dos presídios na região Metropolitana, tornou-se conhecido por sua atuação recorrente a respeito das situações desumanas dos presídios, das superlotações, da falência do sistema.

Já determinou interdições no Presídio Central, na capital, e em outros presídios, quer pela superlotação, quer pela inexistência de condições mínimas para abrigar pessoas. Na entrevista que segue, ele traça considerações acerca dos dados do Infopen, da forma como os brasileiros encaram a violência e das relações entre o modelo de segurança adotado e a política.

Extra Classe ‒ Nos últimos 25 anos, o aumento expressivo no número de prisões no Brasil não se traduziu em diminuição da violência ou na queda nos índices de crimes graves. Não deveria estar acontecendo o contrário?
Sidinei Brzuska ‒ Prendemos muito e prendemos mal. Aumentamos a nossa dívida pública mantendo pessoas encarceradas por crimes não violentos e, ao mesmo tempo, deixamos autores de crimes violentos soltos, aumentando a sensação de impunidade e insegurança. Isso não é um fator único. Primeiro, temos uma má compreensão do enfrentamento do tráfico de drogas. Foi colocado na cabeça das pessoas reiteradamente que o tráfico é o vilão principal, o crime principal. E que, combatendo o tráfico, combateremos todos os crimes. Essa política vem sendo adotada há 20 anos, ela não deu certo e o país ainda não se deu conta disso. A forma como o Estado pune o tráfico hoje, estimula a violência, concorre para o aumento da violência.

EC ‒  O tráfico não é um crime que desencadeia uma série de outros? Por que o senhor considera que a forma atual de combate a ele está equivocada?
Brzuska ‒  Imagine um grande supermercado. O Estado vai lá e prende o caixa do supermercado. O dono do mercado o que faz? Repõe o caixa. Aí o Estado vai lá e prende outro caixa. E o dono do mercado repõe esse também. Então o Estado prende o segurança do mercado. O dono repõe o segurança. Lá pelas tantas o Estado se estressa e prende o transportador que estava abastecendo o supermercado. E este contrata outro transportador. Ou seja: enchemos a cadeia de subalternos. Então o Estado se estressa ainda mais, vai lá e prende o dono do mercado. Mas o mercado continua funcionando igual. Quando o Estado prende o dono, podem acontecer duas coisas: ou esse dono pertence a uma facção que segue tocando o mercado e não altera nada; ou ele é um cara mais isolado e vai ocorrer uma desestabilização no mercado, porque o ponto continua lá, vendendo e faturando. Isso vai gerar uma guerra, para definir quem assumirá o lugar. E aí vão morrer 10, 30, 100 pessoas, até que alguém restabeleça o poder sobre o mercado. E aí começa tudo de novo. Combatemos o tráfico assim. Cada vez que o Estado prende um grande traficante, ele produz, por efeito cascata, diversos homicídios. O Estado precisa mudar a sua perspectiva de enfrentamento do tráfico. Ou cobra um imposto desse crime e regula as leis do mercado, ou acaba com o próprio mercado. Prender o funcionário e deixar a boca funcionando é um estimulador ao aumento da violência. E enche a cadeia. Metade da nossa população carcerária é por tráfico. Há 20 anos este índice era de 5%.

EC ‒ A sociedade parece ter um entendimento majoritário bem diferente.
Brzuska ‒  Este é o segundo aspecto. O de que somos uns hipócritas. Só queremos combater a violência quando ela bate à nossa porta. E somos seletivos neste combate. Avaliamos que uma pessoa, por ter antecedentes criminais ou envolvimento com o crime,  possa ser morta, possa ser executada. E que isso não enseja um cuidado maior, uma investigação maior, um esforço da nossa parte. Não, nós entendemos que isso é normal. “Guerra do tráfico”. “Já era”. “Uma menos para incomodar”. “Bandido bom é bandido morto”.

Enfrentamento seletivo da violência não funciona

Ministério Público do RS

Ministério Público do RS

EC ‒ É um entendimento que parece cada vez mais consolidado na sociedade. O senhor acredita que esse ‘endurecimento’ não é eficiente?
Brzuska ‒ Isso está fincado na mente da população brasileira. Por exemplo: nos últimos cinco anos o número de homicídios na região Metropolitana de Porto Alegre aumentou algo entre 50% e 60%. Neste mesmo período, a população se manteve estável. E como não apuramos, como não nos importamos, porque somos seletivos e nossa cultura hipócrita é essa, nem um terço destes homicídios foi submetido a julgamento no período. E isso gera uma sensação de impunidade. E por isso nossas prisões, da forma como fazemos, não resolvem o problema da violência. Elas só aumentam a despesa pública. Uma vaga no sistema prisional hoje, só a sua criação, custa R$ 50 mil. Para trazer um preso para uma audiência, o custo é de R$ 570,00. A nossa cultura posta é de que bandido bom é bandido morto.

EC ‒  Há alternativas?
Brzuska ‒ Para fazer o enfrentamento da violência, primeiro é necessário que deixemos de ser seletivos, combatendo indistintamente qualquer tipo de violência. Isso dá um freio. Hoje as pessoas estão liberadas para matar, porque não acontece nada. E em essa morte não dando nada, por tabela, diversas pessoas que jamais colocaram os pés em uma cadeia, ou em uma delegacia, acabam tomando um tiro: por bala perdida, por serem confundidos. Este não enfrentamento gera nas pessoas sensações de impunidade, de intranquilidade e de insegurança absolutas. Ninguém transita hoje em Porto Alegre de forma tranquila. As pessoas têm medo: de serem assaltadas, de tomarem um tiro, de serem estupradas. Para o delinquente, esta sensação de insegurança e de intranquilidade se traduzem em sensação de segurança. Ele fica cada vez mais seguro, acredita que não vai acontecer nada. E então ele começa a praticar crimes em locais onde jamais praticaria. Um crime em uma igreja, um homicídio dentro de um hospital, uma execução dentro de um ônibus. E isso volta a alimentar mais nossa sensação de insegurança. Estamos nesta roda: perdemos a credibilidade, não confiamos nas nossas polícias e aplaudimos, condecoramos nossa polícia quando ela é violenta. As pessoas acreditam que estão em uma guerra. No entanto, não obedecem as normas de guerra. Se estivéssemos em uma guerra e respeitássemos a Convenção de Genebra, estaríamos bem. Mas sequer isso é obedecido. A Convenção de Genebra estabelece, por exemplo, que quando uma pessoa se rende, ela deve ser garantida em seu direito de vida. Não se pode retirar a vida dela. Em uma guerra, isto é um princípio. Mas na que estamos travando aqui, não. A pessoa se rende, seja bandido ou não bandido, e nós terminamos de matar.

EC ‒É uma modificação que necessariamente passaria por uma mudança social, de mentalidade, de entendimento, que parece distante. Neste cenário, até que ponto a aplicação de políticas públicas diferentes funcionaria melhor?
Brzuska ‒ A mudança cultural é um processo lento e demorado. Mas o Estado está também abdicando, menosprezando o pensamento das minorias. O Estado precisa se dar conta que uma das razões de sua existência é justamente a minoria, porque é ela que não consegue se defender sozinha. Ela precisa de alguém para ajudar. Estamos cada vez administrando mais para as maiorias. E o que a maioria quer? A maioria quer colocar marginal na cadeia; quer pena de morte; quer a não observância de direitos básicos e fundamentais. O Estado está capilarizando o desejo de vingança das pessoas na rua e adotando esse desejo de vingança, de ódio, como uma política de Estado. E isso é um problema. O Estado não pode fazer isso.

EC ‒ O senhor se refere ao Estado brasileiro como um todo?
Brzuska ‒  Sim, ao Estado brasileiro como um todo, e ao Rio Grande do Sul incluído. É aceitável que uma mãe, um pai, um irmão, um tio, um avô se indignem e tenham ódio de alguém que privou da vida um ente querido. Mas o Estado e seus agentes não podem ter esse tipo de sentimento. Há uns três anos, recebi aqui um xerife de um estado dos Estados Unidos que aplica a pena de morte. Perguntei a ele o que ocorre naquele estado norte-americano quando um policial dá um tiro. E ele respondeu que lá, se um policial der um tiro, não importa para onde, se para o céu, o chão, por engano ou em alguém, a primeira coisa que esse policial precisa fazer é entregar a arma e o distintivo. E ele fica sete dias de “molho”. Nesse período, passará por uma bateria de exames e será avaliado se está bem, por que atirou, se isso o impactou. Porque a função dele é proteger as pessoas na rua e, no momento em que dá um tiro, coloca as pessoas em perigo. E, portanto, é necessário avaliar se pode ou não usar de novo uma arma. Aqui, quando falamos nos Estados Unidos, colocamos tudo em um balaio de gatos quando, na verdade, cada estado lá aplica uma política penal, criminal, diferente. A maioria dos norte-americanos já não aceita a pena de morte. E a Suprema Corte norte-americana não aceita mais pena de morte para adolescentes. A tendência é de diminuição da pena de morte. Em vários países europeus, apesar de ela estar prevista, não é mais aplicada há muitos anos. Porque se entende que isso é um retrocesso.

EC ‒ O senhor acredita que, no Brasil, a instituição da pena de morte de fato seja a vontade da maioria?
Brzuska ‒ Sim. Isso faz parte do nosso estágio evolucional, digamos assim. O Brasil tem 500 anos, arredondando. Destes 500, também arredondando, conviveu 400 com a escravidão. Nos últimos 70 anos, apenas quatro presidentes da República eleitos por voto direto e popular concluíram seus mandatos. Então, não pode se exigir que o povo brasileiro já tenha assim, solidamente, uma cultura de preservação da vida. É um processo lento. Nossos representantes políticos poderiam, por assim dizer, nos guiar por um caminho mais civilizado. Mas não é o que temos verificado na prática.

EC ‒ No curto prazo,que medidas poderiam ser implantadas?
Brzuska ‒ No curto prazo, pouca coisa. Mas, no médio prazo, bastante. Medidas que independem de qualquer política nacional ou de mudança de lei federal. É possível adotar políticas públicas locais perfeitamente executáveis. Mas não mirando a próxima eleição, e sim o futuro. Por exemplo: o Rio Grande do Sul hoje tem uma das menores taxas de fecundidade do Brasil. Mas não entre as classes baixas. Por quê? Porque falta conhecimento, educação etc., para que aquela menina não tenha filhos naquele momento. Hoje qualquer menina de classe média, ou nem tão média, terá filhos após os 25 anos. Às vezes, depois dos 30. Primeiro ela vai se formar, conseguir um emprego, e depois será mãe. É um padrão que vem se consolidando, mas que na classe pobre não se repete. Nela as meninas continuam tendo filhos com 15 anos, com 16, 17, 18, 19. Fazer com que essa menina tenha filhos após os 25 anos é uma política pública. E não é difícil. Basta ela poder colocar um implante quando começar a menstruar, e mantê-lo até os 25 anos, com as devidas substituições.

EC ‒ Este tipo de iniciativa não gera polêmica em função de que a menina e seus pais precisam concordar com a política adotada? Não há questões que envolvem direitos?
Brzuska ‒ Não há problemas. Estamos assegurando para ela os mesmos direitos das meninas de classe alta. Elas não estão sendo castradas. Só recebendo um contraceptivo de efeito demorado que será substituído algumas vezes até que ela complete 25 anos.É uma política pública que não precisa de lei. Outra política pública, um pouco mais cara, diz respeito à escola. A escola precisa ser repensada. A escola se perdeu. Ela tentou assumir um papel que seria sucessor da família. Até consegue fazer isso na classe média, onde a família continua existindo. Mas onde a família cessou, a escola não supre. De alguma forma ela precisa se tornar atrativa para o jovem e o adolescente. Hoje o jovem foge da escola. O Mapa da Violência de Porto Alegre elaborado pela Câmara de Vereadores, com dados de 2014 e 2015, mostra que há 32 mil evadidos do ensino fundamental nos últimos dois anos. A delinquência se dá quando o sujeito está fora da escola e desempregado. Então, você precisa mantê-lo na escola e no emprego. Até os 18 anos na escola, e dos 18 aos 25 no emprego.

EC ‒ Como?
Brzuska ‒ Pode, por exemplo, fazer uma política tributária de emprego até os 25 anos. Concede um desconto no IPTU para o sujeito que tem empregado em sua casa alguém nesta idade. É mais barato do que tratar em cadeia depois. Concede um desconto tributário para o estabelecimento que mantém um jovem empregado. Uma pizzaria, uma mercearia, uma padaria. Para qualquer um desses pequenos comércios. Concede um incentivo tributário, diminui a carga. Isso são políticas que independem de lei.

EC ‒ Na sua avaliação, por que isso não é feito?
Brzuska ‒ Falta uma visão mais estadista. Temos muitas visões governamentais, muitas disputas de poder e de perpetuação de poder. Fazemos políticas para que na próxima eleição consigamos votos. As políticas que citei não rendem frutos para a próxima eleição, mas sim para daqui a 10, 15 anos. Demora.

EC ‒ O senhor acredita que não existe por parte do Estado a vontade de combater a violência indistintamente? Por quê?
Brzuska ‒  Não existe. Porque o Estado trabalha muito mais na ilegalidade. É muito caro para o Estado trabalhar na legalidade. Por que não se dá transparência ao trabalho das polícias? Porque é mais fácil para a polícia trabalhar na clandestinidade. Qual é a dificuldade de equipar as viaturas e os capacetes com câmeras que filmem tudo e a prova já vai estar pronta para o juiz julgar? É muito caro isso? A tecnologia está baratíssima. Qualquer telefone filma. E o Estado, e agora falo aqui localmente, municipalmente, abriu mão de todas as suas áreas de controle seguras. O Estado abdicou disso. Há alguns anos se dizia: “Olha, que absurdo, roubaram o cara de dia.” E o que ocorre hoje? O Estado não preservou na cidade nenhuma região que seja livre de crime. Portanto, nossa sensação de insegurança é total. Tivemos uma breve sensação de segurança, parecia que estávamos em um país desenvolvido, durante os jogos da Copa do Mundo. Em governos passados, com pirotecnias, subia-se num morro e colocava-se uma bandeira. Para fazer de conta que o Estado estava ali. Hoje a pirotecnia, que custa caríssimo, é dar um rasante de helicóptero. Uma demonstração de poder. Não sei quanto custa uma bandinha de helicóptero, mas não é pouca coisa. E é pirotecnia. Na cidade, por exemplo, poderíamos começar a estabelecer algumas regiões seguras, zonas livres de crimes, onde seria criada uma cultura de não crime e não violência. A não violência é fundamental, especialmente por parte dos agentes do Estado. E, destes pontos estabelecidos, poderíamos depois reconquistar a cidade. Vou dar um exemplo: Cidade Baixa Livre de crime. Ninguém vai roubar, vai ser assaltado, ou vai ser morto na Cidade Baixa sem que os responsáveis sejam presos imediatamente. Não vamos deixar. Vamos cercar.

EC ‒ Mas há condições de se fazer isso?
Brzuska ‒ Claro que há. E aí você poderá andar à noite na Cidade Baixa, na rua. Vai se sentir segura. E o ladrão vai se sentir inseguro. Depois faz na Orla, no Centro, no Moinhos. Tira a bandeira do morro, tira o helicóptero, que não adianta nada. Aquilo é propaganda enganosa. Sobrevoar favela e vila periférica de helicóptero é pirotecnia, é jogar dinheiro fora. Se quiser sobrevoar, coloca um drone, que não faz barulho e se vê à distância.

EC ‒ Tem efetivo para isso, tem condições?
Brzuska ‒ Não sei. Só estou dando minha opinião, modesta, de observador.

EC ‒ O senhor falou que não se combate adequadamente o tráfico e agora citou o rasante de helicóptero e a bandeira. Como fazer o combate adequado?
Brzuska ‒ Temos que combater a violência. Depois vamos para o resto. Se há violência, tem que ser apurado, sem dó e nem piedade. O que não é aceitável é termos um sujeito vendendo um baseado de maconha para outro e irmos atrás desse cara enquanto há um terceiro na rua assaltando que deixamos assaltar. Há alguém morrendo e não estamos apurando quem matou porque colocamos nossa força para pegar esse chinelo aí, que vendeu o baseado, o que não altera nada, mas vai gerar um número para um governo depois dizer: “prendemos tantos, fazemos a nossa parte, estamos combatendo a violência, estamos combatendo o crime”. É a maior enganação. Funciona para as estatísticas e para o povão achar que está dando certo. Eu digo que se o tráfico é o problema, por que não há violência no comércio de drogas sintéticas? Porque o problema não está no tráfico, está na disputa violenta pelos pontos de venda. E ninguém disputa ponto de venda para vender LSD etc. etc. Porque todo mundo compra e usa na boa. E, se fica mal, vai tratar no hospital. Alguns morrem, eventualmente. Ninguém vai vender crack no bar, na boate. Precisa ter um ponto. E este ponto precisa ser mantido com a força, com a arma. Então, primeiro, precisamos combater a violência, indistintamente. Depois vamos pensar no tráfico.

EC ‒ Quando o senhor comparou o tráfico a um grande supermercado, disse que uma alternativa seria cobrar imposto e regular as leis de mercado. Como isso ocorreria, na prática?
Brzuska ‒ Isso daria uma entrevista inteira. O Uruguai está em um processo longo, demorado, mas eu torço muito pelos uruguaios. Porque eles estão fazendo uma mudança enorme. Mas se quisesse fazer uma mudança pequena, superficial, já impactaria. O seguinte: vamos cobrar imposto indiretamente do tráfico. Porque hoje o tráfico não paga imposto nenhum. Poderíamos diminuir, mas diminuir realmente, o Imposto de Renda, e criar uma CPMF com verba vinculada para tratar drogados. Faria o tráfico pagar indiretamente o tratamento do viciado. Porque uma CPMF o traficante vai pagar também, não tem como escapar, o dinheirinho dele vai circular pelo banco. O tráfico gira bilhões e não paga um centavo de imposto. Uma política de acabar com o mercado mesmo, aí é necessário um projeto bom, para erradicar o tráfico no país. O enfrentamento das drogas depende de lei, porque temos uma lei federal que regula e precisamos de outra, para acabar com a anarquia que existe hoje. Para erradicar de regiões é mais simples, embora custoso. Mas jamais você pode pedir para a polícia combater o tráfico, isso é um absurdo. Ela não consegue terminar com o mercado. Se você quiser terminar com o tráfico em uma determinada região de Porto Alegre, por exemplo, a Restinga. Vai precisar chamar Secretaria da Educação, Saneamento, Turismo, Lazer, Esporte, Regularização Fundiária, de forma a ter um projeto para acabar com o tráfico ali. Isso vai implicar a abertura de creche, de posto de saúde, farmácia, cinema. Vai ter que criar naquela região tudo o que tem na outra onde não há tráfico.

EC ‒ O senhor vislumbra saídas?
Brzuska ‒ Provavelmente, se você fizer esta mesma entrevista com outras pessoas, nove em cada dez dirão que é preciso aumentar a lei, tornar a lei mais dura, colocar as pessoas na cadeia. E vais ouvir tanto essas baboseiras que vai até acreditar nelas. Isso já estamos fazendo e não deu certo.

EC ‒ Se não deu certo, por que há a intensificação deste discurso e não sua retração?
Brzuska ‒ Esta frase não é minha e não sei quem disse, mas o cara estava iluminado quando falou que “a internet deu voz aos imbecis.”E a imprensa, por sua vez, também não sabe lidar com sua liberdade. Veículos poderosos de comunicação, com algum controle, nos seus jornais digitais abrem espaço para que as pessoas, por fakes, estimulem a violência, e deixam aquilo exposto, fazem uma plataforma, que é lida por milhares de pessoas, estimulando de novo a violência. As redes de televisão colocam durante o dia em suas grades programas que sobrevivem do sangue alheio. Programas que deveriam estar em um canal fechado ou, no máximo, em canal aberto da 24h às 5h da manhã. Jamais deveriam estar no meio da tarde, no final da tarde. Porque isso, por vias oblíquas, estimula a violência. Sob o pretexto de que está informando. Não há informação.

EC ‒ O senhor vê alguma tendência de mudança na política atual de combate à violência? No país ou no Estado?
Brzuska ‒  Não vejo nada. Nem nas pessoas.

EC ‒ O senhor acredita que possamos caminhar para um modelo de redução de direitos?
Brzuska ‒ Em relação à pena de morte, não. Já a redução da maioridade penal é um risco. É uma coisa que estamos a perigo. E o endurecimento de penas é uma coisa sedutora, porque de fora parece barato e eficiente. As pessoas acreditam em soluções milagrosas. Não estamos ainda culturalmente sólidos na nossa democracia. É uma democracia frágil. Temos um modelo eleitoral no qual o suplente de senador não tem voto. Um sistema de eleição proporcional construído na época em que os partidos políticos tinham ideologias e, portanto, era justo que, pelo quociente eleitoral, o mais votado deles entrasse. Hoje cada um pensa no seu. Uma igreja lança 200 candidatos, cada um faz dez votos. Aí, o cara que faz 11 votos pega os votos dos demais e entra. O nosso quociente eleitoral não tem mais sentido. As nossas representatividades nos parlamentos estão furadas. As pessoas que estão na Câmara dos Vereadores, na Assembleia Legislativa e no Congresso Nacional pararam de representar as diversas correntes que existiam e existem no país. Isso seria a função delas, representar segmentos, mas não representam mais. Representam interesses pessoais, particulares, ou partidários eleitoreiros. Por isso, não acredito que isso vá mudar. Porque estamos nas mãos dessa gente.

EC ‒ Existe uma alternativa mais fiel desta representação do que a do sistema político atual?
Brzuska ‒  Na minha opinião, do ponto de vista político, deveríamos fazer uma eleição exclusiva constituinte, com mandato de seis meses, para uma reforma política. A eleição para a constituinte deveria ser completamente pública, sem nenhum centavo de dinheiro privado na campanha. Três ou quatro, não mais do que isso, eleitos por estado, e com a permissão, inclusive, de pessoas sem partidos políticos, para que eu, você ou qualquer pessoa pudesse se eleger. E entregar poder constituinte para estas pessoas, por seis meses, para resolver o nosso problema político. Para definir o tamanho das Câmaras de Vereadores, do Congresso, se teremos 500 ou 150 deputados, para ver se tem sentido fechar o Senado ou não. Para acertar mandatos. Para acabar ou não com a reeleição. Para obter um mínimo de votos para ser eleito. Entrega o poder para estas pessoas. Deixa um médico, advogado, engenheiro, pedreiro que seja. E, passados os seis meses, estas pessoas voltam para suas funções e era isso. Exclusivo. Daí nós mudamos. Para que 500 deputados? Será que 250 não estaria bom? Senado para quê? Está fazendo o quê? Para ser um segundo turno da Câmara?

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