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Previdência é refém do fundamentalismo fiscal

Publicado em 12 de julho de 2016
Previdência é refém do fundamentalismo fiscal

Foto: Leonardo Savaris

Denis Maracci Gimenez, especialista em desenvolvimento econômico e em economia do trabalho

Foto: Leonardo Savaris

O projeto de reforma do sistema previdenciário articulado pelo governo interino do peemedebista Michel Temer vendeu ao país a ideia de que a Previdência está quebrada, o que é uma premissa falsa.

Na última década, o Regime Geral da Previdência incluiu mais de 30 milhões de pessoas e, atualmente, acolhe 88% dos idosos do país. Destes, 22,5 milhões de aposentados recebem o piso previdenciário de um salário mínimo. Em março de 2015, o INSS pagou 33 milhões de benefícios (salário maternidade, auxílio doença, pensões e aposentadorias) para trabalhadores e aposentados, a partir da contribuição de 71 milhões de brasileiros. O orçamento para 2016 é de R$ 500 bilhões. Os indicadores foram apresentados pelo ex-ministro do Trabalho e Previdência Miguel Rosseto, durante audiência pública promovida pelo fórum Frente Ampla Brasil, no dia 20 de junho, em Porto Alegre. “A Previdência é sustentável, não há desequilíbrio”, defendeu. Para o especialista em desenvolvimento econômico e em economia do trabalho Denis Maracci Gimenez, o argumento de que a Previdência é deficitária é um artifício, já que desconsidera o sistema previdenciário como um todo. Ele explica que “o tema da reforma da Previdência é tão recorrente porque o que está em jogo é a disputa pelo orçamento público, que coloca o debate sobre o orçamento da seguridade social no centro do debate sobre a dívida pública”. O que está implícito na proposta de reforma da Previdência é a ideia de transferir recursos da seguridade social para a área fiscal, denuncia. Professor do Instituto de Economia da Unicamp e diretor do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit/Unicamp), Gimenez afirma nesta entrevista que os sistemas de Previdência, assim como os de Educação e Saúde concebidos na Constituição de 1988 “são alvos do fundamentalismo fiscal que se radicalizou no país a partir de 2015”.

Extra Classe – Por que a reforma da Previdência é uma ruptura?
Denis Maracci Gimenez – Creio que perde o país e seus cidadãos. O que parece se consolidar de forma mais ampla é a tese de rompimento com os compromissos firmados no processo de redemocratização do país e que estão inscritos na Carta Constitucional de 1988, bem definida pelo saudoso Dr. Ulysses Guimarães, como a “Constituição Cidadã”. Compromissos com o desenvolvimento nacional, com o emprego dos brasileiros, com a inclusão social, com a proteção das crianças e dos idosos, etc. Ruptura em várias dimensões e não somente em termos formais: assistimos a uma ruptura política e do jogo democrático de grandes proporções, com o afastamento da presidente eleita, uma vigorosa ruptura econômica e social, com a tentativa de impor à nação uma agenda de reformas várias vezes derrotada pela vontade das maiorias, manifestada nas urnas. Podemos concordar ou não com a decisão popular, mas num regime democrático, ela é soberana. Nem a presidente eleita, tampouco sua oposição podem usurpá-la.

EC – O que ela representa para as classes trabalhadoras?
Gimenez – De forma inequívoca, significa a redução de direitos e o rebaixamento dos padrões de proteção social no país.

EC – A Previdência é superavitária?
Gimenez – Em primeiro lugar, é necessário esclarecer a opinião pública que, tecnicamente, a Previdência Social brasileira está integrada a um sistema de seguridade social, como previsto na Constituição Federal de 1988, com orçamento próprio, dentro do orçamento geral da União. O que isso significa? Como em todo orçamento, o orçamento da seguridade social prevê receitas e despesas. Neste caso, foi montado um orçamento com receitas diversificadas que incorporam, por exemplo, as contribuições previdenciárias, contribuições sociais, entre outros. Por outro lado, despesas também diversificadas, como, por exemplo, os benefícios previdenciários (rural e urbano), benefícios assistenciais (Lei Orgânica da Assistência Social, Renda Mensal Vitalícia, etc.), entre outros. Assim, corretamente, o Congresso Nacional Constituinte organizou um orçamento da seguridade social que contasse com receitas diversas para oferecer proteção social e previdenciária para cidadãos em condições diversas (idosos, trabalhadores rurais, portadores de necessidades especiais, etc.). Esclarecido isso, vale ressaltar que o orçamento da seguridade social foi permanente superavitário ao longo de todo período onde a Previdência, integrada a ele, foi considerada a grande inimiga do equilíbrio fiscal no país. Em 2014, por exemplo, o saldo positivo do orçamento da seguridade social foi de R$ 53,9 bilhões. Somente assim, faz sentido analisar as contas da Previdência no Brasil, ou seja, não isolando arrecadação previdenciária e benefícios previdenciários, pois o sistema não foi organizado dessa maneira. Dessa forma, é necessário esclarecer a opinião pública que não há déficit da Previdência.

EC – Por que a reforma da Previdência virou prioridade justamente em um momento de ruptura institucional?
Gimenez – Trata-se, na realidade, da oportunidade de apropriação do orçamento público que não fora aberta pelo povo brasileiro nas urnas. Frente aos avanços concretos do país entre 2003 e 2014, o povo brasileiro resistiu bravamente à ideologização do debate nacional. Muito mais que seus representantes na vida política ou os intelectuais. A presidente Dilma Rousseff foi eleita com uma plataforma em prol do desenvolvimento nacional e pelo emprego, uma plataforma de ampliação dos direitos sociais, pela “pátria educadora”. A tese da necessidade de um ortodoxo ajuste, incluindo a reforma da Previdência, ganhou corações e mentes no governo afastado. Materializou-se na política conduzida pelo então ministro Joaquim Levy, passou por seu sucessor e toma forma pitoresca neste momento. Não podemos imaginar que, dada a grandeza dos problemas nacionais, fazer uma reforma previdenciária tenha o poder de retirar o país de uma crise econômica deste tamanho. A instabilidade política é enorme. A presidente foi afastada em meio a uma enorme crise econômica, com queda brutal do nível de atividade e rápida deterioração do mercado de trabalho, do emprego e da renda. Creio que temos uma simbiose entre crise econômica e crise política com tendências para avançarmos para uma crise social mais profunda. Avalio que o processo de impedimento da presidente e a posse do vice-presidente Michel Temer não reverta esse movimento nem estabilize o país. Assim, as tendências de degradação da economia e do mercado de trabalho terão efeitos negativos acentuados sobre as receitas públicas, o orçamento da seguridade social e sobre as contas da Previdência.

EC – O diagnóstico que embasa a tese da reforma é falso?
Gimenez – O que é mais preocupante, avalio, é a radicalização das teses sobre o ajuste fiscal, colocando a reforma da Previdência social como a “mãe de todas as reformas”. Como disse, isso já vinha avançando no segundo mandato da presidente Dilma pelas mãos de sua equipe econômica, e foi potencializado nas primeiras ações do novo governo. A decisão do presidente interino de trazer o Ministério da Previdência para o Ministério da Fazenda e, também, as posições do ministro Henrique Meirelles sobre a centralidade de uma profunda reforma da Previdência, levam ao paroxismo tal radicalização. Parte-se de um diagnóstico equivocado sobre o chamado “déficit da Previdência”, que inclui uma precária avaliação da estrutura de financiamento do sistema e das tendências demográficas caras a ele, para, em síntese, justificar a redução das despesas da Previdência. Em outras palavras, colocar em prática a tese que os direitos sociais inscritos
na Carta de 1988 não cabem no orçamento.

EC – O senhor afirma que está em jogo a disputa pelo orçamento público. Então, o debate sobre o orçamento da seguridade social é, na verdade, sobre a dívida pública?
Gimenez – Não podemos confundir os problemas. Devemos compreender que há um padrão da política econômica no país a partir de 2015 que penaliza as finanças públicas, promovendo um imenso “desajuste fiscal” e uma evolução indesejada da dívida pública. Concretamente, trata-se de efeitos simultâneos da estagnação econômica sobre a arrecadação (pelo lado das receitas) e da carga de juros (pelo lado dos gastos), derivada de uma política monetária completamente fora do padrão internacional. Todavia, é corrente no debate nacional, com expressiva difusão nos meios de comunicação, afirmar de maneira peremptória que grande parte dos males do país decorre do desequilíbrio das contas públicas e, particularmente, do chamado “déficit da Previdência”. O que fazer para voltar a crescer?, questionam. Ajuste fiscal! Para combater a inflação? Ajuste fiscal! Para ganhar competitividade? Ajuste fiscal! Seria como um unguento para todos os males da nação. Isso empobrece o debate público e o torna apenas ideológico.

EC – Por que o governo provisório quer transferir recursos da seguridade social para a área fiscal?
Gimenez – O que ocorreu no Brasil nas últimas décadas, acima deste ou daquele governo, foi a consolidação de um padrão de gestão fiscal que, permanentemente, retirou recursos do orçamento da seguridade social, como também de estados e municípios. Isso aconteceu, num primeiro momento, pela constituição do “Fundo Social de Emergência”, depois pelo chamado “Fundo de Estabilização Fiscal” e, finalmente, pelas Desvinculações de Receitas da União (DRU). Na prática, significou a retirada de bilhões de reais por ano da área social, de estados e municípios para um esforço fiscal que, desde o final dos anos 1990, materializou-se na obtenção sistemática de superávits primários nas contas do governo, utilizados para fazer frente aos custos de uma política monetária que, salvo curtos períodos, caracterizou-se pela prática de taxas de juros completamente fora do padrão internacional. Portanto, ano a ano, a articulação entre a política monetária e a política fiscal transferiu enorme volume de recursos para os rentistas, sacrificando a maioria da população que depende de saúde pública, da educação pública, do transporte público, da infraestrutura urbana etc. O que quero dizer, em síntese, é que, na verdade, a estrutura de financiamento da Previdência, responsabilizada por parte importante dos males do Brasil, não é responsável pela crise, muito ao contrário; integrado ao orçamento da seguridade social, sistematicamente, sofreu com a drenagem de suas receitas.

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