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O professor na corda bamba

Por César Fraga / Publicado em 9 de março de 2017

O professor na corda bamba

Foto: acervo pessoal

Foto: acervo pessoal

As condições e a própria organização do trabalho, a gestão do trabalho, a lida com os pais, o problema de remuneração, as relações de poder na instituição e o desprestígio da profissão, além da própria relação com o saber são fatores fundamentais para que os docentes se sintam hoje numa corda bamba e reajam a isso com profundo mal-estar. Quem faz essa análise é Marcelo Ricardo Pereira, psicólogo, psicanalista, doutor em Psicologia e Educação e pós-doutor em Psicologia, Psicanálise e Psicopatologia Clínica. É professor de Psicologia, Psicanálise e Educação do Programa de Pós-Graduação e da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Sendo líder brasileiro neste campo, também integrou e coordenou o GT de Psicanálise e Educação (Anpepp) e o Laboratório de Pesquisas e Estudos Psicanalíticos e Educacionais (Lepsi). Realizou estágio docente na UNR argentina e na Udelar (Uruguai) e é professor visitante de cursos do IP-Ufrgs, da Flasco (Argentina) e da UNMdP (Argentina). É membro titular da Red Interuniversitaria Internacional de Estudios e Investigaciones Interdisciplinarias en Infancia e Institución (Infeies) e foi corresponsável por implantar o Laboratório de Psicologia, Psicanálise e Educação de Angola (UON-AULP). Autor, entre outros livros, de Acabou a Autoridade? e A impostura do Mestre (Editora Fino Traço) e O Avesso do Modelo (editora Vozes).

Extra Classe – Gostaria que o senhor estabelecesse a diferença entre o mal-estar docente na primeira metade do século 20, quando o termo surgiu na Europa, e no momento atual.
Marcelo Ricardo Pereira – O termo foi usado pela primeira vez no meio do século passado na França para diagnosticar um problema de professores que se sentiam desprestigiados com baixos salários, além da organização e as condições do trabalho docente serem muito precárias. Isso ocorria no período do pós-guerra.

EC – Também se origina no mal-estar da civilização, de Freud, e num momento em que surgia na Europa o conceito de estado de bem-estar social que hoje está em xeque?
Pereira – Exatamente. Na verdade, Freud, em 1930, escreveu um livro que consagra o termo mal-estar e ele fica diretamente conectado à psicanálise. Mas isso foi usado à revelia, porque o termo já era utilizado muito antes. E, no mundo da escola, veio a ser usado para essa definição do desprestígio do trabalho docente, que foi muito sedimentado por um autor espanhol chamado José Esteves, que fez um longo trabalho sobre mal-estar docente muito referente na área, porque ele faz um trabalho quantiqualitativo. Mas o termo mal-estar vem de Freud quando ele renomeia a angústia, a aflição, essa sensação que a gente tem e que não tem nome e fica em suspensão em relação a um perigo.

EC – Isso também não muda o enfoque, lançando o olhar para o social e não apenas para o indivíduo, colocando esse indivíduo no seu contexto?
Pereira – É verdade. Existem duas teses freudianas fundamentais sobre o mal-estar. Uma, o sujeito é incompatível com a civilização. Ele não consegue viver o seu desejo nessa civilização então ele tem um mal-estar. Mas isso, qualquer teoria falaria. Porém, Freud ainda diz que na verdade esse indivíduo ainda procede uma coisa. Ele se identifica com os valores dessa sociedade ou instituição e cobra de si mesmo funcionar desse jeito, que é a tese freudiana do supereu. O sujeito cobra de si mesmo funcionar assim. Ou seja, se vigia. Ele se fiscaliza como se tivesse o social dentro de si. Ele internalizou as leis sociais.

EC – Buscando se enquadrar?
Pereira – Exato. E como ele não consegue, vive sob sentimento de culpa.

EC – Isso transferido para o mundo da escola, chegamos ao mal-estar do professor?
Pereira – Exatamente. Quando vou na escola e vejo os professores se dizerem oprimidos, ansiosos, deprimidos, com síndrome do pânico, dentre tantas formas do mal-estar docente, que relatam uso de álcool, drogas etc. Ao se dizerem assim estão dizendo de algo inominável, de um mal-estar, de não se sentirem à altura da profissão ou de poder funcionar dentro da profissão.

EC – O uso de substâncias seria uma forma de compensar esse mal-estar?Pereira – É uma anestesia. Uma anestesia à existência do eu.

EC – Mas diante de que realidade?
Pereira – Diante da realidade que a escola contemporânea coloca para ele, diferente do que já houve anteriormente.

EC – E qual seria essa diferença da escola do passado em comparação ao que se vê hoje em relação às motivações do mal-estar do professor nesses dois tempos, ou seja, do pós-guerra e no mundo contemporâneo? Quais cenários acabam angustiando os professores de diferentes épocas?
Pereira – O que acontecia na sociedade freudiana e pós-freudiana é que o mal-estar era
vivido por causa das repressões. Por causa da repressão social de não poder viver todos os seus desejos. E o que acontece após os anos da contracultura dos anos 1960 e 1970 é a explosão dos excessos. A sociedade não é mais a sociedade reprimida de Freud ou da época da guerra. Nós, hoje, vivemos em uma sociedade em que o sujeito se vê impelido a se exceder, a abusar de tudo que a sociedade impõe: a virtualidade, os usos de medicamentos, das ofertas que a sociedade coloca, de consumo etc. O jovem ou o aluno, de maneira geral – no caso trabalhei com professores de adolescentes – traz para dentro do universo da escola esse excesso que a gente chama de excesso pulsional. Excesso de querer satisfazer-se aqui e agora. O professor, até porque ele faz educação e educação é sempre impor limites, vem confrontá-lo nessa história. Quer dizer, diferente do que anteriormente existia. O professor naquela época funcionava alinhado à repressão da sociedade, hoje ele trabalha contra esse excesso que é de alguma forma outorgado pela sociedade. Esse professor se sente confrontado, aviltado e não se sente com armas suficientes para lidar com isso e resta-lhe esse recolhimento sob a forma de mal-estar.

EC – Esse professor vive um paradoxo de impor limites a excessos que ele próprio também vive?
Pereira – Isso é muito visível no contemporâneo, do ponto de vista pessoal, pois ele também faz parte da sociedade de consumo, do excesso e da satisfação passional a toda prova. Mas do lado educacional ele está convocado a fazer a transmissão do saber, que é uma transmissão que passa pela privação e pela repressão, pelas leis, pelos limites, pelas normas. Então, ele precisa advogar uma norma no trabalho e viver pessoalmente outra nos seus próprios excessos. Inclusive, a própria manifestação psíquica, a própria psicopatologia da vida cotidiana, como Freud chama, isso está no nosso mundo, no dia a dia, é vivido sob a forma de excesso. Esses professores fazem uso absurdo de psicotrópicos, de medicamento psiquiátrico ou neuropsiquiátrico. Por exemplo, é óbvio que trabalhei com professores que eram laudistas, que tinham laudos ou que tinham licenças médicas, portanto, já eram diagnosticados. Mas para se ter ideia, 65% deles faziam uso de antidepressivos ou remédio para sono ou remédio para distúrbio de humor.  Das entrevistas de orientação clínica, apenas dois não faziam uso. Todos os outros usavam, seja ansiolítico, antidepressivo, soporífero, estabilizadores de humor etc.

O professor na corda bamba

Foto: acervo pessoal

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EC – Foi registrado uso de álcool e outras drogas ilícitas?
Pereira – O uso de álcool é muito visível. Inclusive um deles tem um diagnóstico de uso abusivo de álcool e está afastado por isso. Mas, em todos os casos menos severos analisados o álcool é uma anestesia nessa hora. Quanto às drogas ilícitas, os professores fazem uso, mas não revelam necessariamente o que fazem, nem se usam drogas lícitas para equilibrar o uso de drogas ilícitas. Mas é perceptível pela experiência clínica, em um ou outro, alguma forma disso acontecer. Pelo andar da coisa, enfim, em conversas sobre o que fazem em suas vidas pessoais é possível perceber esse uso, mas não de forma quantitativa.

 EC – Também por não ser esse o alvo do estudo?
Pereira – Exato.

EC – O senhor menciona as questões que aviltam o professor e que isso de certa forma o leva ora ao adoecimento, ora à automedicação. Até que ponto as circunstâncias do cenário não apenas político, mas socioeconômico e de falta de reconhecimento da profissão e da valorização do professor nos diferentes níveis e redes educacionais, também influenciam nesse processo de mal-estar?
Pereira – Não há dúvida desta relação. Influi muitíssimo. Na verdade, meu trabalho não é sociológico, mas  psicanalítico: recorta um determinado cenário, que é essa ligação do sujeito com o outro.

EC – Mas isso não impede que o senhor faça essa análise empiricamente, de observar algumas questões a partir dos dados coletados.
Pereira – Exatamente. Eu coloco no livro que as condições do trabalho docente e a própria organização do trabalho, a gestão do trabalho, a lida com os pais, o problema da má remuneração ou da remuneração insuficiente. E, também, a própria relação com o saber são fatores fundamentais para que ele se sinta hoje numa corda bamba e responda a isso com mal-estar.

EC – As relações internas, típicas do ambiente escolar e universitário, também não seriam ambientes opressores, de disputas de poder, que contribuem para esse mal-estar?
Pereira – A profissão docente é muito vulnerável porque ela tem de responder a três demandas, que seriam: as demandas relacionais, as demandas ocupacionais e as demandas do sistema (exteriores). Além de ele ter de cumprir as regras do sistema educacional, seja qual for o nível em que atua. Torna-se um problema, porque ele não consegue fazer isso direito. Ele tem de atender as demandas do gestor, do plano de curso, também as demandas relacionais, que é a lida com os alunos, pais de alunos, com os colegas e com as relações de poder dentro da instituição. Essas três demandas o deixam vulnerável porque o sucesso dele depende do sucesso das três instâncias. Ele só é considerado um bom professor se o aluno dele for bom. Ele só é considerado bom professor se o plano de curso da escola for eficaz. Ou se o sistema estiver com um projeto de trabalho e gestão educacional muito interessantes. Então, na verdade, ele depende do sucesso de outros para também obter sucesso e isso o vulnera. Um pouco diferente do que acontece em outras instâncias. Isso o coloca em uma corda bamba muito forte. Ele tem sempre uma ameaça de que pode não se dar bem.

EC – Existem relatos de professores de que muitas escolas forçam a barra para que alunos com baixo desempenho sejam passados de ano porque a escola também é avaliada por seus resultados. Isso cria muitas vezes uma situação constrangedora para o professor e fere sua autonomia. Esse tipo de situação aparece nas escutas para o seu estudo?
Pereira – Sim. Há relatos absurdos. Eu mesmo participei de um conselho de classe, que serve de exemplo, em que os adolescentes tinham laudos (diagnóstico médico). Então se falava em determinado adolescente e assinalavam a existência de laudo, e que tinha 30% da nota necessária. Como aprovar esse menino? Mas o comentário no conselho é que ele tinha laudo, então seria aprovado mesmo assim. Isso é assustador. Sequer as pessoas perguntaram do que se tratava e que laudo era esse. Vinha um laudo no dossiê dele, nesses dossiês que se tem nas escolas que apontava que o aluno faz algum tipo de tratamento.

EC – De que forma situações de patrulhamento ideológico como a Lei da Mordaça (Escola Sem Partido) atingem os docentes?
Pereira – Nós temos de separar o joio do trigo no seguinte sentido. No mundo dos professores eu trabalhei apenas com aqueles que possuem algum laudo referente a algum problema de ordem psíquica. Isso faz com que eu venha a trabalhar com um universo reduzido do ponto de vista do professorado de maneira geral. A docência é realmente uma profissão de perigo, mas a grande maioria dos professores tem outras saídas que não essas que tratei no livro. Muitos são militantes, muitos são idealistas, mas a grande maioria são os normopatas (que entram em uma normalidade sem se alterarem muito e se adaptam à norma), tem também o laissez-faire (que deixam pra lá e não se envolvem muito), que é aquele que vai lá, dá a aula dele e acabou. Então a gente tem vários tipos.

EC – Enfim, humanos?
Pereira – Exatamente (risos). Isso mesmo, como qualquer um de nós em nossos trabalhos cotidianos. Como disse, uns são normopatas, outros são militantes etc. Os militantes fazem um grande barulho, e é interessante que façam. Seja pelas lutas democráticas, pelas lutas por direitos, pela não alienação do professor, mas não é a maioria. Na grande maioria, inclusive, a gente encontra posições bastante conservadoras dentro da escola. Diferentemente do que a gente pensa, que os professores são aguerridos ou estão aviltados com as normas que estão estabelecidas por instâncias de governo que por ventura, hoje em dia, estão realmente sendo intervencionistas, exigem autonomia, mas intervêm contra isso, que é o que estamos vivendo hoje, da mesma maneira que acontece com os jornalistas, por exemplo. Então é um problema, porque começamos a entender que uma grande massa de professores, sejam esses normopatas ou sejam dessas formas que não se envolvem muito, na verdade escondem uma face conservadora, que não conspira contra esse intervencionismo.

EC – Como o intervencionismo no ambiente escolar afeta o bem-estar do professor? Atinge mais os militantes ou abrange todos de forma geral?
Pereira – Os idealistas e os militantes vão gritar contra isso e é necessário que se faça. É visível que essa parcela que adota uma certa postura engajada vai denunciar isso, a meu ver, de forma correta.

EC – E a autonomia do professor é positiva para saúde mental docente?Pereira – É fundamental. Um professor antes de qualquer coisa é aquele que tem autoridade dentro da sua sala. Portanto, ele precisa, naquele ambiente e momento, se sentir mestre o suficiente para abrir a picada para o aluno passar.

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