MOVIMENTO

O inverno árabe

Por Flávia Bemfica / Publicado em 11 de maio de 2017

Quase dois anos se passaram desde que a foto do menino sírio Alan Kurdi, de três anos, sem vida, em uma praia da Turquia, chocou o mundo. O pequeno corpo de Alan, de bruços, com a cabeça sendo alcançada pelo movimento das ondas, foi encontrado em Bodrum após duas embarcações naufragarem  com refugiados que tentavam chegar à Europa. Com o tempo, as pessoas esqueceram. Mas as atrocidades do conflito iniciado pacificamente em 2011, na esteira da Primavera Árabe, e que logo se transformou em guerra civil, inflamado pela reação violenta do regime do ditador Bashar al-Assad às manifestações populares, continuaram.

O inverno árabe

Foto: Fotos Públicas/Network News/divulgação

Foto: Fotos Públicas/Network News/divulgação

Em 4 de abril deste ano, a morte de 86 civis após um ataque químico com gás sarin na localidade de Khan Sheikhoun voltou a causar comoção. Acusações contra Assad, resposta armada dos Estados Unidos, investigações sobre a autoria do ataque que provavelmente nunca chegarão a conclusões definitivas e especulações sobre um estopim para conflitos entre potências mundiais. Após uma semana, o assunto saiu das manchetes. Mas a guerra, sem chance de pacificação a curto prazo, continua.

“No círculo mais interno, o que a oposição quer é tirar o governo do poder a qualquer custo. E o governo quer se manter no poder a qualquer custo. Se você considerar uma abrangência um pouco maior, há os interesses da Arábia Saudita, da Turquia e do Irã. E, quando amplia mais, encontra Rússia, Estados Unidos e outros países da Europa, como a França. Então, a construção de uma solução é altamente complexa”, explica o professor do Departamento de Relações Internacionais da PUC Minas e líder do Grupo de Estudos Oriente Médio e Magreb (Geomm), Danny Zahreddine.

Segundo ele, o que mantém a guerra ‘acesa’ é a perspectiva que todas as partes vislumbram de ‘ganhar alguma coisa’. “A solução vai vir quando se esvaziar por completo a possibilidade de qualquer ganho adicional pelos atores. Isso pressupõe um processo de transição com representantes de governo e oposição, e que sinalize para a realização de eleições livres no futuro. Essa situação de custos maiores do que ganhos para diferentes atores do conflito já pode ser observada. Por isso, acredito que algo possa ocorrer dentro dos próximos seis meses”, projeta o professor.

No xadrez internacional, a Síria é considerada estratégica mais por localização geográfica do que pelas reservas de petróleo que em geral alimentam os embates no Oriente Médio. Um caldo de diversidades étnicas e religiosas, uma história repleta de golpes militares desde a independência da França em 1946 e uma ditadura familiar que se arrasta por 56 anos, tendo como pilares o partido Baath, as Forças Armadas e as elites de Damasco (a capital) e Aleppo (a maior cidade), alimentam o conflito. O cenário se completa com os interesses de extremistas (terroristas ou não), países vizinhos e potências mundiais. O principal aliado do governo no cenário internacional é a Rússia. O Irã é outro aliado importante de Assad, além de grupos no Iraque e no Líbano. A Arábia Saudita, a Turquia e o Catar financiam e armam grupos de oposição, extremistas ou não, mesma política adotada pelos Estados Unidos. Apesar de apoiar e financiar a oposição, o atual presidente norte-americano, Donald Trump, mantém uma posição ambígua. E os jogadores, de modo geral, avaliam que pouco adianta substituir Assad pela ameaça concreta de domínio do Estado Islâmico (EI).

Para a professora de Relações Internacionais e do Programa de Estudos Estratégicos Internacionais da Ufrgs, Analúcia Danilevicz, as grandes forças militares mundiais não têm interesse em uma ampliação do conflito e a recente represália de Trump à Síria foi uma demonstração de força, desvinculada de um planejamento geopolítico mais elaborado. “O que há por trás do conflito na Síria é uma guerra econômica, de interesse de empresas e de controle de recursos e espaços de fluxo comercial”, resume. O professor Zahreddine aponta a ação norte-americana como ‘um show pirotécnico’ de política interna mais do que externa, cujo objetivo foi tentar reverter a queda de popularidade de Trump e, ao mesmo tempo, responder às acusações de que ele foi favorecido pelos russos nas eleições.

Principais forças internas em combate na Síria

GOVERNO E ALIADOS

Exército Árabe Sírio
O presidente Bashar al-Assad controla a Síria desde o ano 2000 com base em forte apoio do Exército. Seu partido, o Partido Baath Socialista Árabe, ou simplesmente Baath, está no governo desde o golpe de Estado de 1963. A Frente Nacional Progressista é a única coalizão do Parlamento. Nela, 134 cadeiras pertencem ao Baath e nove cadeiras representam outros 35 partidos.  O Exército Árabe Sírio está no controle das maiores cidades do país.

Forças Nacionais de Defesa
O Exército possui uma espécie de extensão, as Forças Nacionais de Defesa, criadas pelo governo em 2012 e formadas por voluntários e soldados da reserva armados e remunerados.

Comitês Populares
São compostos por população civil treinada, armada e paga pelo governo para proteção de territórios.

Drusos e Cristãos
A maioria dos líderes religiosos apoia o governo por receio da instalação de um Estado Islâmico na Síria.

Palestinos
A maioria da população palestina na Síria apoia o governo. A Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP-CG) combate nos campos de refugiados palestinos junto com o regime sírio. O Exército de Libertação da Palestina integra uma parte do exército sírio.

Hezbolá
Partido-milícia xiita libanês criado com apoio sírio na guerra civil libanesa para enfrentar os israelenses, em um segundo momento começou a ser financiado pelo Irã.  Na Síria atual tem papel importante como aliado do governo em diversas frentes e mobiliza um exército estimado em 10 mil homens.

OPOSIÇÃO POLÍTICA

Conselho Nacional Sírio (CNS)
Foi o primeiro grupo institucionalizado de oposição formado após o início dos conflitos, em 2011, com apoio e financiamento internacionais, mas não conseguiu se manter como centralizador dos opositores. Tem forte participação da Irmandade Muçulmana Síria, e tentou se viabilizar como base para um governo alternativo, sem sucesso. Sua influência sobre os grupos armados é considerada pequena. Afirma representar 60% da oposição. Inicialmente era contra a intervenção externa, mas mudou de posição.

Coalizão Nacional Síria da Oposição e das Forças Revolucionárias
Foi o segundo grande grupo institucionalizado de oposição, e chegou a absorver o CNS, situação que depois se reverteu. Existe desde novembro de 2012 e é reconhecida pelos países da Otan e pela Liga Árabe como representante legítimo do povo sírio.

Comitê de Coordenação Nacional para as Forças da Mudança Democrática
Fundado em 2011, é um bloco de oposição constituído por 13 partidos políticos de esquerda e ativistas independentes.  Já foi acusado de ser uma organização de fachada para o governo. Tem pouca relação com outros grupos políticos de oposição e baixo reconhecimento externo. É contra a intervenção militar estrangeira e prega a resistência não violenta ao regime.

Alto Comitê de Negociações (HNC)
Criado em 2015, aglutina ex-integrantes do governo, opositores políticos e grupos armados. É interlocutor nas tentativas de diálogo em Genebra.

REBELDES

Exército Livre da Síria (ELS)
Moderado, foi criado em 2011 por oficiais desertores do Exército como a principal força de oposição armada, mas perdeu muito peso ao longo da guerra. Muitos de seus integrantes migraram para outros grupos insurgentes. Tem apoio na Europa e Estados Unidos, da Arábia Saudita e da Turquia.

EXTREMISTAS

Estado Islâmico (EI)
Grupo terrorista islâmico que a partir da guerra civil avançou fortemente pela Síria a partir do Iraque, dominando metade do território, sendo fatia considerável dele de áreas despovoadas e desérticas. Foi criado no Iraque  em 1999 com nome diverso. Passou a se chamar Estado Islâmico em 2014, após a divisão da al-Qaeda.

Frente al-Nusra
Também conhecida como Jabhat al-Nusra, a Frente de Suporte para o Povo da Síria é uma milícia extremista islâmica de orientação jihadista e sunita criada em 2012 e formada por soldados desertores, mercenários europeus e interessados na luta armada. É extremamente agressiva. No ano passado anunciou seu rompimento com a al-Qaeda passando a se chamar Frente Fateh al-Sham.

Homens Livres do Levante (Ahrar al-Sham)
Milícia formada por grupos islamistas e salafistas (ultraconservadores) com lideranças que já foram aliadas da al-Qaeda. Luta contra o governo e tem o EI como principal inimigo. Tornou-se um dos grupos militares mais fortes nos conflitos e pretende estabelecer na Síria um estado islâmico.

Exército do Islã (Jaysh al-Islam)
Também reúne islamistas e salafistas. Combate tanto as tropas do governo como as do ELS. Criada em 2013 a partir da fusão de outras 50 facções rebeldes.

Exército da Conquista (Jaysh al-Fatah)
Aliança que inclui moderados e extremistas criada em 2015.

Unidades de Proteção Popular Curda (YPG)
Milícia curda fundada como braço armado do Partido de União Democrática sírio, controla militarmente parte do território e teve sua influência aumentada a partir de 2014. Combate o governo e o EI.

Os números da guerra
De acordo com o Escritório das Nações Unidas (ONU) para a Coordenação de Assuntos Humanitários (Ocha), 13,5 milhões de pessoas necessitam de assistência humanitária na Síria.

O enviado especial da ONU para resolução do conflito na Síria, Staffan de Mistura, estimou no início deste ano que a guerra já tenha matado 400 mil pessoas.

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Criança refugiada síria aguarda para ser registrada na Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) UNHCR / Salah Malkawi / Julho de 2012.

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A última edição do Relatório Tendências Globais, do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), publicado em 2016, informou que a Síria é o país com o maior número de refugiados entre todos os pesquisados: 4,9 milhões de pessoas. O país também responde pelo segundo maior número de deslocamentos internos (6,1 milhões de pessoas).

Relatório divulgado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em março deste ano informa que em 2016 pelo menos 652 crianças foram mortas (um aumento de 20%) sobre 2015.

Mais de 850 crianças foram recrutadas para lutar no conflito, mais do que o dobro do número recrutado em 2015. As dificuldades de acesso ao território dificultam as ajudas humanitárias, os cuidados médicos e o acesso a suprimentos e outros serviços básicos de saúde, provocando a morte por doenças que poderiam ser facilmente evitadas.

As mais vulneráveis são as 2,8 milhões de crianças em áreas de difícil acesso, incluindo 280 mil que vivem sob cerco.

Após seis anos de guerra, 6 milhões de crianças dependem da assistência humanitária, um aumento de 12 vezes em relação a 2012. Pelo menos 2,3 milhões delas são refugiadas na Turquia, Líbano, Jordânia, Egito e Iraque.

A Unicef estima que 8,4 milhões de crianças (mais de 80% da população infantil síria) foram afetadas pelo conflito. E verificou 1,5 mil violações graves praticadas contra elas.

Um quinto (4,2 mil) das escolas na Síria foram destruídas, danificadas ou usadas como abrigos ou para outros fins. Em 2015, 52 mil professores já haviam sido mortos ou fugido do país.

Conforme a Unicef, cerca de 2,6 milhões de crianças sírias continuam sem acesso à educação.

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