OPINIÃO

O envenenamento dos espíritos no Brasil: para além das fake news

Por Marco Weissheimer / Publicado em 8 de outubro de 2018

Foto: FreePik.com

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“Com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil como ela mesma”, escreveu o jornalista Joseph Pulitzer na virada do século 19 para o século 20

Whatsapp, fake news, agências de fact-checking, pós-verdade… A língua falada cotidianamente no Brasil ganhou algumas novas expressões nos últimos anos que apresentam desafios não só para o sistema de comunicação brasileiro, mas também para a qualidade da democracia e do debate público no país. Algumas dessas expressões, em certa medida, não representam novidades exatamente. Fazer circular mentiras como se fossem verdade é uma velha arte da humanidade, utilizada desde altas esferas de poder até as relações interpessoais. O que é absolutamente novo é a capacidade de compartilhar essas mensagens massivamente de modo quase instantâneo. A dimensão que o Whatsapp tomou no Brasil é um exemplo disso.

Segundo dados do próprio Whatsapp, o nosso país já tem mais de 120 milhões de usuários dessa ferramenta, que é o aplicativo de troca de mensagens preferido da maioria da população. Segundo levantamento do Mobile Ecosystem Forum, 76% das pessoas com acesso à internet móvel hoje no Brasil utilizam o Whatsapp. O Messenger do Facebook vem em segundo com 64% e o SMS em terceiro, com 36%. Ou seja, o Whatsapp tem um alcance que rivaliza com os meios de comunicação tradicionais. Para muita gente, é o principal meio de comunicação, o que é bastante visível nas ruas de qualquer cidade brasileira, nos bancos de ônibus, do metrô, nas escolas, locais de trabalho, restaurantes, academias de ginástica etc. etc.

A proliferação de grupos de Whatsapp atravessa o ambiente familiar, as relações de trabalho e as mais diversas causas, que podem ir de grupos de proteção dos animais a de mobilizações como a greve dos caminhoneiros ocorrida este ano. Essa troca de informação pode ou não usar conteúdos dos meios de comunicação tradicionais. Dependendo da causa envolvida – como foi o caso da greve dos caminhoneiros – parece haver mesmo uma desconfiança em relação a esses meios. Há um sentimento de afinidade em relação a um determinado tema e de confiança entre os participantes desses grupos que parecem servir, de certa maneira, como legitimadores da veracidade daquilo que é compartilhado. Não é, necessariamente, a má fé que explica esse compartilhamento de conteúdos e informações nem sempre verdadeiras.

Há uma grande e justificada preocupação entre os jornalistas sobre como enfrentar essa nova realidade. O jornalismo dispõe dos procedimentos e ferramentas necessárias para combater esse tipo de falsidade: a apuração das informações, das fontes das mesmas. Na greve dos caminhoneiros, por exemplo, fez isso denunciando a falsidade de áudios que falavam de uma intervenção militar iminente no país. Na campanha eleitoral deste ano vem fazendo isso diariamente, denunciando conteúdos falsos que circulam como se fossem informações verdadeiras. Os malefícios desse comportamento, é importante assinalar, não se limitam à prática jornalística, podendo impactar fortemente a vida política e social de um país.

No entanto, o tema da produção e difusão de notícias e informações falsas não se limita ao debate sobre as fake news. Estas, com procedimentos de apuração relativamente simples, podem ser rapidamente denunciadas. Há um outro tipo de falsidade, mais sutil, que é produzida dentro das mesmas redações que hoje caçam fake news. Nem só de notícias falsas vive o nosso sistema de comunicação. Há também um processo contínuo de produção de crenças falsas que também contribui para o envenenamento dos espíritos.

“Com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil como ela mesma”, escreveu o jornalista Joseph Pulitzer, que viveu na virada do século 19 para o século 20. Olhando para o cenário brasileiro hoje, é razoável perguntar: o trabalho da imprensa brasileira nas últimas décadas não tem nada a ver com o envenenamento de espíritos que vemos hoje no Brasil?

Quem alimentou com afinco e difundiu com sistematicidade, dia após dia, nas mais diferentes plataformas, ideias como as de que a política não presta, todo o político é ladrão, bandido bom é bandido morto, funcionário público é vagabundo ou que o Estado é um parasita da sociedade? Quem trabalhou para semear por todo o país crenças falsas que foram se enraizando no imaginário social como se fossem verdades absolutas? Além das agências de checagem de fake news, não deveríamos ter também um trabalho de análise dessas crenças falsas apresentadas como verdades cristalinas?

 

 

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