GERAL

O PCC, o teatro da guerra e a democracia ferida

Por César Fraga / Publicado em 10 de outubro de 2018

Foto: Carla Arakaki/Todavia-Divulgação

Foto: Carla Arakaki/Todavia-Divulgação

O livro recém-lançado A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil (Editora Todavia), de Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias é uma reportagem que faz uma fotografia do crime no país a partir de sua maior facção. O PCC, criado em 1993, passou a ditar as regras do crime nas prisões de São Paulo, impôs sua influência sobre outros estados e agora se internacionaliza a uma velocidade sem precedentes. Segundo o Ministério Público Paulista, o PCC teria mais de 700 afiliados ou simpatizantes no Rio Grande do Sul. Em São Paulo são mais de 10,9 mil integrantes. Recentemente foram presos dois homens que estariam organizando células da facção em Canoas e Caxias do Sul. No Rio Grande do Sul, segundo Bruno Paes Manso, o PCC teria firmado alianças com as facções Anti-bala e Bala-nos-bala e outras que rivalizam com os Bala-na-Cara. Os aliados do PCC no Sul seriam Os Manos, o Primeiro Comando do Interior (PCI), que atua na Fronteira, a quadrilha dos Cova Rasa (Canoas), os V7, os Farrapos, os Conceição e os Abertos. Bruno Paes Manso é jornalista, economista e doutor em Ciência Política pela USP. É também autor de O homem x (Record) e Homicides in São Paulo (Springer). Camila Nunes Dias é doutora em Sociologia pela USP e professora da Universidade Federal do ABC. Também é autora de PCC: hegemonia nas prisões e monopólio da violência (Saraiva).

Extra Classe – O que motivou vocês a estudarem tão profundamente o PCC e sua expansão pelo país?
Bruno Paes Manso – Eu e a Camila já estudávamos o assunto. Foi a tese da Camila, aliás, em 2012, muito focada no PCC. Eu entrava mais na questão do PCC porque meu foco de pesquisa sempre foi a questão dos homicídios e violência aqui em São Paulo. Em meados de 2016 teve um evento para o qual vieram pesquisadores de vários lugares para pensar um pouco sobre a redução dos homicídios em SP, que é forte, e o papel do PCC, se houve relevância ou não. Me pediram na Revista Piauí para escrever sobre este debate e como de se deram as diferentes opiniões e pesquisa sobre o tema. Eu acabei escrevendo minha matéria em fevereiro, na Piauí, justamente falando sobre essa cena de massacres e entrando na discussão da expansão do PCC pelos presídios e o crescimento de violência em alguns estados e a queda em outros.

EC – Que período vocês retratam?
Bruno – Partindo da fotografia de 2007 para cá, esse quadro nacional de violência e de homicídios no Norte e no Nordeste, queda em São Paulo, as questões do Rio, no Sul e Sudeste. Essa visão nacional parte de uma fotografia nacional, voltando na história pra tentar entender os passos do PCC do varejo pro atacado, das quebradas pras fronteiras e pros mercados produtores e distribuidores, pra essa nova configuração do mercado nacional do crime a partir dessa trajetória. Então mergulhamos nessa história pra contá-la, pois é uma coisa que as pessoas não estão entendendo como se dá.

EC – Mas isso já num momento de franca expansão e consolidação do PCC e de interiorização?
Bruno – Já vinha tendo esse crescimento da violência nos estados do Norte e do Nordeste e era um tema ao qual eu estava me dedicando. E além de São Paulo, como o protagonismo do PCC nos outros estados estava causando desequilíbrio em outros lugares. A partir do momento que o PCC consegue organizar o mercado paulista, isso permite uma expansão e um desequilíbrio em outros estados.

EC – Não existe certa discrepância no sentido de haver comportamentos opostos da criminalidade ao pacificar no estado matriz e intensificar a violência fora?
Bruno – Isso, de alguma forma já é meio consolidado no debate de economia do crime: a questão do papel da concorrência e da rivalidade da competição dos mercados ilegais na produção de violência existe. Mas tem outros fatores também interferindo. Com mais lugares onde existe competição com rivais de tamanhos semelhantes e competindo por mercados ilegais obviamente a tendência é de aumento da violência. Em lugares onde essa competição não existe, ou existe hegemonia de determinado grupo, o que é raro, mas é um pouco o caso que a gente tenta explicar em São Paulo, a violência é menor. Isso, de alguma forma, já vem sendo consolidado no debate da área de economia ilegal.

EC – Como resumir para o público leigo esse avanço do PCC?
Bruno – O PCC começa crescer no sistema penitenciário em expansão, como reação ao massacre do Carandiru. O sistema penitenciário paulista salta de 30 prisões para 170 em 20 anos, e salta de 30 mil para 130 mil presos. Um sistema que segue em expansão rápida, e ao mesmo tempo com menos vagas do que presos. Um sistema penitenciário que está sempre correndo atrás do rabo. Não tem funcionários, não tem comida, não tem estrutura para lidar com esse dia a dia dos presos. E essa gestão da ordem dentro das prisões, de alguma forma é terceirizada e compartilhada com o crime, passa a exercer e estabelecer essa ordem.

EC – É como se a facção acabasse fazendo um gerenciamento de hotel?
Bruno – Exatamente! A facção se encarrega das normas: do que pode o que não pode, organiza cantinas, dias de visitas etc. Em São Paulo, cada preso divide uma cela de 12 lugares com mais 50 pessoas. Todas as pessoas têm de guardar todos os seus mantimentos nessa cela e administrar um banheiro pra todos usarem. Então, como se estabelece uma ordem nesse caos? Então se acaba dando condições para que um grupo se coloque como gerenciador desse universo e se fortaleça. Ao mesmo tempo, durante os anos 2000 eles dizimaram a concorrência e passaram a ganhar legitimidade no sistema penitenciário paulista. E a partir do momento que começam a se massificar os aparelhos celulares, isso transforma a cena prisional, quando eles encontram um grande facilitador de comunicação do lado de dentro com o lado de fora.  Entra e sai de gente o tempo inteiro. O pessoal da cena criminal tá sempre entrando e saindo da cadeia. Até quem está do lado de fora começa a cumprir essas normas, porque o criminoso sabe que em algum momento da sua carreira vai precisar passar algum tempo na prisão. Durante esse cumprimento de pena o apenado precisa ser respeitado pela facção. Com isso se criou um mecanismo que fortalece a liderança. As autoridades, na tentativa de controlar o crime, acabam fortalecendo as gangues e as lideranças prisionais. E essa competência que eles têm pra mediar e organizar essa cena criminal, primeiro dentro e depois fora das prisões, permite maior capacidade de planejamento, de previsibilidade, com um maior profissionalismo nos negócios com possibilidade de pensar os negócios estrategicamente, inclusive. Eles vão assumindo os postos, vão construindo uma rede.

EC – Como funciona? Qual o diferencial?
Bruno – O PCC costura uma rede de drogas. Eles não chegam nos estados para tomar territórios e rivalizar com as facções locais.  Eles vão estabelecendo parcerias. Quanto mais parceiros, mais eles vendem e maior é o lucro. Eles vão com essa estratégia, que é bem diferente do Comando Vermelho, que talvez pudesse ser comparado com um sistema de franquias, que cria um comando local, mas que não necessariamente se comunica com o comando central. No caso de São Paulo, essa rede dialoga o tempo inteiro. Então, de alguma forma existe no PCC uma hierarquia, um padrão de operação e uma certa regulação dessa rede. No caso do CV, do Rio, mal e mal organizaram a facção no Rio de Janeiro. Imagina quando cria um Comando Vermelho do Mato Grosso ou do Tocantins, que não tem um diálogo permanente com uma liderança central. No caso do PCC essa rede dialoga o tempo inteiro.

Foto: Divulgação

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EC – E os presídios federais não facilitam esse tráfego de informação?
Bruno – O que começa a acontecer é que nos presídios federais gente do Rio Grande do Sul ao Acre começa a frequentar essas cadeias e colocam várias lideranças no mesmo espaço. Quase uma feira onde se consegue estabelecer um networking muito mais amplo do que se tinha antigamente. Várias lideranças que passaram pelo sistema federal acabam voltando pros seus estados com outra ideia de crime e outra mentalidade estratégica. Nesse processo de nacionalização do PCC, o Comando Vermelho vira uma referência para fortalecer as oposições regionais. Ele vira quase como que uma bandeira que registra a oposição. Porque é um outro tipo de forma de lidar com o crime, menos rigorosos, menos regras e tudo mais. O CV vira quase uma alternativa natural ao PCC e alguns estados começam a atuar no crime não só com suas fações regionais, mas também como uma marca, mesmo não sendo necessariamente interligada como é o PCC e todas as conexões que o PCC tem de decisões, regras e tal.

EC – Para o governo paulista, a hegemonia do PCC é conveniente  ou existe algum tipo de conivência para obter uma pacificação das ruas?
Bruno – Eu não diria que existe uma clareza quanto aos benefícios que o PCC poderia trazer, mas o fato é que São Paulo tem 230 mil presos e 100 mil vagas nas prisões. Essas prisões não têm rebeliões nem fugas há muitos anos. Se consegue manter um sistema superlotado em paz. Os homicídios estão caindo há 18 anos. A situação é relativamente estável no maior mercado consumidor de drogas do Brasil e talvez da América do Sul e um dos principais do mundo e não violento. De certa forma isso é um ponto positivo. Europa e EUA são mercados de drogas não violentos. Só de coibir a violência desses mercados já é um ganho. Por outro lado, temos uma facção que cresceu muito com essa situação. Então a facção também sai ganhando com essa estabilidade.

EC – No meio desse cenário, como vocês enxergam a intervenção militar no Rio?
Bruno – Esse é o capítulo final do livro. Quando a Marielle foi morta, a gente tava finalizando a redação e acabamos acrescentando um capítulo e fechando o livro com a síntese dos erros e da incapacidade do Governo analisar criticamente o problema, além de usar o medo das pessoas pra ganhar prestígio e voto. Num Rio de janeiro que vive há muitos anos esse problema, que se lutou para reverter políticas para reduzir confrontos, via UPPs. Nesse cenário de guerra se volta a aterrorizar as populações dos morros, favelas e comunidades. E foi um desastre. Aconteceu o óbvio. Passados mais de oito meses a gente vê com muita tristeza que o óbvio aconteceu. As mortes pela polícia aumentaram, a sensação de medo das pessoas que moram nas comunidades, a quantidade de mortos por balas perdidas cresceu  contribuindo pra fragilizar ainda mais as instituições democráticas. Foi um desastre que sintetiza de alguma forma os erros que os estados vêm praticando.

EC – De que lado ficam as milícias nessa guerra entre PCC e CV, no Rio?Bruno – Elas estão do lado delas, protegendo a grana, o poder e os negócios delas.

EC – A intervenção no Rio foi uma solução policial para onde o Estado deveria chegar de outras formas?
Camila Dias – No livro todo essa questão do vácuo do Estado permeia a narrativa justamente porque é nosso entendimento que historicamente no Brasil a gente sempre tratou dessa questão da abissal  desigualdade, dos problemas estruturais e da questão da criminalidade urbana apenas da perspectiva da repressão e da punição. Esse é o grande fio da meada de toda essa história. O cenário contemporâneo preocupa porque a gente não vê muitas opções políticas que apontem para outro caminho para uma outra maneira de lidar com o problema.  Em regra, os candidatos, ao menos aqueles com mais expressão eleitoral, com mais capacidade de voto, eles se encaixam também dentro desse mesmo paradigma sem rompê-lo. Volta e meia o problema da segurança pública é tratado nos debates e as respostas são sempre na direção do endurecimento da lei. Que a lei é muito branda e tem de endurecer a legislação, deixar mais tempo preso, reduzir a maioridade penal, infelizmente as respostas estão muito calcadas na ideia da polícia militarizada, ostensiva e na prisão que supostamente tem de ser mais dura. O remédio que se propõe é justamente o alimento do problema. O que a gente acaba vendo é a reiteração daquilo que nós estamos criticando e demostrando que produziu esse estado de coisas.

 EC – Quais políticas seriam afirmativas para se obter algum tipo de mudança concreta?
Camila – Na verdade, o Estado está presente o tempo todo, mas essa presença se dá na escolha por comprar armas, um caveirão (carro blindado) pra mandar pra favela. Essa é uma opção do Estado. É o Estado que faz a opção de apostar no aumento da Polícia Militar que vai fazer as prisões em flagrante e entupir as prisões ao invés de desenvolver mecanismos de investigação e de inteligência para que possam fazer uma repressão ao crime de forma mais qualificada e eficiente.

 EC – No final das contas, o que atrai os jovens para esse negócio é uma questão econômica, não é?
Camila – Uma forma de repressão, inclusive, seria estrangular economicamente as organizações criminosas, mas por outro lado tem a questão do usuário, que é um tema de saúde pública. Nós defendemos a descriminalização do uso e a regulação pelo Estado como já vem sendo feito em vários outros países, no caso da maconha. Não é uma solução mágica, mas é uma tentativa de abordar o problema de uma forma diferente daquilo que vem sendo feito até esse momento.

EC – E o PCC no meio disso?
Camila – De uma certa forma o PCC, a partir de 2006,  ganha uma autonomização, pois ele passa regular e controlar o mercado de drogas e as prisões do principal centro consumidor do país, no estado que passou a ter o maior sistema prisional em termos de unidades e população carcerária, como se fosse um ponto a partir de onde o PCC, se estabelecendo nesse cenário paulista, adquiriu forças para se expandir para o restante do país. Só que cada estado brasileiro tem um cenário diferente em termos do próprio mercado de drogas, do sistema prisional, dos grupos que já existiam ou não naquele lugar. A interação desse modo paulista de articular o crime com os cenários locais em termos das suas peculiaridades geográficas, culturais e sociais, acabou produzindo cenários diferentes em cada estado. Em alguns eles conseguiram alianças com os grupos locais, em outros constituíram grupos de oposição, em alguns, a divisão dos grupos já existentes.

EC – E no Rio Grande do Sul?
Camila – O PCC não disputa o mercado local, mas busca parcerias sem interesse de entrar nos conflitos. Opera como um distribuidor e ganha em todos os lados.

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