CULTURA

Quando a presença na obra de arte se faz na ausência

Por Cristiano Goldschmidt / Publicado em 13 de maio de 2014

Em 2011, o fotógrafo Carlos Stein viajou a Teutônia, no interior do RS, para fotografar a apresentação do “Coral de Queixas”, cujo projeto e processo criativo foi orientado pelo finlandês Oliver Kochta (da dupla finlandesa Kochta-Kalleinen), um dos artistas participantes da 8ª Bienal do Mercosul.

Num despretensioso passeio pela cidade, Stein se deparou com o Hospital Teutônia Norte, pertencente, segundo a escritora e jornalista Lilian Dreyer, a um médico da família Ruschell, a quem um filho sucedeu. Depois de olhar por várias portas e janelas com vidros quebrados, o fotógrafo deteve-se naquela que sentiu ser “a imagem”, resultando na foto posteriormente intitulada Natureza Interrompida. O ambiente fotografado foi exatamente o que qualquer passante veria ao tentar matar sua curiosidade espiando por entre os vidros estilhaçados. Nada foi alterado do cenário original para a captação da imagem. Uma boa foto não precisa de título, nem de explicação, mas, se fosse para nomear ou identificar aquilo que captara, o fotógrafo tinha que acertar em algo que despertasse ainda mais a curiosidade entre os espectadores e apreciadores de sua arte. Escolheu Natureza Interrompida por ser um título propositadamente dúbio e intencionalmente reflexivo.

A obra Natureza Interrompida, do fotógrafo Carlos Stein pertence ao acervo do Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli (Margs)

Foto: Carlos Stein

A obra Natureza Interrompida, do Carlos Stein pertence ao acervo do Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli (Margs)

Foto: Carlos Stein

Uma provável crítica à injustiça a que a população está submetida, a imagem apresenta um tema atual e recorrente: o abandono. Além da tentativa de manter o olhar cativo do observador, a fotografia é, também, uma tentativa de tirar-nos da zona de conforto, fazendo refletir sobre esse desumano sistema de saúde que a tudo remedia com medidas paliativas. O artista, com seu olhar aguçado de atento observador, não revela apenas uma imagem. Nela está estampada, principalmente, a incompetência administrativa dos que fazem aumentar o sofrimento, quando deveriam agir com medidas preventivas, trabalhando para aliviar a dor de uma imensa massa de desassistidos. Ao tornar público esse estado de abandono, Stein alfineta, cutuca, expressa a vontade de ser ele mesmo um dedo na ferida destes acomodados que, ao invés de apresentarem soluções, cumprindo com suas obrigações, optam, na maioria das vezes, pela omissão, fugindo de suas responsabilidades.

A fotografia de Stein salta aos olhos, mas também grita tal como o grito de dor dos desamparados e órfãos, filhos do precário sistema de saúde brasileiro. A transparência de sua imagem traz na superfície uma realidade que muitos tentam ocultar, mas é justamente na tentativa dessa ocultação que se materializa, em cada novo olhar sobre ela lançado, a dor que a presentificação do abandono nos impõe. O fotógrafo oferece, com a ausência retratada em sua obra, infinitas possibilidades para propor ou exigir uma mudança. Quiçá um final não tão degradante. Ao olhar para o passado, porém interessado no agora e no futuro, ele toma uma atitude, e com sua arte fotográfica questiona e discute criticamente aquela realidade. Sem fazer uso de palavras, e nesse caso a imagem revela-se a linguagem ideal para o que ele deseja comunicar, Stein escreve sobre a história de um “micromundo” desconhecido (como tantos outros existentes por aí), possibilitando a chance de, com o benefício do distanciamento no espaço e no tempo, se atribua a ele novos significados, (re)interpretando-o de acordo com o repertório de linguagem de cada público.

Embora o objetivo primeiro do artista, pareça, seja indicar ou salientar o abandono e a precariedade do sistema de saúde do país, há, no entanto, algo a mais nessa imagem. Natureza Interrompida oferece-nos a possibilidade de outra leitura, proporcionando-nos uma segunda interpretação, distinta da primeira. Ao olharmos atentamente para a imagem original pertencente ao acervo do Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli (Margs), cujo tamanho maximiza seus detalhes, vemos uma natureza selvagem tomando conta do espaço. É como se a vida, por circunstâncias adversas, regressasse àquele ambiente, tomando outra forma que não a humana, e insistisse em ali permanecer, mesmo depois de o espaço ter sucumbido ao descaso daqueles que agora se tornam meros observadores deste novo processo.

Para nós, espectadores, não fica claro a que ambiente pertencente ao velho hospital observamos (certo é tratar-se de um hospital). Assim como não nos apresenta com a clareza necessária o objeto central da fotografia, podendo tratar-se de uma maca ou de uma mesa cirúrgica, ou até mesmo de outro objeto ou utensílio similar. Fato é que essa Natureza Interrompida trazida à luz pelo fotógrafo Carlos Stein pode também significar não a interrupção, mas sim o início de um novo ciclo.  A vegetação que começa a tomar conta do local, “abraçando” a grande pia que repousa também abandonada naquilo que, na ausência de uma certeza, podemos denominar maca (ou mesa cirúrgica), espalhando-se a partir dali pelo chão num crescente emaranhado, proporciona ao interlocutor a sensação de estar inserido naquele contexto.

Ao olhar para a imagem, é como espiar janela adentro, dando sentido e trazendo certa (ou seria levando?) presença àquele vazio. Inserindo-se naquela ausência, pode-se inclusive sentir a umidade que toma conta do espaço, o que contribui para a sobrevivência do vegetal, uma espécie que necessita muito mais de umidade e luz que de terra fértil para o seu desenvolvimento. Se fosse possível deslocar o olhar para o alto, até o teto, provavelmente se identificaria rupturas ou fissuras, ou quem sabe a ausência total de uma cobertura. Afinal, de onde teria vindo essa planta, por onde teria ela se infiltrado se não das alturas? Ao forçar um pouquinho mais nosso olhar, percebemos tratar-se de um vegetal cujas características são bastante comuns. Tudo indica tratar-se de uma ipomeia, trepadeira rústica e de textura herbácea que cresce mesmo em solos pobres.

De fato, não é demasiado importante que se saiba das especificidades da(s) planta(s) que começa(m) a ocupar o espaço. O que interessa, na fotografia de Stein, é a epifania que tal experiência estética pode proporcionar ao espectador. É a percepção desta presença existente no vazio, que a ausência pode estar impregnada de presença, e o abandono geralmente carregado de significados que lhe conferem novas realidades.

Se admitirmos que não existe experiência estética sem um efeito de presença e não há efeitos de presença, sem que esteja em jogo a substância; se, além disso, admitirmos que, para ser percebida, uma substância tem de ter forma; e se, finalmente, aceitarmos que o componente de presença na tensão ou oscilação que constitui a experiência estética nunca pode ser estabilizado, segue-se que sempre que um objeto da experiência estética surge e por momentos produz em nós essa sensação de intensidade, ela parece vir do nada. Antes, tal substância ou forma nunca estivera diante de nós. Com algumas implicações que considero fascinantes, mas que não têm necessariamente de ser aceitas para que se concorde com a descrição, Heidegger afirma precisamente: “A arte, então, é o surgir e o acontecer da verdade. Então, a verdade aparecerá do nada? De fato, assim é, se por nada se entender a mera negação do que é, e se aqui pensarmos no que é como um objeto presente da maneira comum” (GUMBRECHT, 2010, p. 141).

A imagem captada por Stein apresenta-se como uma oportunidade de olharmos para este local desguarnecido e desabitado, possibilitando-nos enxergar para muito além do que nele vemos num primeiro momento, descortinando formas inéditas que se produzem no espaço e no tempo, preenchendo-o com elementos cujos componentes tornam visível o invisível, revelando uma materialidade irresistivelmente fascinante ao sujeito disposto a apreciá-la com a devida (e merecida) atenção.

Ao oferecer-se naturalmente para a obra, num processo de contemplação livre de responsabilidades ou expectativas, o espectador poderá surpreender-se ao experienciar o belo e o sublime na presentificação do inesperado existente em Natureza Interrompida. Resta-nos saber se o fotógrafo, ao deparar-se com a imagem e decidir por captá-la, pensou apenas em realizar seu registro como forma de protesto diante de tamanho abandono, ou intencionalmente desejou provocar esse arrebatamento dionisíaco no interlocutor que dali em diante pudesse dialogar com a obra. Possivelmente não tenha sido essa sua intenção. Fato é que, querendo ou não, a ocorrência desta (inesperada?) inspiração do fotógrafo causa uma excitação que mexe com os sentidos daqueles que se veem diante da materialidade de sua produção.

Comentários