MOVIMENTO

A vida, a morte e o céu por testemunha

Filósofo, ex-sem-teto, faz estudo inédito sobre violência praticada impunemente contra a população em situação de rua, com ênfase nos assassinatos
Por Clarinha Glock / Publicado em 14 de maio de 2015

Em 2004, sete moradores de rua foram brutalmente assassinados na Praça da Sé, em São Paulo. Apesar da grande repercussão deste caso, ninguém foi condenado pelo crime, assim como dificilmente as punições são exemplares nos inúmeros casos semelhantes pesquisados por Jacinto Mateus de Oliveira, consultor de Políticas Públicas e articulador de movimentos sociais e lideranças comunitárias sediado em Brasília. Com formação em Filosofia, Oliveira, que é ex-morador de rua, começou em 2009 a fazer um levantamento inédito de violência contra população em situação de rua. O estudo  deverá ser publicado até o final de 2015.

A vida, a morte e o céu por testemunha

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

A violência com morte se tornou sua obsessão quando ainda vivia nas ruas e amigos despareciam simplesmente. As informações eram desencontradas. “Diziam que tinha voltado para a família, ou conseguido um emprego”, lembra. Numa lan house, resolveu buscar “morador de rua”. Entre as respostas, encontrou casos de assassinatos. Em 2010 saiu da situação de rua e continuou fazendo sua pesquisa. Um ano depois, um amigo seu, morador de rua, foi queimado vivo em Brasília. Ficou revoltado. Aos poucos, foi ampliando o levantamento de notícias veiculadas nos meios de comunicação, a busca de dados da Polícia Militar, de sepultamentos sociais e junto ao Instituto Médico Legal (IML). Parte da pesquisa integrou um trabalho feito em conjunto com a Universidade de Brasília, Universidade de São Paulo e Universidade de Coimbra (Portugal), com recursos da SDH da Presidência, do qual se retirou antes do final, por divergências.

Ao longo do tempo, Oliveira solicitou laudos cadavéricos no IML de todas 27 capitais e outras nove cidades em que foram detectados altos índices de óbitos. Em 2009, levantou 149 mortes. Em 2014, foram 580 mortes – como os dados ainda estão sendo computados, este número pode crescer. Deste total, 82% foram casos de pessoas em situação de rua mortas de forma violenta por perfuração, queimadas, espancadas ou com múltiplas fraturas. Em média, a maioria eram homens na faixa etária entre 20 e 42 anos de idade. Somente no Rio Grande do Sul, em 2014, Oliveira contou 54 mortes. Algumas por frio. “É outro tipo de violência”, considera. “Pelo não acesso a serviços públicos, como acolhimento”, afirma.

Ficou assustado com o número crescente de mortes violentas entre mulheres em situação de rua, e de famílias inteiras compostas por homem, mulher e filho/a. Identificou entre os ignorados, desconhecidos ou sepultados no funeral social indivíduos da Bolívia, Peru, Paraguai, Argentina, Uruguai.

“Não consigo ficar indiferente. As garantias não se consolidam na proteção e as investigações avançam apenas em casos de grande repercussão – mesmo assim não significa que os julgamentos tenham sentenças condizentes com os crimes”, diz Oliveira. Ele destaca que o Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da População em Situação de Rua e dos Catadores de Materiais Recicláveis (CNDDH/PSR/CMR) é uma conquista, e vem lutando para garantir um canal seguro das ordens de violações de direitos e da violência letal contra a população de rua no Brasil. Mas não é suficiente para impedir casos absurdos, como o de um estudante de Medicina do Pará que matou um morador de rua para fazer estudos, ou de um policial que revelou ter prendido outro policial de São Paulo que resolveu testar sua arma recém adquirida num morador de rua.

Existem várias formas de violência direcionada a esta parcela da população, conclui. A violência em si, por parte da sociedade, de comerciantes e agentes de segurança pública; a violência entre os próprios moradores de rua; a cultural, que se propaga com a intolerância, em que contribuem alguns meios de comunicação e alguns políticos; e a estrutural, já que ainda não há políticas públicas de proteção e prevenção. Para Oliveira, é importante criar um modelo didático, que sensibilize desde as crianças nas escolas, para mudar este cenário de ódio.

Há assassinatos praticados por policiais

Em 2013, a então ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH), Maria do Rosário, pediu a federalização das investigações de crimes contra pessoas em situação de rua em Goiás. Na ocasião, havia mais de 40 pessoas desaparecidas após permanecerem sob guarda ou em contato com a polícia daquele Estado. Entre esses casos, o de um morador de rua que havia sido executado por um policial militar suspeito também de matar moradores de rua em 2008. “O que nos chama a atenção é que um policial, identificado como executor, continua na ativa, nas ruas e, em 2012, mata outra pessoa”, disse à imprensa, na ocasião, a ministra Maria do Rosário.

“Havia suspeita de um grupo de extermínio atuando na região”, observou Carlos Ricardo, coordenador da Coordenação Geral dos Direitos da População em Situação de Rua e do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da SDH. “O pedido de federalização não foi acatado, mas houve a recomendação de celeridade e acompanhamento do Conselho Nacional de Justiça. Houve a punição do policial envolvido em um dos casos. Consideramos uma vitória”, explicou Ricardo.

A federalização dos crimes contra os direitos humanos está prevista na Emenda Constitucional 45/2004. Também chamada de Incidente de Deslocamento de Competência (IDC), consiste na possibilidade de deslocamento de competência da Justiça comum para a Justiça Federal, nas hipóteses em que ficar configurada grave violação de direitos humanos. O incidente pode ser suscitado pelo Procurador-Geral da República perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou do processo. É uma medida de caráter excepcional e só poderá ser admitida em casos de extrema gravidade, quando houver a demonstração concreta do risco de não cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais dos quais o Brasil seja parte.

Marlene veio de Cuiabá, 2.200 quilômetros de porto Alegre, e foi morar nas ruas

Foto: Igor Sperotto

Marlene veio de Cuiabá, 2.200 quilômetros de Porto Alegre, e foi morar nas ruas

Foto: Igor Sperotto

De Cuiabá para as ruas de Porto Alegre

O manto da invisibilidade caiu sobre Marlene de Arruda Cunha Sene, 37 anos, quando ela botou os pés na Rodoviária de Porto Alegre, em 22 de março de 2015. Três dias e toda a poupança foram gastos na viagem de 2.200 quilômetros. Ela veio de Cuiabá, no Mato Grosso, atraída por uma oferta de emprego feita por uma conhecida nas redes sociais. Deixou os filhos de sete e 19 anos com o ex-marido na capital mato-grossense onde nasceu e cresceu para se descobrir abandonada no sul do país. Passou dois dias dormindo nos bancos da Rodoviária até se convencer de que o sonho de mudança de vida havia desmoronado. Um morador de rua lhe indicou o serviço de informações do local, que indicou a Prefeitura, que indicou finalmente o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), que indicou o albergue Dias da Cruz, onde permanece até hoje. Assim como ela, outra Marlene, na década de 1990, emprestou seu nome a um abrigo municipal da capital gaúcha depois de morrer de frio, entrou para as estatísticas sob o nome genérico de “em situação de rua”.

Marlene foi prontamente acolhida na Escola Municipal Porto Alegre (EPA). “Quando me dei conta de que ia ficar na rua fiquei tão transtornada, que parece que perdi o chão”, contou, sentada num degrau da EPA, antes da aula. “Foi como se abrisse um buraco. Só que a gente acorda e se dá conta de que, se não tiver iniciativa, fica parada ali. Quero trabalhar”, afirmou. Está concluindo o oitavo ano escolar. Na EPA, encontrou apoio para, enquanto não encontra trabalho nas buscas durante as manhãs, manter os sonhos e a esperança. Estuda, toma banho, faz lanche, lava roupa, almoça, participa de oficinas de cerâmica.

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