GERAL

“’Que horas ela volta?’ coloca o bode na sala e cutuca todo mundo”

Entrevista da coordenadora nacional do Fórum Brasileiro de Economia Solidária, Francisca Maria da Silva
Marco Weissheimer / Publicado em 23 de janeiro de 2016
"A maioria das mulheres acaba voltando a viver com os agressores, alegando que os filhos vão passar fome e coisas do gênero"

Foto: Igor Sperotto

“A maioria das mulheres acaba voltando a viver com os agressores, alegando que os filhos vão passar fome e coisas do gênero”

Foto: Igor Sperotto

Um dos eventos mais concorridos do Fórum Social Temático Porto Alegre reuniu, na tarde de sexta-feira, 22, no Teatro Bruno Kiefer, da Casa de Cultura Mario Quintana, a ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello; a diretora do filme Que horas ela volta?, Anna Muylaert; a presidente da União Nacional de Estudantes (UNE), Carina Vitral; e a coordenadora nacional do Fórum Brasileiro de Economia Solidária, Francisca Maria da Silva (Xica da Silva). Após a exibição do filme, ocorreu um debate carregado de emoção. A presença de Xica da Silva foi acertada de última hora, pois a pessoa que iria fazer a mediação do encontro não pôde viajar a Porto Alegre. Pega de surpresa pela agenda repentina, ela acabou tendo uma experiência intensa ao ver, no filme, cenas muito familiares em sua vida. Xica da Silva começou a trabalhar como babá aos 12 anos de idade, sofreu assédio sexual do patrão, foi vítima de violência doméstica e cárcere privado durante dez anos por parte de seu ex-companheiro, mas deu a volta por cima, separou-se, viveu um período em um abrigo e hoje é chefe de cozinha formada pelo Serviço Nacional do Comércio (Senac), empreendedora social e militante da economia solidária. Participante do Fórum Social Mundial desde 2001, Xica da Silva concedeu entrevista ao Extra Classe e falou um pouco sobre sua experiência de vida e sobre o significado do filme de Anna Muylaert para milhares de mulheres trabalhadoras domésticas brasileiras.

Extra Classe – Na tua trajetória de vida, há muitas histórias de agressões e desigualdades. Como você acabou superando essas histórias e se tornando uma militante da economia solidária e uma empreendedora social?
Xica da Silva
– Depois de passar por um abrigo após ter denunciado violência doméstica por nove vezes, a Coordenadoria da Mulher de Belo Horizonte fez comigo um trabalho de reintegração. Eu tinha pouco mais de 32 anos nesta época, pesava 101 quilos e era deprimida. Esse trabalho de reintegração dava diretrizes para a nossa sobrevivência. A maioria das mulheres acaba voltando a viver com os agressores, alegando que os filhos vão passar fome e coisas do gênero. A proposta da coordenadoria era obter um trabalho para essas mulheres para elas não terem essa desculpa para voltar a viver com o agressor. Neste trabalho, além do grupo de convivência, nós montamos um grupo de geração de renda. Foi por aí que eu cheguei à economia solidária.

"É um filme que provoca reflexões de vários ângulos e para o bem. Para mim, alguém de ensino fundamental incompleto, formada na faculdade da vida, mostra como as coisas são e a realidade que está caminhando para o futuro"

Foto: Igor Sperotto

“É um filme que provoca reflexões de vários ângulos e para o bem. Para mim, alguém de ensino fundamental incompleto, formada na faculdade da vida, mostra como as coisas são e a realidade que está caminhando para o futuro”

Foto: Igor Sperotto

EC – Como foram essas primeiras experiências de geração de renda?
Xica –
Foi complicado. A maioria de nós não tinha muita formação, cursos, essas coisas. Fomos indo pela aptidão. Nós não tínhamos produtos que pudéssemos guardar. Era tudo meio que in natura. Eu fui fazer pães, biscoitos e coisas deste tipo. Não tinha como guardar. Se não vendesse, tinha que comer ou então dar para alguém. Mas a dificuldade foi não estar no mercado, depois de dez anos sem poder conversar com as pessoas, sem poder ter liberdade. Voltar para a sociedade foi mais difícil do que adquirir a renda.

EC – O que ocorreu exatamente neste período?
Xica –
Eu fui mantida em cárcere privado durante dez anos pelo meu ex-companheiro. Não tinha o direito de ir e vir. Eu só saía de casa quando saía junto com ele. Não podia ter amigos, não podia ter liberdade de ter uma agenda, de ter um telefone meu. Eu não sabia nem onde tinha um mercado perto da minha casa. Eu sabia algumas coisas pelo que via na televisão, mas não tinha intimidade com as pessoas no dia a dia. Então, para mim, obter renda foi mais fácil. Logo depois que eu me separei, consegui um trabalho no PET (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil). Em seguida, comecei a receber o Bolsa Família. Isso ajudou. Mas, apesar de ter me separado entre 2000 e 2001, eu só saí mesmo da violência em 2003, pois até este ano ele ainda me perseguia. Tenho três filhas. Uma de 23, uma de 25 e outra de 26. Quando eu me separei, a minha filha mais velha estava com 11. Quando eu denunciava e voltava, o espancamento era maior. A última violência que ele cometeu comigo me fez ir para o abrigo. Eu retornei para casa e ele queria que eu retirasse a queixa, como ocorreu em todas as outras vezes. Como eu não retirei, ele jogou o carro na ponte da lagoa da Pampulha, comigo e as minhas filhas dentro. Eu cortei o rosto todo e furei o olho direito, o que me obrigou a colocar uma prótese. Foi aí que eu acordei para me separar de verdade. Então, nesses dez anos, além de não poder sair, eu ainda era espancada.

 EC – Antes disso, você trabalhou durante muitos anos como babá e empregada doméstica e sofreu outros tipos de agressões. Quais foram?
Xica –
Eu nasci na roça, com nove irmãos. Meu pai era meeiro na fazenda dos patrões. Eu fui para a cidade, em Ipanema, zona rural de Minas Gerais. Em 1972, meu pai resolveu se mudar para Ipatinga, no Vale do Aço. Meu pai e meus irmãos foram trabalhar em empreiteiras, minha mãe foi lavar roupa para os outros e nós, as três moças, fomos trabalhar em casa de família. Eu era a mais nova e o que podia fazer, com 12, 13 anos, era ser babá. Eu fui trabalhar de babá numa casa, onde sofri assédio do patrão. Saí dali, estudei um pouco até os 17 anos. Consegui fazer até o sexto ano do ensino fundamental. Daí fui para Belo Horizonte trabalhar em casa de família. Sofri muito. O que eu aprendi foi em casa de família, principalmente na área da cozinha, que é uma área que eu gosto muito. Quando eu cheguei numa casa, num bairro nobre de Belo Horizonte, me colocaram para limpar o chão e as paredes que estavam cheias de sujeira. Trabalhei o dia inteiro e fui comer só às duas horas da tarde. Depois ainda fui limpar um banheiro. O trabalho ficou tão bom que ela me ofereceu trabalho para ser ajudante de arrumadeira. Eu aceitei e até os 24 anos meu trabalho foi em casa de família. Houve uma família, como aquela em que a Val trabalha no filme (Que horas ela volta?), que me considerava como parte dela. Aos domingos eu saía com eles para ajudar. Eu era da família, mas tinha meus copos e pratos separados. O quarto era na área da cozinha. A minha televisão era aquela quadrada, de madeira, preto e branco. Então, tinha toda essa desigualdade dentro da casa, mas diziam que eu era considerada da família.

Xica da Silva

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto


“Eu era da família, mas tinha meus copos e pratos separados. O quarto era na área da cozinha. A minha televisão era aquela quadrada, de madeira, preto e branco… mas diziam que eu era parte da família.”

EC – Na abertura do debate sobre o filme Que horas ela volta?, você relatou, emocionada, um episódio com o qual se identificou muito. Como foi isso?
Xica –
A minha patroa fez aniversário e eu dei para ela de presente um jogo de doze copos, lindo. Paguei um dinheirão na época. Ela disse que iríamos guardar os copos para um dia especial. Eu levei os copos para a cozinha, mas eles acabaram sendo usados pelas empregadas da casa mesmo. Eu olhava para aqueles copos com tanta tristeza, pois tinha dado de presente para ela usar quando tivesse convidados. Eles não usavam os copos nem para tomar água na cozinha. Mas, diferente do filme, eu não ficava escutando atrás da porta, não (risos…).

Eu tenho uma marca na minha perna por causa de um episódio que aconteceu com a filha da patroa. Eu estava em cima de uma cadeira limpando um forno, quando a mãe foi bater nela com um cinto e acabou atingindo a minha perna, que ficou com uma marca tipo um “v” causada pela fivela. A menina corria para o meu lado para se proteger e não apanhar da mãe.

EC – Como você definiria o filme?
Xica –
O filme coloca o bode na sala e cutuca todo mundo. E aí não dá pra ficar sentado, simplesmente assistindo. Ele incomoda, mas é um incomodamento bom. Eu mudei a minha maneira de pensar depois que eu vi o filme. E, a cada vez que vejo de novo, descubro uma nova abordagem, uma nova reflexão. Nós vimos no debate que as pessoas se identificam com os personagens. Uns disseram que eram o Fabinho, outros que eram a Jessica e assim por diante. É um filme que provoca reflexões de vários ângulos e para o bem. Para mim, alguém de ensino fundamental incompleto, formada na faculdade da vida, é um filme que mostra como as coisas são e a realidade que está caminhando para o futuro.

EC – Hoje você é chefe de cozinha e uma empreendedora social. Como é esse trabalho?
Xica –
As únicas coisas boas que ficaram dos quinze anos do meu casamento foram as minhas três filhas e um curso de chefe de cozinha no Senac que ele pagou. Sou chefe de cozinha diplomada. Nós montamos um grupo de mulheres, que hoje trabalha tanto para o governo federal, quanto para o governo estadual e empresas privadas, montando cafés, coofe-breaks, almoços, jantares, casamentos, festas de 15 anos. Eu coordeno esse grupo. Nós temos três pessoas empregadas diretamente na microempresa e, indiretamente, outras 12, além de uma rede de alimentação que tem 15 grupos associados. Cada grupo tem, em média, cinco pessoas. Quando temos um evento pequeno, o buffet faz. Quando o evento é grande, a gente convida a rede para trabalhar junto. A maioria desse grupo é formada por mulheres.

EC – Você já tinha participado do Fórum Social Mundial antes?
Xica –
Participei de todos, desde o primeiro. Só não fui ao Fórum da Venezuela. Eu me tornei uma mulher verdadeira em 2001, sentada à beira do rio Guaíba, ajudando a coletar assinaturas para a criação da Lei Maria da Penha. A partir dali, eu me engajei mesmo no movimento social. O Fórum Social Mundial muda paradigmas e vidas.

SINOPSE

Jéssica entrou na piscina

A atriz Regina Casé na pele da babá que mora na casa dos patrões e catalisa as diferenças de classes

Globo Filmes/ Divulgação

A atriz Regina Casé vive a babá Val, que mora na casa dos patrões e catalisa as diferenças de classes, segregada no espaço entre o quarto de empregada e a cozinha

Globo Filmes/ Divulgação

No filme Que Horas Ela Volta?, Regina Casé faz a babá que permanece morando na casa dos patrões mesmo depois que o menino que ela ajudou a criar se torna um adolescente. Todos enfatizam que a empregada é parte da família, mas ela não senta à mesa com a família e fica segregada ao espaço entre o seu quarto de empregada e a cozinha. Quando a filha dela, Jéssica vem do interior para morar com a mãe, ocorre o rompimento. O preconceito de classes, a desigualdade social, o machismo, o racismo emergem nas relações entre patrões, filhos dos patrões, empregada e filha da empregada, pois tanto para a patroa quanto para a própria babá, Jéssica “não sabe seu lugar”. “O Brasil está no momento em que a Jessica caiu na piscina e a dona Bárbara esta lá berrando: sai daí! Mas acho que não tem mais volta. Uma vez que se adquire consciência de algo, não é possível retornar. Não se trata de dinheiro, mas sim de consciência. Esse filme fala de pequenas coisas que, por sua vez, falam de grandes coisas. E o Brasil ainda tem muitas coisas do passado que precisam ser atualizadas”, resumiu durante o debate a cineasta Anna Muylaert.

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