MOVIMENTO

Reforma Trabalhista abalada pela Lava Jato

Retirada de direitos é tão evidente quanto a fragilidade do discurso de garantia de mais empregos que não se sustenta com dados do IBGE e nem mesmo com indicadores do Ministério do Trabalho
Por Flavia Bemfica / Publicado em 18 de abril de 2017
Reunião ordinária para apresentação de substitutivos do tucano Rogério Marinho foi marcada por protestos nas galerias

Foto: Lucio Bernardo Jr./ Câmara dos Deputados

Reunião ordinária para apresentação de substitutivos do tucano Rogério Marinho foi marcada por protestos nas galerias

Foto: Lucio Bernardo Jr./ Câmara dos Deputados

As mobilizações para a greve geral marcada para 28 de abril e o tumulto que tomou conta de Brasília após o ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), autorizar a abertura de inquéritos contra quase uma centena de políticos, entre eles oito ministros do governo Michel Temer (PMDB), podem retardar a tramitação do projeto da reforma trabalhista. Até a semana passada, a proposta, de autoria do Executivo, apontada por Temer como prioridade, tramitava em ritmo acelerado no Congresso. Agora, apesar das declarações de lideranças governistas de que a agenda segue normalmente, a base está intimidada.

No dia 12 de abril, um dia depois de Fachin autorizar os inquéritos, o relator do projeto na comissão especial que analisa a matéria, deputado Rogério Marinho (PSDB/RN), apresentou seu substitutivo. O texto altera 117 artigos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), estabelecendo que negociações entre trabalhadores e empresas se sobreponham à legislação trabalhista. Entre os itens que poderão ser negociados, contrariamente ao que determina a lei, estão a jornada de trabalho, a redução de salário e o parcelamento das férias. Em evento na Câmara Americana de Comércio Brasil-Estados Unidos (Amcham) em São Paulo, dia 12, Marinho seguiu no mesmo ritmo. Afirmou que a reforma entrará em vigor em junho, antes do recesso parlamentar. O presidente da CUT/RS, Claudir Nespolo, disse que o texto pode até ser aprovado na comissão, mas enfrentará resistências no Plenário e dificilmente passa no Senado. “A população já começou a perceber a gravidade da proposta e a base sente que está comprometendo seu futuro político. Os senadores sabem que dois terços do Senado serão renovados no ano que vem”, contrapõe o dirigente.

Marinho, relator da proposta, apresentou substitutivo que altera 117 artigos da CLT, estabelecendo que negociações entre trabalhadores e empresas se sobreponham à legislação trabalhista

Foto: Alexandre Lago/ PSDB

Marinho, relator da proposta, apresentou substitutivo que altera 117 artigos da CLT, estabelecendo que negociações entre trabalhadores e empresas se sobreponham à legislação trabalhista

Foto: Alexandre Lago/ PSDB

Amplamente criticada pelo judiciário trabalhista, a reforma carece de debate mais amplo com a sociedade, sua proposta deve ser parcialmente rejeitada e adequada em diversos aspectos, recomenda Nota Técnica do Ministério Público do Trabalho (MPT) assinada pelo procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Fleury, divulgada na segunda-feira, 17. No documento, o MPT argumenta que o projeto suprime ou reduz diversos direitos sociais, como fim das horas in itinere e da integração de prêmios e abonos à remuneração; reduz o valor de indenizações por danos morais, proporcionalmente ao valor do salário contratual do empregado ofendido, enfraquece a atuação sindical, retirando dos sindicatos as fontes de financiamento, com o fim do imposto sindical e a proibição de previsão de contribuições em norma coletiva, sem prévia anuência expressa e individual dos trabalhadores, independente da filiação ao sindicato (regra mais rígida que a Súmula 666 do STF). “A aprovação de medidas que alteram substancialmente a legislação trabalhista sem que outras perspectivas sejam materialmente consideradas, em nada contribui para a construção de um ambiente de pacificação social no país. Nesse sentido, é importante recordar do preâmbulo da Constituição da OIT, quando afirma que “a paz para ser universal e duradoura deve assentar sobre a justiça social”, alerta Fleury.

Para Nespolo, da CUT/RS, reforma trabalhista enfrenta resistência em todos os setores e não deve passar no Senado

Foto: CUT-RS/ Divulgação

Para Nespolo, da CUT/RS, reforma trabalhista enfrenta resistência em todos os setores e não deve passar no Senado

Foto: CUT-RS/ Divulgação

É fato que o governo tem utilizado uma série de expedientes para apressar a aprovação no Congresso à revelia da aprovação ou conhecimento da sociedade, e mesmo depois de o diretor da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Peter Poschen, ter dito, no último dia 6, durante audiência na Câmara dos Deputados, que a organização espera que o Brasil siga as mais de 80 convenções da OIT ratificadas pelo país, entre elas as que estabelecem o princípio de que uma lei tem mais valor do que um acordo coletivo. Resumindo, a reforma do governo bate de frente com parte das convenções da OIT.

Nas audiências públicas e discussões promovidas pela Câmara, especialistas de diferentes áreas do ‘mundo do trabalho’ concordaram que o texto, que recebeu 850 emendas, trata de pontos importantes, como o aumento no valor das multas a empresários que descumprirem as normas trabalhistas, a elevação de garantias a trabalhadores de tempo parcial e o aumento do valor das horas extras. Mas a retirada de direitos que propõe é tão evidente quanto a fragilidade do discurso governista de garantia de mais empregos, que não encontra sustentação nos dados do IBGE ou nos do Ministério do Trabalho.

E o argumento de que a CLT, instituída em 1943, é obsoleta, prospera entre quem, por exemplo, ignora as várias centenas de mudanças que foram sendo incorporadas à Lei ao longo destes 70 anos, muitas delas na atual década.  “A CLT, ainda que imperfeita, é expressão da tentativa de garantir direitos mínimos e, ao contrário do que dizem, não é ‘velha’. Existem modelos de regulação distintos em cada país, mas o que há de comum a todos é a premissa de que a relação entre capital e trabalho é assimétrica e não pode prescindir do Estado. Um eventual desmonte da CLT nos tornará pré-modernos”, resume o professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Ufrgs e coordenador adjunto do curso de especialização em Relações de Trabalho, Fernando Coutinho Cotanda.

ARTIMANHA – O plano inicial do Executivo, que tem ampla base na Câmara, é acordar a aprovação de um requerimento de urgência em Plenário. Com ele, o prazo para vistas na comissão, que corresponde a duas sessões, e o de emendas ao substitutivo (cinco sessões) ficam dispensados, e o texto final pode ser votado nesta semana (antes do feriado de Tiradentes), conforme já haviam informado publicamente tanto o presidente da Casa, deputado Rodrigo Maia (DEM/RJ), como o presidente do colegiado, deputado Daniel Vilela (PMDB/GO), ambos aliados do governo. Sem a urgência, a comissão deve esperar o prazo de cinco sessões para se reunir.

Pressão: depois de duas megamanifestações de trabalhadores em março, intensificam-se os preparativos para a greve geral de 28 de abril

Foto: Igor Sperotto

Pressão: depois de duas megamanifestações de trabalhadores em março, intensificam-se os preparativos para a greve geral de 28 de abril

Foto: Igor Sperotto

Não é a primeira artimanha legislativa no sentido da tramitação ‘a jato’ do projeto. Em fevereiro, quando da criação da comissão especial, Maia assinou um despacho técnico permitindo a apreciação do texto de forma conclusiva por comissões. Na prática, significa que, após aprovado pela comissão, o substitutivo pode seguir direto para apreciação no Senado, sem votação no Plenário. A comissão é formada por 37 dos 513 deputados. Dos 37, apenas sete são de siglas de oposição. Depois de o PDT questionar formalmente o despacho, Maia declarou que a proposta vai a Plenário. Dificulta, mas, como é lei ordinária, pode ser aprovada por maioria simples (metade dos deputados votantes, com quórum mínimo de 257 parlamentares).

Só que uma série de fatores está a atrapalhar os planos do governo: hoje começam em todo o país os preparativos para a greve geral do dia 28 de abril; não param de surgir novos detalhes das delações dos executivos da Odebrecht; o presidente da Câmara está entre os investigados; o substitutivo de Marinho foi apresentado na véspera do feriado de Páscoa; há mais dois feriados em sequência; e a popularidade do governo despencou para 5% na última semana.

Dez mudanças da reforma trabalhista que você precisa conhecer

ACORDADO SOBRE LEGISLADO
Se aprovada a reforma, os acordos entre patrões e empregados prevalecem sobre a lei em 16 temas: jornada de trabalho, banco de horas, adesão ao Programa Seguro-Desemprego, plano de cargos, salários e funções; representante dos trabalhadores no local de trabalho; troca do dia de feriado; prorrogação de jornada em ambientes insalubres sem licença prévia das autoridades competentes do Ministério do Trabalho e intervalo intrajornada. O substitutivo* fixou 29 direitos que não podem ser reduzidos ou suprimidos por negociação: salário-mínimo, FGTS, repouso semanal remunerado, horas-extras, remuneração de férias, medidas de proteção legal de crianças e adolescentes, aposentadoria, igualdade de direitos entre trabalhadores com vínculo empregatício permanente e trabalhadores avulsos, salário-família, direito de greve e licenças maternidade e paternidade.
*O texto original não relacionava os itens, limitando-se a determinar que não podiam ser alteradas por convenção ou acordo coletivo normas de segurança e medicina do trabalho.

JORNADA DE TRABALHO
Empregados e patrões poderão negociar uma carga horária de até 12 horas por dia e uma jornada de até 48 horas por semana. Hoje, a CLT prevê uma jornada semanal máxima de 44 horas. A jornada de 12 horas poderá ser realizada desde que seguida por 36 horas de descanso.

FÉRIAS
Poderão ser divididas em até três períodos. Cada um deles não pode ser inferior a cinco dias corridos ou superior a 14 dias corridos. As férias não podem começar dois dias antes de um feriado ou fim de semana. Pela CLT, as férias podem ser divididas em até dois períodos, nenhum deles inferior a 10 dias.

CONVENÇÕES E JUSTIÇA DO TRABALHO
O substitutivo manteve o texto do Executivo, prevendo que a Justiça do Trabalho, ao examinar convenção ou acordo coletivo, balize sua atuação ‘pelo princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva’. A Justiça do Trabalho também deverá analisar exclusivamente a ‘conformidade dos elementos essenciais do negócio jurídico’. Súmulas e outros enunciados de jurisprudência editados pelo Tribunal Superior do Trabalho e pelos Tribunais Regionais do Trabalho “não poderão restringir direitos legalmente previstos e nem criar obrigações que não estejam previstas em lei”. Para os casos de flexibilização de direitos previstos em lei por negociação coletiva, as vantagens compensatórias aos trabalhadores passam a ser opcionais e não mais obrigatórias. A ausência de contrapartidas não implica em anulação da convenção. E caso a flexibilização seja anulada judicialmente, a vantagem compensatória, se existir, também será nula. Além disso, ações (individuais ou coletivas) que tenham por objetivo anular cláusulas das negociações coletivas deverão ter os sindicatos que as assinaram como ‘litisconsortes necessários’. Ou seja, eles precisam ser parte.

HOME OFFICE OU TELETRABALHO
O substitutivo cria a modalidade de contratação para o trabalho em casa, mas não estabelece qualquer regramento em relação ao número de horas. Conforme o texto, “a prestação de serviços na modalidade de teletrabalho deverá constar expressamente do contrato individual de trabalho, que especificará as atividades que serão realizadas pelo empregado”. Responsabilidades sobre aquisição e manutenção de equipamentos, infraestrutura e reembolso de despesas ao empregado deverão ser previstas em contrato escrito. O item doenças e acidentes de trabalho é abordado superficialmente. Críticos da reforma apontam que a inclusão do home office, sem maiores detalhamentos, teve o propósito de fortalecer o discurso de ‘modernidade’ da proposta.

CONTRATO POR JORNADA OU HORA
O substitutivo cria também o chamado trabalho intermitente, quando a contratação ocorre por jornadas, horas, dias ou meses, e de forma não contínua, cabendo ao empregador o pagamento das horas trabalhadas. O contrato deve ser celebrado por escrito e conter o valor da hora de serviço, que não pode ser inferior ao valor horário do salário mínimo ou àquele pago aos demais empregados que exerçam a mesma função, em contratos intermitentes ou não. Ao final de cada período de prestação de serviço, o empregado receberá, além da remuneração, férias proporcionais acrescidas de um terço; 13º proporcional e repouso semanal remunerado. O empregador deverá recolher a contribuição previdenciária e o FGTS.

MULTA POR NÃO CONTRATADOS
Pelo substitutivo, o empregador que mantiver empregado não registrado ficará sujeito a multa de R$ 3 mil por empregado, acrescido de igual valor em cada reincidência. No caso de microempresa ou empresa de pequeno porte, o valor final da multa será de R$ 800 por empregado não registrado. O texto original da reforma estipulava multa de R$ 6 mil por empregado não registrado, acrescido de igual valor em cada reincidência. No caso de microempresa ou empresa de pequeno porte, a multa prevista era de R$ 1 mil. A regra vigente estabelece multa de um salário-mínimo regional, por empregado, acrescido de igual valor em cada reincidência.

CONTRIBUIÇÃO SINDICAL
O substitutivo retira a obrigatoriedade da contribuição sindical para trabalhadores e empregadores. Atualmente descontada no contracheque uma vez ao ano, para trabalhadores sindicalizados ou não, a contribuição corresponde a um dia de trabalho, no caso dos empregados, e a um percentual do capital social da empresa, no caso dos empregadores.

HORAS EXTRAS
O substitutivo prevê duas possibilidades de jornada de trabalho em regime de tempo parcial: de 26 horas semanais ou de 30 horas semanais. A legislação atual estabelece como regime parcial o de 25 horas semanais e veda a realização de horas extras. O substitutivo mantém a proibição para os casos de 30 horas semanais, mas permite a realização de até seis horas extras semanais nas jornadas de 26 horas semanais. A hora extra terá 50% de acréscimo sobre o salário-hora normal. Também pode ser compensada até a semana seguinte a que aconteceu. Caso isso não ocorra, deve ser paga. Para o regime de trabalho normal ficou mantido o máximo de duas horas extras diárias. O texto eleva o percentual da hora extra do regime de trabalho normal dos atuais 20% para 50%.

TERCEIRIZAÇÃO
O substitutivo altera alguns pontos da Lei da Terceirização, sancionada em março. Por exemplo: fixa um prazo de 18 meses entre a demissão de um trabalhador e sua recontratação, como terceirizado, pela mesma empresa. Estabelece ainda para o terceirizado que trabalhe nas dependências da empresa as mesmas condições dos empregados diretos para alimentação em refeitórios, transporte, atendimento médico e ambulatorial e treinamento. Mas se o número de terceirizados for superior a 20% do total de empregados diretos, os serviços de alimentação e atendimento ambulatorial poderão ocorrer em outro local. Além disso, o substitutivo reforça que a terceirização pode acontecer em todas as atividades, inclusive a atividade-fim. O texto é considerado um ‘aprimoramento’ na Lei de Terceirização, que não era tão clara, e poderia permitir interpretações judiciais diversas.

Comentários