MOVIMENTO

A Lava Jato chega na Argentina

Delações da Odebrecht, corrupção e violações a direitos humanos permeiam as manifestações de protesto em busca do fim da impunidade
Por Clarinha Glock, de Buenos Aires / Publicado em 24 de maio de 2017
Combatentes que lutaram na Guerra das Malvinas fizeram uma manifestação em frente à sede da Corte Suprema de Justiça no centro Buenos Aires

Foto: Clarinha Glock

Combatentes das Malvinas protestaram em frente à sede da Corte Suprema de Justiça, em Buenos Aires com apoio de movimentos dos direitos humanos e das “Madres de Plaza de Mayo

Foto: Clarinha Glock

A Operação Lava Jato paira como uma ameaça também sobre os argentinos. Tal como ocorre no Brasil, empresários da empresa Odebrecht anunciaram que vão delatar políticos argentinos envolvidos em corrupção.  A ansiedade diante do que ocorre no Brasil e do que pode vir a acontecer na Argentina está estampada nas capas de jornais nas bancas de revistas e nos artigos na Internet, se reflete na oscilação do câmbio entre real, peso e dólar, com uma alta da moeda americana e uma baixa na cotação do real, e aparece também em conversas e comentários nas tradicionais cafeterias de Buenos Aires. Mal ouvem um sotaque brasileiro, os argentinos não tardam a fazer um ar de consternação, seguido de um “Qué situación, allá!”. O noticiário local anunciou no dia 23 de maio, que o ministro da Justiça Germán Garavano adiantou uma reunião que teria no dia 24 (hoje) com advogados da Odebrecht e informou que os representantes da empresa brasileira estariam dispostos a liberar informações em troca de um acordo similar ao que fizeram no Brasil.

Enquanto políticos e economistas argentinos tentam prever as consequências que as delações podem trazer, nas ruas a população se faz ouvir por meio de protestos diante da impunidade de uma história recente que, em sua base, está intimamente ligada aos mesmos políticos e empresas que aparecem nos meios de comunicação envolvidos em denúncias de corrupção e desvios de dinheiro. Por volta do meio dia do dia 23, combatentes que lutaram na Guerra das Malvinas fizeram uma manifestação em frente à sede da Corte Suprema de Justiça no centro da capital. Com cartazes, faixas e apoio de representantes de direitos humanos, como do grupo das “Madres de Plaza de Mayo”, foram denunciar e pedir providências sobre as torturas e mortes de companheiros que lutaram em nome do país nas Malvinas e que sofreram as mesmas técnicas de torturas por parte de oficiais que atuaram na ditadura argentina. Após a manifestação, o grupo entregou um documento ao presidente da Corte Suprema pedindo Justiça. A guerra acabou há 35 anos e há 10 anos o grupo de ex-combatentes demanda uma resposta para suas denúncias. São três, e chegaram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que dava início, no mesmo dia, ao 162º período de sessões de audiências públicas.

Movimento contra a impunidade

Ernesto Alonso, do Centro de Ex-Combatentes das Ilhas Malvinas (Cecim) La Plata

Foto: Clarinha Glock

Ernesto Alonso, do Centro de Ex-Combatentes das Ilhas Malvinas (Cecim) La Plata

Foto: Clarinha Glock

São feridas mal curadas por conta da impunidade. “Com a campanha denominada “Justiça por Malvinas”, falamos da necessidade de o Poder Judiciário investigar as graves violações aos direitos humanos cometidas pelos oficiais e suboficiais das Forças Armadas argentinas contra os soldados durante a guerra”, explicou Ernesto Alonso, do Centro de Ex-Combatentes das Ilhas Malvinas (Cecim)  La Plata. Até o momento, há mais de 120 fatos denunciados envolvendo cerca de 80 soldados. Alguns deles já morreram por questões biológicas no meio do processo. Muitos casos foram comprovados por documentos, já que em 2015 o governo autorizou a abertura de arquivos considerados antes secretos, e foi possível ter acesso a denúncias firmadas oficialmente por ex-combatentes após a guerra.

São delitos de lesa-humanidade, torturas, estaqueamento de soldados, que tiveram pés e mãos amarados sob fogo inimigo, choques elétricos, enterramentos, castigos em poços de água congelados, e de soldados que pelo fato de serem judeus foram humilhados, torturados, tendo que comer em meio a excrementos. “Todas estas aberrações se cometeram na lógica do terrorismo de Estado. Entre os militares que participaram de Malvinas e que foram processados, vamos encontrar centenas que também participaram dos Voos da Morte, da apropriação de bebês, do desaparecimento de pessoas na ditadura”, informou Alonso.

A Guerra das Malvinas aconteceu em um contexto de ditadura cívico-militar, em 1982. “É um território que segue usurpado pelas grandes potências, neste caso, o Reino Unido. Os britânicos nunca sentaram para dialogar nas Nações Unidas, porque também têm o poder de estar no Conselho de Segurança”, observou Mario Volpe, presidente do Centro de Ex-Combatentes Ilhas Malvinas La Plata. “Não buscamos nenhuma questão econômica, somente uma reparação para os soldados que lutaram pela soberania das Malvinas”, enfatizou Volpe.

“Parece mentira que já leva 10 anos o julgamento”, afirmou Lídia Estela Mercedes Miy Uranga, conhecida como Taty Almeida

Foto: Clarinha Glock

“Parece mentira que já leva 10 anos o julgamento”, afirmou Lídia Estela Mercedes Miy Uranga, conhecida como Taty Almeida

Foto: Clarinha Glock

“Parece mentira que já leva 10 anos o julgamento”, afirmou Lídia Estela Mercedes Miy Uranga, conhecida como Taty Almeida, 87 anos a serem comemorados em 28 de junho, integrante da Linha Fundadora das Madres de Plaza de Mayo. Taty esteve na manifestação apoiando o movimento dos ex-combatentes. “Em 30 de abril deste ano as Madres completaram 40 anos desde que começamos a nos agrupar. E é muito triste ter de continuar a fazer estas denúncias”, completou. Lamentou também como o governo atual continua a violar os direitos humanos: “deixando tanta gente sem trabalho, reprimindo, mantendo presos políticos em um governo constitucional.

Para Ana Maria Careaga, 56 anos, que foi sequestrada pelos militares argentinos quando estava grávida, aos 16 anos de idade, e hoje é professora,   psicóloga e ativista de movimentos de direitos humanos, a guerra das Malvinas “foi uma tentativa do governo argentino de tentar reverter as condições sociais e econômicas que vivia o país naquele momento”. Tentar apagar as evidencias dos desaparecimentos forçados de pessoas era impossível, porque havia um movimento internacional de denúncia sobre o que estava acontecendo na Argentina, então se necessitava de um movimento de fora, forte, para reverter essa situação, explicou.

Ana lembrou que a metodologia do sequestro, da tortura, e dos desaparecimentos não foi um fato isolado e casual. E seus efeitos não atingiram somente as vítimas. “O que se perseguia, com o chamado processo de reorganização nacional, era justamente semear o terror, romper os laços sociais solidários, e fazer crer que poderia chegar a qualquer pessoa. Tudo isso para criar as condições de implementação de modelos econômicos neoliberais que iriam gerar imediatamente e depois, em outros governos, um processo acelerado de concentração econômica em benefício de muitos poucos e em detrimento da imensa maioria da população”.

Ana Maria Careaga, 56 anos, que foi sequestrada pelos militares argentinos quando estava grávida, aos 16 anos de idade

Foto: Clarinha Glock

Ana Maria Careaga, 56 anos, foi sequestrada pelos militares quando estava grávida, aos 16 anos

Foto: Clarinha Glock

Ana é filha de refugiados políticos que haviam fugido do Paraguai para a Argentina. Sua mãe, Esther Ballestrino de Careaga, foi uma das fundadoras do movimento feminista no Paraguai. Na Argentina, Esther empenhou-se na busca do cunhado de Ana, que está desaparecido até hoje. Esther, com outras mães, percorria presídios, delegacias, quartéis e ministérios em busca de informações dos desaparecidos. Foi uma das precursoras das Madres de Plaza de Mayo.

Esther foi sequestrada. Seu corpo apareceu no final de 1977 e foi identificado somente em 2005, junto com os restos mortais de outras quatro pessoas: Azucena Villaflor de Devicenti e María Eugenia Ponce de Bianco – outras Madres de Plaza de Mayo -, a religiosa francesa Léonie Duquet e a militante de direitos humanos Angela Auad. “O estado de seus ossos era uma prova da metodologia dos chamados Voos da Morte. Foram condenados vários repressores. Decidimos semear os restos de Ester, minha mãe, na última terra livre que seus pés pisaram, junto com os restos das demais Madres”, contou Ana. A família escreveu na pedra, como epitáfio, um texto de uma carta que o pai de Ana havia escrito a sua mãe, que dizia: “ Hoje, em poder de um inimigo cruel e inescrupuloso, estás pagando tudo isso. Porque este mundo não foi ainda desenhado para ser feliz o homem e está incapacitado para suportar a grandeza das almas puras”. Para Ana, é exatamente disso que se trata nesse momento: “O pior da condição humana está em jogo, e com a miséria planificada – gente que não tem acesso a moradia, saúde, educação, a uma vida digna”.

Alonso concorda. “Vemos um retrocesso nas políticas de Memória, Verdade e Justiça e observamos o aporte do negacionismo, mas o povo argentino disse recentemente “Nunca Mais” na Praça de Maio”, salientou. Ele se refere à grande manifestação realizada em 10 de maio nas ruas de Buenos Aires que conseguiu fazer reverter uma decisão da Corte Suprema: a liberdade de Luis Muiña, 61 anos. O repressor havia sido condenado em 2011 a 13 anos de prisão por crimes contra a humanidade, durante a ditadura na Argentina, por sequestro e tortura de cinco pessoas. Usando a chamada lei “2×1”, a Corte reduziu a pena de Muiña praticamente pela metade baseada em lei que previa que para cada ano em prisão preventiva, o condenado teria uma redução de dois anos na pena. Após a manifestação das ruas, e em outros espaços públicos, como teatros, e jogos de futebol, a Corte voltou atrás na decisão.

Audiências públicas sobre violação de direitos

Lava Jato chega na Argentina

Foto: Clarinha Glock

Foto: Clarinha Glock

A CIDH deu início hoje, em Buenos Aires, ao 162º período de sessões de audiências públicas. Elas ocorrerão até 26 de maio. Durante as sessões, serão ouvidos relatos sobre a violação a direitos em países da América Latina. Na manhã desta terça feira foram apresentados casos que violaram a independência de operadores de Justiça no Brasil; relatos de violação de direitos humanos em prisões e nas políticas sobre drogas; e mudanças de leis sobre povos indígenas e quilombolas. Amanhã serão analisadas a proposta da Escola Sem Partido, no Brasil, e as ameaças de morte a defensores de direitos humanos por parte de um grupo de militares no Uruguai. Entre os ameaçados está o gaúcho Jair Krischke, do Movimento de Justiça e Direitos Humanos com sede em Porto Alegre (RS).

Links relacionados:

Operação Condor

Madres de Plaza de Mayo

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