MOVIMENTO

A corrosão do direito

Aprovada em tempo recorde e contra a vontade da maioria da população e de operadores do Direito, reforma trabalhista terá efeito perverso em médio prazo
Por Flávio Ilha / Publicado em 20 de julho de 2017
A mais perversa das ações do governo pós-golpe pune os trabalhadores ao aniquilar a garantia de equilíbrio legal entre capital e trabalho

Foto: MPTSP/ Divulgação

A mais perversa das ações do governo pós-golpe pune os trabalhadores ao aniquilar a garantia de equilíbrio legal entre capital e trabalho

Foto: MPTSP/ Divulgação

Da segunda votação na Câmara, na madrugada de 27 de abril, até a sanção presidencial e consequente publicação no Diário Oficial da União foram apenas dois meses e meio. Nesse intervalo, houve duas tentativas de greve geral, atos públicos, manifestações populares reprimidas com violência, audiências públicas, pareceres contrários de autoridades no assunto. Nada, nem ninguém, foi capaz de demover o Congresso de avançar na reforma das leis trabalhistas, proposta no final do ano passado pelo presidente Michel Temer (PMDB) e sancionada por ele no dia 13 de julho, numa cerimônia que contou com a chocante presença do presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Ives Gandra Martins Filho. Gandra destacou a “coragem, perseverança e visão de futuro” de Temer em relação às mudanças, que alteram mais de cem itens da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) – garantia de equilíbrio legal entre capital e trabalho que foi uma das principais heranças deixadas por Getúlio Vargas.

As críticas ao pacotão, um dos principais projetos do grupo de sustentação ao presidente, vieram de todos os setores relacionados a mediar os conflitos, crescentes, entre capital e trabalho. Por exemplo: a Organização Internacional do Trabalho (OIT), órgão vinculado à ONU, denunciou que o texto viola pelo menos seis convenções – a 29, a 87, a 98, a 103, a 105 e a 154 – das quais o Brasil é signatário, atacando itens como a prevalência dos direitos individuais sobre os coletivos, a precarização dos contratos e a adoção do trabalho intermitente, em que o trabalhador perde o controle sobre sua jornada e também sobre o salário mensal.

Para Luciane Toss, da Abrat, a reforma desregulamenta o contrato, desconstrói a ideia de proteção e impede a intervenção do Estado e visa a criar uma massa de trabalho disponível e a baixo custo

Foto: Abrat/ Divulgação

Para Luciane Toss, da Abrat, a reforma desregulamenta o contrato, desconstrói a ideia de proteção e impede a intervenção do Estado e visa a criar uma massa de trabalho disponível e a baixo custo

Foto: Abrat/ Divulgação

“No direito do trabalho, já havíamos superado essa ideia de que o trabalhador tem autonomia contratual. Não tem. O princípio da proteção visa garantir o que definimos como trabalho decente, que é o mínimo para manter a dignidade. Vários dispositivos legais impediam que o empregador avançasse sobre os termos do contrato de trabalho, só que a reforma desregulamenta esse contrato, desconstrói a ideia de proteção e impede a intervenção do Estado. O objetivo é claro: criar uma grande massa de trabalho disponível e a baixo custo”, avança a professora Luciane Toss, que representa a Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas (Abrat). Para a advogada, o Brasil pode se transformar em médio prazo num país exportador de mão de obra – a exemplo do que ocorre com a migração da manufatura de produtos em mercados como Vietnan, Camboja e Laos.

Luciane também alertou para as inúmeras inconstitucionalidades da reforma, como a restrição do acesso à justiça e a desconstrução do princípio da proteção. “A imposição de custas processuais aos trabalhadores e a limitação dos valores de indenização, remetendo a judicialização para a legislação civil, são um claro instrumento de restrição. Por outro lado, o princípio da proteção, gênese do direito do trabalho, é afastado, prevalecendo um regulamento, uma espécie de contrato empresarial que nunca poderá ser considerado direito do trabalho”, criticou a professora.

“O que gera empregos é o crescimento da economia, e não a flexibilização das leis trabalhistas”, critica o procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Fleury

Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil

“O que gera empregos é o crescimento da economia, e não a flexibilização das leis trabalhistas”, critica o procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Fleury

Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil

O procurador-geral do Trabalho (PGT), Ronaldo Fleury, por sua vez, afirmou durante audiência pública realizada em junho na Câmara dos Deputados que as mudanças na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) não vão gerar empregos e tampouco crescimento econômico. Fleury apresentou estudos comprovando que as mudanças propostas vão, ao contrário, precarizar as relações de trabalho, com “efeitos perversos” em médio e longo prazos – as medidas entram em vigor em janeiro de 2018, 120 dias após a sanção. “O que gera empregos é o crescimento da economia, e não a flexibilização das leis trabalhistas”, disse o especialista.

É um mantra que vem sendo repetido pelos especialistas em direito do trabalho desde que a reforma foi aprovada em segundo turno no Senado, no dia 11 de julho. Dois dias depois, Temer sancionava a medida. A desembargadora Beatriz Renck, presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT4), também é crítica em relação às medidas aprovadas pelo Senado e que já viraram lei. Segundo ela, a reforma suprime garantias a um trabalho digno e representa mais retrocesso do que modernidade. Renck classificou as medidas como “muito negativas” e criticou também a velocidade da aprovação pelo Congresso. “Uma iniciativa que alterou mais de 100 artigos da CLT, na maior mudança da legislação trabalhista desde 1943, não poderia ser votada de forma tão apressada, sem discussão com a sociedade”, disse.

A desembargadora Beatriz Renck, presidente do TRT4, criticou a aprovação de uma reforma que suprime garantias a um trabalho digno sem prévia discussão com a sociedade

Foto: Inácio do Canto/ TRT4/ Divulgação

Beatriz Renck, presidente do TRT4, criticou a aprovação de uma reforma que suprime garantias a um trabalho digno sem prévia discussão com a sociedade

Foto: Inácio do Canto/ TRT4/ Divulgação

“O pacote alterou normas de processo do trabalho e dificultará o acesso dos trabalhadores à Justiça. Também criou obstáculos à responsabilização das empresas que não cumprem com as regras trabalhistas, avançou na relativização dos direitos, permitindo inclusive a negociação direta entre patrão e empregado, e tarifou o dano moral do trabalhador, atingindo aqueles que adoecem ou se acidentam no trabalho ao instituir diferentes categorias de cidadãos. Além disso, permitiu o trabalho em jornadas mais extensas, potencializando a ocorrência de acidentes e doenças do trabalho”, criticou a desembargadora.

A juíza do Trabalho Valdete Souto Severo, por sua vez, salientou o caráter “concentrador” da reforma que, segundo ela, vai beneficiar grandes empreendedores em detrimento dos pequenos negócios. “Uma das características do Direito do Trabalho é a de permitir uma concorrência menos desleal, para que também pequenos empreendedores sobrevivam na lógica do capital. A retirada de direitos sociais, nesse sentido, beneficiará apenas grandes empreendimentos, que não dependem do mercado interno”, avaliou.

Práticas admitidas pela reforma foram abolidas no século 19 porque eram nocivas até para o capital, repara a juíza Valdete Severo

Foto: Divulgação

Práticas admitidas pela reforma foram abolidas no século 19 porque eram nocivas até para o capital, repara a juíza Valdete Severo

Foto: Divulgação

A magistrada também lamentou que a reforma provoque o que chamou de “perda do efeito simbólico” da Justiça do Trabalho nas relações sociais. “Nossa realidade, feita já de tanta miséria e violência, será agravada. Não há razão lógica ou empírica que nos permita acreditar que aumento na jornada e supressão de direitos poderá gerar novos postos de trabalho. A terceirização, assim como a remuneração por metas e a ausência de proteção contra a demissão contidas nesse pacote, eram práticas do século 19. Foram abolidas porque eram nocivas, inclusive para o próprio capital”, ressalvou.

Em artigo, o juiz Souto Maior (foto), do TRT15, acusou o presidente do TST, Ives Gandra Martins Filho, de rifar direitos fundamentais e a Justiça do Trabalho ao defender a reforma

Foto: Denis Simas/ TRT15/ Divulgação

Em artigo, o juiz Souto Maior (foto), do TRT15, acusou o presidente do TST, Ives Gandra Martins Filho, de rifar direitos fundamentais e a Justiça do Trabalho ao defender a reforma

Foto: Denis Simas/ TRT15/ Divulgação

Devido à sua posição pública contra a reforma das leis trabalhistas, o presidente do TST ingressou com pedido de reclamações disciplinares contra a magistrada e contra o juiz Jorge Luis Souto Maior, da 15ª Região, por um artigo publicado em conjunto na página jurídica Justificando. No artigo, Gandra é acusado de “rifar” direitos fundamentais e também a Justiça do Trabalho ao se mostrar favorável à reforma. Mesmo contra a sugestão de arquivamento pelo TRT4, a Corregedoria Nacional de Justiça decidiu acolher a reclamação e abriu procedimento de Reclamação Disciplinar contra os juízes.

Em nota, a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra) denunciou a tentativa de censurar os juízes e classificou o procedimento administrativo como “inadmissível” diante dos preceitos constitucionais. “[Os signatários] registram a sua apreensão quanto ao possível manejo inapropriado de instrumentos correicionais, originariamente voltados à garantia do jurisdicionado, da moralidade pública e do devido processo legal, para o cerceamento das garantias constitucionais das liberdades de expressão e de opinião, legitimamente exercidas por juízes do Trabalho, ou de qualquer outra competência, em seus artigos, manifestos e ensaios”, diz a nota. E acrescenta: “As subscritoras registram que seguirão velando, vigilante e intransigentemente, pela defesa das prerrogativas dos magistrados do Trabalho e, antes disso, pelas suas liberdades e garantias constitucionais, a bem da democracia e do estado de direito”.

PRINCIPAIS PONTOS DO PACOTÃO TRABALHISTA

Aprovada no Senado no dia 11 de julho e sancionada no dia 13 pelo presidente Temer, a reforma trabalhista passa a vigorar em 120 dias após a sanção, ou seja, em novembro deste ano. Confira a seguir as principais alterações na CLT:

 Jornada de trabalho
A jornada de trabalho atual é limitada a 8 horas diárias, 44 horas semanais e 220 horas mensais, podendo haver até 2 horas extras por dia. Com a mudança, pode ser de até 12 horas com 36 horas de descanso, respeitando o limite de 44 horas semanais.

Alimentação/descanso
O trabalhador que exerce a jornada padrão de 8 horas diárias tem direito a no mínimo uma hora e a no máximo duas horas de intervalo para repouso ou alimentação. A partir da entrada em vigor da nova lei, o intervalo poderá ser negociado desde que não baixe de 30 minutos.

Plano de cargos e salários
Poderá ser negociado entre patrões e trabalhadores sem necessidade de homologação nem registro em contrato, podendo ser mudado constantemente. 

Negociação
Pela regra atual, convenções e acordos coletivos podem estabelecer condições de trabalho diferentes das previstas na legislação apenas se conferirem ao trabalhador um patamar superior ao que estiver previsto na lei. Com as novas regras, convenções e acordos coletivos poderão prevalecer sobre a legislação, inclusive em cláusulas desfavoráveis aos trabalhadores. Em negociações sobre redução de salários ou de jornada, por exemplo, deverá haver cláusula prevendo a proteção dos empregados contra demissão durante o prazo de vigência do acordo. Esses acordos não precisarão prever contrapartidas para item negociado.

Férias
As férias de 30 dias podem ser fracionadas em até dois períodos, sendo que um deles não pode ser inferior a 10 dias. Há possibilidade de um terço do período ser pago em forma de abono. Pela nova regra, poderão ser fracionadas em até três períodos, mediante negociação, desde que um dos períodos seja de pelo menos 15 dias.

Gravidez
Mulheres grávidas ou lactantes estão proibidas de trabalhar em lugares com condições insalubres. Não há limite de tempo para avisar a empresa sobre a gravidez. Fica permitido, com a nova lei, o trabalho de mulheres grávidas em ambientes considerados insalubres, desde que a empresa apresente atestado médico que garanta que não há risco ao bebê nem à mãe. Mulheres demitidas têm até 30 dias para informar a empresa sobre a gravidez.

Demissão
Quando o trabalhador pede demissão ou é demitido por justa causa, ele não tem direito à multa de 40% sobre o saldo do FGTS nem à retirada do fundo. Em relação ao aviso prévio, a empresa pode avisar o trabalhador sobre a demissão com 30 dias de antecedência ou pagar o salário referente ao mês sem que o funcionário precise trabalhar. A partir de agora, o contrato de trabalho poderá ser extinto de comum acordo, com pagamento de metade do aviso prévio e metade da multa de 40% sobre o saldo do FGTS. O empregado poderá ainda movimentar até 80% do valor depositado pela empresa na conta do FGTS, mas não terá direito ao seguro-desemprego.

Rescisão contratual
A homologação da rescisão contratual, pela CLT, deve ser feita em sindicatos. Agora, a homologação poderá ser feita na própria empresa, desde que na presença dos advogados do empregador e do funcionário – que pode ter assistência do sindicato.

Trabalho intermitente (por período)
Criada pela nova legislação, essa modalidade prevê que o trabalhador poderá ser pago por período trabalhado, recebendo pelas horas ou pela diária. Haverá direito a férias, FGTS, previdência e 13º salário proporcionais. No contrato deverá estar estabelecido o valor da hora de trabalho, que não pode ser inferior ao valor do salário mínimo por hora ou à remuneração dos demais empregados que exerçam a mesma função. O empregado deverá ser convocado com, no mínimo, três dias corridos de antecedência. No período de inatividade, pode prestar serviços a outros contratantes.

Representação sindical
Pela nova regra, os trabalhadores poderão escolher três funcionários que os representarão em empresas com no mínimo 200 funcionários na negociação com os patrões. Os representantes não precisam ser sindicalizados. Os sindicatos continuarão atuando apenas nos acordos e nas convenções coletivas.

Contribuição sindical
A contribuição é obrigatória. O pagamento é feito uma vez ao ano, por meio do desconto equivalente a um dia de salário do trabalhador. A partir da vigência da lei, a contribuição sindical será opcional.

Terceirização
Haverá uma quarentena de 18 meses que impede a empresa de demitir o trabalhador efetivo para recontratá-lo como terceirizado. O texto prevê ainda que o terceirizado deverá ter as mesmas condições de trabalho dos efetivos, como atendimento em ambulatório, alimentação, segurança, transporte, capacitação e qualidade de equipamentos.

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