AMBIENTE

Tragédia de Mariana: decisão judicial favorece Samarco e causa indignação

Juiz federal anula processo contra responsáveis pelo rompimento da barragem de Fundão, que causou destruição e mortes de 19 pessoas em Mariana, Minas Gerais, no ano de 2015
Por Cristina Ávila, de Brasília / Publicado em 10 de agosto de 2017
Dejetos de mineração atingiram o Rio Doce, passaram por 35 municípios mineiros e três capixabas, e 680 km de rejeitos desembocaram no Oceano Atlântico

Dejetos de mineração atingiram o Rio Doce, passaram por 35 municípios mineiros e três capixabas, e 680 km de rejeitos desembocaram no Oceano Atlântico

Foto: Igor Sperotto

Indignação, escândalo, revolta, mas nenhuma surpresa. Num país que não se conforma, mas já se acostumou com notícias de múltiplas decisões judiciais esdrúxulas, a suspensão da ação que incrimina os responsáveis pela maior tragédia socioambiental brasileira – o rompimento da barragem da mineradora Samarco, em Mariana (MG) – soou como um escárnio e uma demonstração de poder de uma empresa que assumiu o papel do Estado na região.

Assinado no dia 4 de julho, mas só divulgado três dias depois, o despacho do juiz Jacques de Queiroz Fonseca, da Justiça Federal de Ponte Nova, na Zona da Mata de Minas Gerais, suspendeu o processo criminal contra os responsáveis pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, em novembro de 2015. Fonseca levou em conta uma questão burocrática, levantada pela defesa, para anular o processo: a defesa do diretor-presidente licenciado da Samarco, Ricardo Vescovi, e do diretor-geral de operações, Kleber Terra, alegou que escutas telefônicas usadas no processo teriam sido feitas de forma ilícita.

A tragédia e a impunidade

Embora previsível, considerando o poder econômico das empresas envolvidas, a determinação provocou impacto e indignação entre as comunidades atingidas pela lama da Samarco. “É o caminho para a anulação dessa e de outras 70 mil ações impetradas pelas vítimas”, prevê Gilberto Cervinski, coordenador nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), ao se referir à decisão da Justiça Federal em Minas Gerais que suspendeu o processo criminal em que são réus 22 pessoas, a Samarco Mineração S/A, responsável pela barragem, suas acionistas Vale S/A e BHP Billiton e a empresa VogBR, que assinou o laudo que atesta a estabilidade da estrutura que ruiu deixando 19 mortos, em um mar de lama que atingiu o Rio Doce, passou por 35 municípios mineiros e três capixabas, em 680 km de rejeitos que desembocaram no Oceano Atlântico.

Nas cidades atingidas, nas ruas e em reuniões de líderes comunitários que tentam encontrar soluções para os problemas, os clichês revelam a descrença generalizada: “a Justiça é cega; a cadeia é só pra pobre; não tem lei nesse país”. Na padaria, na igreja, nas margens dos rios moribundos, nos pomares destruídos, nas ruínas do extinto distrito de Bento Rodrigues, são intermináveis as perguntas sem respostas. “Impunidade. É isso que se sente quando se ouve o relato das lideranças que moram nas áreas afetadas. As pessoas têm claro que a Justiça está fazendo um movimento para o salvamento das empresas e penalização das vítimas. Todos estão vendo o que se passa no país”, compara Gilberto Cervinski.

“Não há nenhuma surpresa, essa é só mais uma decisão. O Judiciário tem tomado várias decisões ou permitido acordos que favorecem as mineradoras”, afirma Thiago Alves, coordenador estadual do MAB, morador de Barra Longa, município que teve casas, rio e áreas agricultáveis atingidas pela lama. Ele é responsável pelo acompanhamento de moradores entre Acaiaca e Sem-Peixe (MG), por onde passam os rios Gualaxo do Norte, Carmo e Doce. “Do ponto de vista político, os atingidos acham que é uma vergonha a Justiça brasileira chegar a 21 meses do crime acontecido e entregar essa resposta à sociedade, e usar argumentos extremamente frágeis para essa decisão, o que cria grande chance de anulação das investigações”, protesta Alves. Ele se refere a escutas telefônicas usadas no processo, que foram consideradas ilegais pela Justiça, e motivaram a suspensão das ações.

O absurdo ganhou voz no plenário da Câmara Federal. “Tem que ter uma ação nossa, senhor presidente, em relação à impunidade”, apelou o deputado Padre João (PT-MG), que é membro da Comissão de Direitos Humanos e Minorias. “É estarrecedora a postura da Justiça Federal”, acentuou ele ao Extra Classe. O parlamentar solicitou às Comissão Externa e Comissão de Direitos Humanos que acionem o Ministério Público Federal para recorrer à decisão judicial. “Em novembro, será o segundo aniversário desse crime, e nada foi feito pelas famílias. Nenhuma casa construída”, ressalta.

Na ação suspensa, os réus foram denunciados pelo MPF por suspeita de homicídio com dolo eventual (quando se assume o risco de matar), inundação, desabamento, lesões corporais graves e crimes ambientais em decorrência da tragédia. Mas o rompimento da barragem em Mariana provocou ainda outras 70 mil ações impetradas por vítimas nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Cerca de 55 mil são originadas em Governador Valadares.

No mesmo dia em que a suspensão da ação impetrada pelo MPF foi conhecida, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Governador Valadares convocou algumas centenas de pessoas para uma caminhada até o Fórum. O protesto teve como objetivo demonstrar à população que a suspensão na Justiça dos processos contra a Samarco representa um risco. Desde 27 de julho, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais suspendeu temporariamente todas as ações contra a mineradora, para aplicação de medida chamada de Incidente de Resolução de Demanda Repetitiva.

O presidente local da OAB, Elias Souto, considera que seja uma brecha para que todas as decisões proferidas na bacia do Rio Doce sejam tratadas como iguais. Segundo o advogado, em cada comarca há casos que se referem a prejuízos diferenciados. E por isso as soluções não podem ser massificadas, como aconteceu no Espírito Santo, onde foi estipulada uma multa de R$ 1 mil para a população atingida. Em Minas, foram realizadas ações paliativas para a compensação de prejuízos, como a transferências de famílias para casas alugadas, início de obras e outras providências que não se comparam à imensidão de danos.

Enxurrada de lama tóxica atingiu 311 mil pessoas

 Distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), atingido pelo rompimento de duas barragens de rejeitos da mineradora Samarco

Distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), atingido pelo rompimento de duas barragens de rejeitos da mineradora Samarco

Foto: Antonio Cruz/ ABr

Logo após o rompimento da barragem, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) constituiu um Grupo de Trabalho, e começou a visitar a região e monitorar os acontecimentos. A primeira missão aos municípios foi em dezembro de 2015. O relatório final aprovado em maio de 2017 cita que, em 5 de novembro de 2015, a barragem do Fundão, localizada na unidade industrial de Germano, no subdistrito de Bento Rodrigues, município de Marina, se rompeu, causando a enxurrada de rejeitos de mineração.

“Inicialmente atingiram a barragem de Santarém, logo a jusante, causando seu galgamento e forçando a passagem de uma onda de lama por 55 km do rio Gualaxo do Norte, até desaguar no rio Carmo”. No trajeto destruiu o povoado de Bento Rodrigues, soterrando pessoas. A partir daí, a onda gigante entrou no curso do Rio Doce, até a foz, em Linhares (ES). As consequências se multiplicaram, atingindo a arrecadação dos municípios, em decorrência da paralisação de atividades econômicas. Mais de 11 toneladas de peixes apodreceram na trilha do horror. Levantamento do Governo de Minas aponta 311 mil habitantes atingidos no estado. O CNDH aguarda respostas às recomendações que fez a órgãos do Governo Federal para providências de reparos e compensações pelos prejuízos.

Cerca de quatro meses após o estrago, em 2 de março de 2016 foi assinado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre a Samarco, os governos de Minas Gerais, do Espírito Santo e Governo Federal, para a destinação de R$ 4,4 bilhões em três anos para a recuperação dos danos. Com valores entre R$ 18 bilhões e R$ 26 bilhões até 2030. Na opinião da então a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, “um marco, pois foi a busca de soluções que não dependam do governo e ao mesmo tempo atendam à população que de outro modo teria que esperar anos pela solução na Justiça e ver o maior desastre ambiental do país cair no esquecimento”.

O Extra Classe procurou o Ministério do Meio Ambiente para fazer um balanço do cumprimento do TAC, mas não teve resposta.

Assista aos especiais da ECTV sobre a tragédia de Mariana e Bento Rodrigues:

Lama da Samarco segue sem solução

Samarco: empresa assume papel de estado

 

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