POLÍTICA

Os nazistas estão de volta

Os neonazistas surfam na onda do novo fascismo, mantêm ramificações em diversos países e são monitorados pela polícia gaúcha
Por Clarinha Glock (com colaboração de César Fraga) / Publicado em 19 de outubro de 2017
Nas 300 horas de filmagem de Ele Está de Volta (Er Ist Wieder Da, 2015), apenas duas pessoas reagiram negativamente à presença de Hitler , enquanto a maioria fazia selfies e reclamava dos migrantes

Foto: Divulgação

Nas 300 horas de filmagem de Ele Está de Volta (Er Ist Wieder Da, 2015), apenas duas pessoas reagiram negativamente à presença de Hitler, enquanto a maioria fazia selfies e reclamava dos migrantes

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E se Hitler escapasse da morte em 1945 e caísse direto nos nossos dias graças a alguma fenda temporal na Berlim de hoje? Quando o ator Oliver Masucci realizou Ele Está de Volta (Er Ist Wieder Da, 2015), – disponível no Netflix -, de certa forma, profetizou ou melhor detectou num misto de ficção e documentário por que, no imaginário coletivo contemporâneo, o fascismo é assunto tão popular. Nas 300 horas de filmagem em que desfilou pelas ruas caracterizado como o Fürer, apenas duas pessoas reagiram negativamente à sua presença, enquanto a maioria fazia selfies com Hitler e professavam sua contrariedade aos estrangeiros e refugiados que, segundo eles, “estariam destruindo a Alemanha”.

Aliás, ninguém em 2015 imaginaria que menos de dois anos depois da realização do filme e quatro da fundação do partido Alternativa Para a Alemanha (AFD), a extrema direita se tornaria a terceira força política no país e que os  primeiros neonazistas desde a segunda guerra conquistariam tantas cadeiras no Parlamento Alemão. Se Hitler não está de volta em carne e osso, seus simpatizantes estão, e não apenas na Alemanha.

simpatizantes fascistas desfilaram com bandeiras de defensores da supremacia branca em Charlottesville, em 12 de agosto

Foto: Albin Lohr-JonesPacific PressLightRocket / Divulgação

Jovens desfilaram com bandeiras da supremacia branca em Charlottesville (EUA), em 12 de agosto

Foto: Albin Lohr-JonesPacific PressLightRocket / Divulgação

Com a eleição do presidente Donald Trump nos Estados Unidos, simpatizantes fascistas desfilaram com bandeiras de defensores da supremacia branca em Charlottesville, em 12 de agosto passado, justamente com o discurso contra migrantes. No Brasil, espalham ameaças em redes sociais e nas ruas, agridem com palavras ou fisicamente os mesmos grupos-alvo de seus antepassados do III Reich: os negros/as, os judeus, os LGBTs e os migrantes.

Seus discursos se confundem com os de políticos que propagam preconceitos para ganhar votos. Mas que ninguém se confunda, alerta o delegado Paulo Cesar Jardim, titular da 1ª Delegacia de Polícia de Porto Alegre, responsável pelo Grupo de Combate ao Neonazismo no Rio Grande do Sul. ‘Os neonazistas se acham superiores ao MBL ou a políticos como Jair Bolsonaro”, diz Jardim. “Não estamos lidando com bandidos, ou doidos. Estamos combatendo uma ideologia de mais de 70 anos”, analisa.

Jardim estuda o tema e mantém um arquivo com nomes e características de cada subgrupo e as tatuagens que exibem, o que lhe permite dialogar com eles sobre questões históricas, filosóficas e esotéricas, além de monitorá-los. Graças a esse trabalho, antecipa ações. Já  deteve ataques a sinagogas e à Parada LGBT. Em setembro de 2017, afirmou ao Extra Classe que os neonazistas gaúchos não deverão atacar nos próximos tempos, já que um grupo aguarda julgamento pelo tribunal do júri, e um atentado poderia prejudicá-los.

Segundo o delegado, na maioria são jovens entre 17 e 30 anos que agem com extrema violência, em bandos. Em geral, são indiciados por crimes como tentativa de homicídio, formação de quadrilha, corrupção de menores, propaganda e incitação ao nazismo. “Eles têm prazer em odiar, a ponto de tatuarem no corpo: I hate your face (odeio a tua cara)”, descreve. Gostam de aparecer em vídeos e fotos na Internet. Jardim salienta que é preciso ter cuidado ao contabilizá-los, especialmente nas redes sociais. “Uns 90%, se não mais, dos perfis são falsos”, alerta. Quem são? “Jornalistas, policiais, pessoas querendo ‘pinçar’ alguém para investigar, ou punks e Carecas querendo se aproximar”, explica.

Foto: Polícia Civil/Reprodução

Jovens detidos pela polícia gaúcha são monitorados constantemente

Foto: Polícia Civil/Reprodução

Manifestações em outras capitais

No mês de janeiro, em São Paulo,  policiais da Delegacia de Repressão aos Crimes Raciais e Delitos de Intolerância declararam à imprensa que havia uma movimentação maior de grupos neonazistas. Naquele mês, cartazes com mensagens antissemitas foram afixados no centro da capital. Em Blumenau (SC), em 25 de setembro deste ano, foram colados cartazes em postes e na porta da casa do advogado Marco Antonio André com a figura de um homem encapuzado, o símbolo da Ku Klux Klan (KKK) e a frase: “Negro, comunista, antifa, macumbeiro: estamos de olho em você”.

Para André, a grande ameaça hoje é o crescimento da extrema-direita e de uma liderança que receberá apoio dos adeptos do nazismo. Em sua página no Facebook, escreveu: “Continuarei firme na batalha junto ao NEAB (Núcleo de Estudos Afro-Brasileiro), pois é através da EDUCAÇÃO que mudaremos muita coisa. Farei parte da Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil da OAB, pois em Blumenau há muitas histórias que não foram contadas”.

Paulo Cesar Jardim, titular da 1ª Delegacia de Polícia de Porto Alegre, responsável pelo Grupo de Combate ao Neonazismo no Rio Grande do Sul

Foto: Igor Sperotto

Paulo Cesar Jardim, titular da 1ª Delegacia de Polícia de Porto Alegre, responsável pelo Grupo de Combate ao Neonazismo no Rio Grande do Sul

Foto: Igor Sperotto

Paralelos entre Bolsonaro e o fascismo

Grupos-alvo estão se unindo contra os discursos de ódio de neonazistas e similares. “O neonazismo é resultado do conservadorismo religioso, que também nos preocupa”, diz Milton Santos, da Rede Nacional de Negras e Negros, Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBTT) no Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Integrantes da Rede sofrem uma discriminação “acrescida”, diz Santos. Ele explica: “Eu, negro e gay, tenho o fenótipo de tudo o que os neonazistas discriminam”. O Conselho é um espaço de denúncia. “Estamos tentando chamar a atenção das instituições internacionais de direitos humanos. A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial teve que ir à Organização dos Estados Americanos explicar por que não toma providências sobre o assassinato de negros e LGBTTs”, lembra.

Silvio Tendler, cineasta

Foto: Divulgação

Silvio Tendler, cineasta

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O nazismo não foi só uma manifestação antissemita, recorda o cineasta Silvio Tendler. “Atingiu os loucos, os ciganos, e continua em relação a outros grupos étnicos e comportamentais. Se você pensar nas campanhas contra os nordestinos em São Paulo, na homofobia, são formas nazistas de se comportar”, afirma. Diretor de documentários como “Os Anos JK”, “Jango”, “Utopia e Barbárie” e, mais recentemente, “O Dedo na Ferida”, sobre o sistema financeiro e suas contradições, Tendler gravou um vídeo intitulado “Carta Aberta à Hebraica”, em protesto contra uma palestra de Jair Bolsonaro na instituição judaica no Rio de Janeiro, em abril deste ano.

No vídeo, diz: “O que nos move é o humanismo, a luta contra a intolerância e o fascismo dos quais tantas vezes fomos vítimas ao longo da História. Hoje, não podemos avalizar esse modelo que tanto nos oprimiu. Por que não apoiamos a presença de Bolsonaro na Hebraica? Porque é homofóbico, misógino, defende menores salários para as mulheres e é preconceituoso, todos nós já sabemos, até porque faz disso sua plataforma política. O que vocês precisam saber é que ele defende a ditadura como única forma de governo. Pior: defende a guerra civil”.

“Bolsonaro defende Brilhante Ustra e tem entre seus seguidores jovens que não sabem quem foi Ustra e o que foi a ditadura”, reforça Tendler. “É vergonhoso ter gente que o aplaude e ri quando conta piadas racistas. Temos que lutar contra isso para efetivamente cercar esse fascismo ordinário e evitar que prolifere”, acredita.

Para protestar contra a ida de Bolsonaro à Hebraica RJ foram criados os grupos virtuais “Precisamos falar sobre Fascismo” e “Articulação Judaica”

Foto: Divulgação/web

Para protestar contra a ida de Bolsonaro à Hebraica RJ foram criados os grupos virtuais “Precisamos falar sobre Fascismo” e “Articulação Judaica”

Foto: Divulgação/web

Para protestar contra a ida de Bolsonaro à Hebraica RJ foram criados os grupos virtuais “Precisamos falar sobre Fascismo” e “Articulação Judaica”, formados, entre outros, por Tendler e pela professora Patricia Tolmasquim, que é conselheira nacional de Promoção de Políticas de Igualdade Racial, integrante do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos do Rio de Janeiro e presidenta da Loja Albert Einstein da B’nai B’rith, instituição internacional judaica de defesa dos direitos humanos. Mesmo com mais de duas mil assinaturas contrárias e protestos, a Hebraica RJ manteve a palestra. No entanto, em outubro de 2017 Bolsonaro foi condenado a pagar indenização de R$ 50 mil por danos morais aos quilombolas pelo discurso feito na ocasião.

“Embora o Holocausto tenha uma marca judaica muito forte porque nós fomos o povo escolhido para ser exterminado, esta não é uma questão só dos judeus. Todos devemos debater, assim como a sociedade toda tem que questionar o racismo e a escravidão”, enfatiza Patrícia. É o que propõe também a comunidade virtual JUPROG – Judeus Progressistas. Para o engenheiro e ativista Sérgio Storch, fundador do JUPROG e membro do J-AmLat, o neonazismo é um fenômeno que encontra ressonância no Brasil com o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff. MBL e os políticos que apoia, assim como Bolsonaro e seus seguidores são subprodutos, diz. “O neonazismo está presente no comportamento dos juízes, na misoginia e no racismo, em uma violência que existe há muito tempo contra estes grupos”, explica Storch.

Patricia lembra que é preciso uma cultura de ideias para que proliferem atos criminosos como o Holocausto e a Escravidão. “O nazi-fascismo é uma cultura de guerra. A cultura de compreensão da diversidade humana passa por professores e pelas escolas”, enfatiza. Há princípios humanitários que precisam ser ensinados, como ser solidário à dor dos outros, e a arte pode ajudar. Exemplifica: um menino de uma escola carioca em que havia sido feita uma leitura do livro “O Diário de Anne Frank”, saiu um dia com o pai para comprar pão e os dois tiveram de se proteger de um tiroteio. O garotou relatou que, naquele momento, tinha entendido o medo de Anne Frank, a menina judia que teve de se esconder durante a Segunda Guerra Mundial. “Temos refugiados no mundo todo. Este é um conteúdo que professores de Geografia, História, Literatura, Teatro, Artes podem trabalhar em sala de aula. Isso ajuda a conectar a humanidade”, sugere Patricia.

J-AmLat aposta no diálogo para a paz

“Se a paz não for para todos, ela não será para ninguém”, disse a poeta e atriz Roberta Estrela D’Alva em um debate sobre racismo em 2015. O J-AmLat, recém-criado, parte do mesmo princípio. Entre suas missões, está “a criação de um Estado da Palestina que coexista em paz e segurança com o Estado de Israel e seus vizinhos como um passo imprescindível para uma solução justa do conflito israeli-palestino”.

J-AmLat é a sigla de “Judeus Latino-americanos Progressistas pela Paz”, movimento fundado em setembro de 2017, a exemplo dos existentes nos Estados Unidos e na Europa. Participam judeus do Brasil, Chile, Uruguai, Argentina, México e Israel. “São pessoas que defendem o Estado de Israel, mas não necessariamente as políticas do governo israelense”, explica Mauro Nadvorny, um dos articuladores. Foi Nadvorny quem, no JUPROG, iniciou a petição que impediu Jair Bolsonaro de fazer uma palestra no Clube Hebraica em São Paulo.

Um dos princípios do J-AmLat é justamente o compromisso com uma visão progressista e humanista do judaísmo baseada no respeito à diversidade e legitimidade das diferentes correntes, nos valores democráticos e na defesa de direitos humanos.

Nazifascistas do passado e da atualidade

Os discursos de políticos de extrema direita da atualidade e de nazifascistas são muito próximos, analisa o professor Solon Viola, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos): “Surgem e ganham expressão nas crises do capitalismo. São sempre financiados por setores das elites e têm táticas intimidatórias; são apoiados por setores do Estado, tanto no aparelho coercitivo como nas diferentes esferas do poder; objetivam espalhar o medo; contam com uma carga de preconceito e ódio; o pressuposto de Nação está intimamente ligado à transformação do Estado quando alcançam o controle do mesmo. Alteram as constituições, centralizam o poder e fazem da legislação uma forma de impor suas políticas”, observa.

Na origem do nazismo do século XX estava a intensa crise da economia liberal que havia produzido a Primeira Guerra (1914-1918), observa Viola. “No pós-guerra, a Europa acordou com uma revolução socialista na Rússia e governos socialistas eleitos na Alemanha e na França. Os socialistas tinham importância decisiva na condução das políticas nacionais na Itália, na Espanha, em Portugal e na Inglaterra. Estes países e a Escandinávia encaminharam reformas sociais com distribuição de renda e políticas de direitos sociais e econômicas. Pode-se falar num pacto entre setores do capitalismo com setores dos movimentos operários. A crise de 1929 levou à estagnação das reformas e as elites econômicas romperam as alianças, sendo obrigadas a medidas repressivas. Assim aliaram-se à extrema direita e construíram o nazi-fascismo”.

Solon chama a atenção para um fato: Hitler e Mussolini eram figuras caricatas e no entanto governaram, em princípio, por processo eleitoral, em países que se jactaram de serem compostos por povos cultos. “Na América Latina sempre consideramos a Argentina e o Chile como países politizados, e por lá as expressões fascistas foram permanentes”, alerta. O professor cita expressões atuais claramente nazi-fascistas, como escola sem partido, perseguições a atividades culturais, apologia do ódio, políticas de mídia para fortalecer uma psique do medo e permitir ações repressivas, separação da sociedade em “bons” e “maus”, com a segregação dos últimos.

“Difícil personalizar estas correntes de pensamentos em A ou B. Elas estão presentes mais em movimentos do que em pessoas. Normalmente usam em suas denominações palavras originadas em movimentos transformadores. Na Alemanha e na Itália se autodenominavam socialistas. Agora, destacam a ideia de “liberdade”, explica.

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