OPINIÃO

O nosso vizinho fascista

Por Moisés Mendes / Publicado em 15 de dezembro de 2017

Foto: João Primo / Wikipedia

“Como aconteceu na Paris ocupada, ninguém está a salvo da violência e do ódio que podem se manifestar a qualquer momento, nem mesmo os que se consideram aliados do golpe e do fascismo”

Foto: João Primo / Wikipedia

O artista francês Christian Boltanski não tem a memória de vivências próprias da França tomada pelos nazistas de 1940 a 1944, porque nasceu ao final da ocupação. Mas sabe, pela memória emprestada que guardou dos relatos dos pais, que um vizinho cordial poderia, de um dia para o outro, virar o algoz de judeus e aliar-se aos invasores.

O canal Curta mostrou esses dias uma entrevista com o pintor, fotógrafo e escultor Boltanski. Ele falou com calma do tempo do horror em Paris. A história que contou parece banal. Em 1942, os nazistas decidiram que os judeus não poderiam ter animais domésticos em casa. A mãe e o pai, que era judeu, tinham um gato.

Um dia o gato mijou na casa de um vizinho. O homem exigiu: ou matavam o gato ou a família seria denunciada. Mataram o gato. O incomodado entregaria os vizinhos para se livrar de um gato e ainda ficaria bem com os nazistas.

Mas o maior segredo dos Boltanski sobreviveria até o final da ocupação: o pai simulou que viajara, quando os alemães invadiram a cidade, e permaneceu escondido no porão da casa até 1944.

Boltanski fala de uma época que nós, longe no tempo e em distância real, não sabemos avaliar direito. O nazismo contagiou os franceses. O colaboracionismo com os invasores é uma das chagas da alma de Paris.

Vizinhos aparentemente inofensivos aliam-se aos algozes quando o mal é acionado pelo medo, por algum interesse imediato ou pela vontade de aderir a quem está no poder. Até porque a sensação na época era de que os nazistas haviam se adonado da França para sempre.

Em outra entrevista recente, outro artista brasileiro, por acaso com os mesmos talentos múltiplos de Boltanski, falou dos seus temores depois do golpe. Nuno Ramos, também pintor, escultor, desenhista e escritor, disse em entrevista a Fabio Prikladnicki, de Zero Hora, que não tem medo dos políticos que apoiaram e sustentam o golpe.

O que mais o atemoriza é o gesto imprevisível de quem pode até estar ao seu lado. Nuno disse: “A repressão fascista passa muito pelos indivíduos. Tenho mais medo disso do que da corrupção política. Não tenho tanto medo de deputado corrupto. Tenho medo do demônio que possa nascer no meu vizinho, em um amigo que não vejo há muito tempo ou em um primo que diga: artista é tudo vagabundo”.

Eu tenho pelo menos meia dúzia de amigos que sentem algo semelhante. Um deles costuma me alertar com recados pelo messenger: cuidado, eles são perigosos.

Eles quem? Os que se consideram porta-vozes do golpe nas empresas, nas famílias, na vizinhança mesmo, como aconteceu em Paris. Porque o fascista em potencial está certo de que as instituições foram aparelhadas pelo golpe e ele deve tirar proveito disso.

Trabalhar pela perenidade da direita no poder pode ser, em apenas alguns passos, aproximar-se do fascismo com todas as desculpas possíveis. É só argumentar que atuam pela moralidade, pela família, pelo país, pela segurança e pelo anticomunismo. O fascista é um homem (ou uma mulher) de bem armado de certezas que o isentam de culpas.

Sempre foi assim. Esta semana, a Volks emitiu um comunicado em que admite que funcionários (ou diretores?) da filial brasileira colaboravam com a ditadura ao dedurar outros funcionários da própria Volks como subversivos. Se os delatores pudessem ser bem identificados hoje, alguns sobreviventes daquela época talvez dissessem, espantados: eram pessoas cordiais, educadas e até delicadas.

Cidadãos aparentemente sensatos podem cercar inimigos em aeroportos, como fizeram com a filósofa Judith Butler em Congonhas, ou perseguir uma estudante transgênero em uma escola, como aconteceu em Fortaleza, ou matar negros e gays, ou atacar crianças negras pela internet. Mas essas são ameaças visíveis.

Há articulações ainda invisíveis, como alertam meus amigos que têm medo. O golpe avança nesses redutos do indivíduo comum, do vizinho de Nuno Ramos, do nosso conhecido fascista, porque eles se consideram colaboradores de um estado de exceção que se anuncia como duradouro. Golpes transmitem a sensação de eternidade.

Em agosto de 2013, a Globo confessou que o jornal O Globo (a TV Globo ainda não existia) apoiou ‘editorialmente’ o golpe de 1964. Mas não admitiu, 48 anos e cinco meses depois do começo da ditadura, que colaborou com os militares.

Talvez nunca um empresário brasileiro ou alguém da imprensa confesse um dia, como fez a Volks, que era informante ou colaborador efetivo do regime que perseguiu, torturou, matou e escondeu cadáveres? Quem, daqui a alguns anos, irá se apresentar como colaboracionista do golpe de agosto do ano passado?

O que Christian Boltanski nos disse na entrevista sobre o nazismo é que ninguém está a salvo. Todos, inclusive os que se consideram protegidos pelos usurpadores do poder, podem ser alcançados por um dedo-duro apenas eventual, por um oportunista ou pelo militante violento de direita que foi ideologicamente tomado pelo ódio fascista.

O delator do século 21 não tem as tarefas que eram atribuídas aos canalhas da Volks, que abasteciam a repressão de informações sobre quem deveria ser perseguido. Hoje, quase todo mundo sabe o que a maioria pensa e o que faz das suas opções políticas.

Não é do delator que devemos ter medo, mas do fascista muitas vezes avulso e dissimulado, que talvez nem tenha se manifestado integralmente, e que se sente autorizado a agir a qualquer momento.

Esse fascista, que se considera protegido pelo golpe e pela estrutura institucional que o apoia, inclusive no Judiciário, pode estar esperando 2018 para agir em matilhas ainda mais organizadas. Paris é aqui. Estamos sob ocupação.

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