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Tempos de hipocrisia, cinismo e obscurantismo

Marcelo Menna Barreto / Publicado em 20 de fevereiro de 2018

Tempos de obscurantismo, hipocrisia, o cinismo e obscurantismo

Marcelo Tebach / Divulgação

Marcelo Tebach / Divulgação

Nesta entrevista ao Extra Classe, Zuenir Ventura, 86 anos, autor do já clássico 1968 – o Ano que não terminou, que serviu de inspiração para a série Anos Rebeldes da rede Globo, nos fala um pouco desta data que em maio próximo completa 50 anos e da coincidência que lhe deu “muito trabalho” quando foi preso pelos agentes da ditadura militar e lhe rendeu “um diálogo maluco” com o seu interrogador.

Com 64 anos de jornalismo, colunista do jornal O Globo, Zuenir tem importantes prêmios. Em 1995, na categoria reportagem, recebeu o Prêmio Jabuti pelo livro Cidade Partida. Antes, em 1989, recebeu o prêmio máximo do jornalismo brasileiro, o Esso, com a série de reportagens sobre o assassinato de Chico Mendes, que completa 30 anos em dezembro próximo. Sobre o fato, Zuenir é categórico: “os seringueiros pelos quais ele deu a vida ainda têm muito o que conquistar”.

Zuenir é também o sétimo eleito para a cadeira 32 da Academia Brasileira de Letras, lugar que ocupa desde 2014, sucedendo o dramaturgo Ariano Suassuna.  Considerado um profissional brilhante e coerente, mistura em seus livros ficção e realidade em narrativas vivas que empolgam e encantam leitores de todas as idades.

Extra Classe  Há cinquenta anos jovens protestavam contra a ditadura, hoje temos um movimento liderado basicamente por jovens que atacam exposições de arte com temática de gênero, defendem a Lei da Mordaça para professores e até a retirada do nome de Paulo Freire como Patrono da Educação no Brasil. Na sua opinião, o que está acontecendo?
Zuenir Ventura  O mais triste desses movimentos de direita é que em geral não só são contra a livre expressão como pregam o direito de censurá-la. Há muito de desconhecimento em relação ao que defendem e ao que combatem. Só mesmo por ignorância de seu trabalho, alguém pode negar a Paulo Freire o título de Patrono da Educação no Brasil.

EC – Por falar nesse movimento, o que você acha do MBL (Movimento Brasil Livre)?
Zuenir  Quanto ao MBL, me parece um movimento fora do tempo, a começar pelo nome. Seria mais adequado ter surgido para libertar o Brasil da ditadura. Mas hoje, que estamos em plena democracia? Pode-se dizer que ela é imperfeita, que precisa ser aperfeiçoada, tudo bem, mas não necessita de qualquer salvador da pátria para libertá-la.

EC – Você disse recentemente que nunca o conservadorismo “foi tão visível e despudorado”. Não te estranha os “valores” desses ditos conservadores?
Zuenir – Se fossem só conservadores… o problema é que são retrógrados. Não querem conservar, mas voltar atrás, voltar ao que um certo passado teve de pior: a hipocrisia, o cinismo, o obscurantismo.

EC  Voltando ao ano de 68… Você também disse recentemente que, apesar do mês de maio na França ter ficado como símbolo, aqui no Brasil a movimentação começou antes, com protestos em março devido ao assassinato do estudante Edson Luís pela Polícia Militar do Rio de janeiro (Edson Luís de Lima Souto, Belém, 24 de fevereiro de 1950 — Rio de Janeiro, 28 de março de 1968).
Zuenir – Essa coincidência me deu muito trabalho depois, quando fui preso. É que, quando  Ziraldo, Washington Novaes e eu ouvimos o tiro que matou o Edson Luis, descemos correndo do sexto andar, onde trabalhávamos a tempo de acompanhar o cortejo fúnebre, os estudantes carregando corpo do colega.

EC – Na sua opinião, a geração de hoje é menos politizada, menos envolvida com as questões sociais do que a de 68?
Zuenir – Houve uma mudança, inclusive no conceito de geração. Na minha época, você falava “a geração de 68”, hoje não temos mais “geração” temos “tribos”. Cada tribo é uma geração, com uma maneira de se vestir, uma maneira de falar. É mais difícil hoje você diagnosticar, identificar, fazer o perfil porque são várias gerações, várias tribos. A expressão é essa, são várias tribos. Agora, há a tribo alienada que não quer nada, mas há jovens que são interessados e, vamos fazer justiça, quando a gente fala em jovem, esses jovens, há aqueles que saíram juntos, que começaram a manifestação do Passe Livre, por exemplo, são jovens politizados. Agora, ao lado desses jovens, tem esses caras que também são jovens que você coloca na mesma geração, mas é uma outra tribo.

EC – Convenhamos que, se na França sobraram pauladas por todos os lados e de Gaulle ter dissolvido a Assembleia Nacional, marcando eleições parlamentares para junho de 68, aqui os movimentos fizeram os militares apertar ainda mais o regime com o AI-5. Como foi acompanhar isso de tão perto, já que trabalhava ao lado do restaurante Calabouço na revista Visão?
Zuenir  O coronel Pimentel, que me interrogou, não se conformava com a coincidência. ”Temos fotos do senhor no velório do estudante e sabemos que em maio o senhor estava em Paris, no meio da confusão estudantil. Não é muita coincidência?” Eu respondia: “é, mas é coincidência”. Aí travou-se um diálogo maluco: “É muita coincidência, o senhor não acha?” “Acho, mas é coincidência”. “Mas é muita coincidência”. E ficamos muito tempo nisso (risos). Os militares estavam convencidos de que eu era o “olho de Moscou” na imprensa.

Tempos de obscurantismo, hipocrisia, o cinismo e obscurantismo

Foto: Marcelo Tebach/Divulgação

Foto: Marcelo Tebach/Divulgação

EC – O que você diria para aqueles que hoje ainda defendem uma intervenção militar no Brasil?
Zuenir – Há dois tipos de pessoas: os que defendem a volta da ditadura por não saberem o que de fato aconteceu. E aqueles que estavam do lado da repressão e defendem até a censura e a tortura.

EC – Daniel Cohn-Bendit, um dos grandes expoentes de 1968 na França, integrou a Federação Anarquista, depois o movimento Negro e Vermelho e,  mais tarde, se definiu como um liberal-libertário. Trajetória semelhante fez Gabeira no Brasil. O que aconteceu com essas lideranças? Teria razão o dito “Um homem que não seja um socialista aos 20 anos não tem coração. Um homem que ainda seja um socialista aos 40 não tem cabeça”, atribuído a tantas pessoas, entre elas à Georges Clemenceau (Georges Benjamin Clemenceau, 28 de setembro de 1841 — 24 de novembro de 1929) estadista, jornalista e médico francês)?
Zuenir – A frase atribuída a Clemenceau é muito espirituosa, mas acho que acreditar ou não no socialismo não é um determinismo biológico que varia conforme a idade. Não sei se o Gabeira prefere hoje a democracia em vez da luta armada por ter mais de 40 anos (risos). Teria que perguntar a ele.

EC – Atualmente a palavrinha da moda é fake news. Você como jornalista sabe que, na realidade, isto não vem de agora. Como você vê as novas tecnologias no processo de disseminação de informação?
Zuenir  As teorias conspiratórias, que têm a ver com as notícias falsas, não surgiram hoje. A frase “A verdade é a primeira vítima de uma guerra” (acho que é de Ésquilo) se aplica a todos os confrontos e conflitos de idéias e opiniões. Você citou a teoria do pastor americano David Noebel sobre os Beatles, e muitas outras poderiam ser lembradas, principalmente durante a Guerra Fria. Eco tem razão. Mas as redes sociais não só deram voz aos imbecis, como ampliaram essa voz numa escala nunca antes atingida pela humanidade. A internet não é só um instrumento do mal; existe evidentemente uma internet do bem. A grande preocupação hoje dos que pensam essa revolução tecnológica é como combater as fake news. O Google e o Facebook estão sendo convocados para essa indispensável cruzada em favor da verdade.

EC – Há quem veja que o crescimento do neopentecostalismo no Brasil, oriundo dos EUA, forte contribuição para as posturas ditas conservadoras. Qual é a sua opinião sobre isto?
Zuenir  O neopentecostalismo tem hoje no Brasil um projeto de poder, que se manifesta na conduta da chamada Bancada Evangélica e no surgimento de representantes em outras esferas políticas, como a Prefeitura do Rio.

EC – Em dezembro, completarão 30 anos da morte de Chico Mendes. Em 1989 você foi ao Acre para uma série de reportagens sobre o assassinato dele e ganhou o prêmio Esso de Jornalismo. Quinze anos após, em 2003, você foi concluir essa série de reportagens com o livro Chico Mendes – Crime e Castigo (Cia das Letras). Na sua opinião, em todo esse período houve alguma mudança significativa após esse marco no conflito agrário brasileiro?
 Zuenir  Houve mudança mais no plano simbólico do que no real. Não há como negar que a luta de Chico Mendes serviu para inscrever a Amazônia na agenda planetária. Mas os seringueiros pelos quais ele deu a vida ainda têm muito o que conquistar. Sua luta está longe de terminar.

EC – Ainda sobre o Chico Mendes, em uma entrevista você o mencionou como exemplo de líder. Para você, o que caracteriza um verdadeiro líder?
Zuenir – Acho que o Chico Mendes foi um líder. Aliás, mais do que isso, um mártir. Chico incluiu na agenda do mundo a causa ambiental, a Amazônia. Hoje se discute coisas que o Chico já dizia. Hoje se a Amazônia existe na agenda planetária como disse antes, deve-se a Chico Mendes. Ele tinha essa coisa de aprender com a vida e liderou uma luta de resistência, criou discípulos como a Marina Silva, por exemplo. Lembro-me gente como ela, com toda aquela fragilidade física aparente, mas comandando um empate. Aquela técnica que eles inventaram. Colocavam-se crianças, mulheres, velhos entre a floresta e os jagunços com motosserras. O Chico descobriu uma causa, lutou por ela e fez com que fosse difundida para seus discípulos e para o mundo. Acho que isso é ser líder.

EC – Você, que pesquisou a vida cotidiana de Chico Mendes, também disse uma vez que ele tinha muitos defeitos e que pessoas lhe cobraram isso, não?Zuenir – Sim! Isso mesmo, sobre a bigamia dele, por exemplo. Na realidade, eu acho que o humaniza, o tira de um pedestal. Ele não pode ser santificado. É um cara com problemas, com defeitos. Fui patrulhado por falar sobre o fato do Chico ser bígamo. Viajei horas e horas de barco para descobrir a Dona Eunice que era mulher dele. Ele não era santo e nem queria ser (risos).

Tempos de obscurantismo, hipocrisia, o cinismo e obscurantismo

Foto: Marcelo Tabach/Divulgação

Foto: Marcelo Tabach/Divulgação

EC – O assassinato de Chico Mendes foi um dos mais anunciados de toda a História mundial. Ele avisou a muitas pessoas que estava sendo ameaçado de morte, que ia ser assassinado, mas ninguém lhe deu ouvidos. O que mais impressiona você nessa questão?
Zuenir –
 Não conheci o Chico pessoalmente. Mas descobri que ele gostava muito de escrever. Ele, que foi analfabeto até os 20 anos de idade, depois que aprendeu a escrever  não parou mais, principalmente cartas. Na época não tinha esse negócio de e-mail. Imagina o Chico hoje podendo mandar e-mails para o mundo todo? Mas a realidade é que uma ameaça de morte é uma das coisas mais perversas que existem. Se alguém diz que está sendo ameaçado de morte, geralmente não é levado muito a sério, geralmente é visto como paranoico. Muita gente achava que aquilo era uma paranoia do Chico.

EC – E no final se comprovou que não era paranóia…
Zuenir – O Chico escreveu para o governador, para o presidente da República, para a polícia federal, para muita gente. O Chico acertou o mês em que ia morrer, em dezembro. E talvez uma das coisas que mais me impressionem nisso tudo é o seguinte: se o Chico tinha tanta certeza de que ia morrer, por que ele não deixava o Acre?

EC – Existe uma resposta?
Zuenir – Ele poderia ir para outro país, poderia ir para São Paulo, poderia ir para o Rio, poderia sair do Acre, se quisesse. Se o Chico acenasse para qualquer país, seria bem recebido na mesma hora… Mas foi o que ele disse a uma amiga: “Se eu for embora, vou só adiar a minha morte.” Na realidade, ele não saiu do Acre porque a militância era a sua própria vida. Acho que ele não conseguiria viver exilado, longe dos seringueiros, longe da floresta, longe da sua terra. Mas o Chico, que tinha tanta capacidade de profetizar certos fatos, errou ao dizer que a sua morte seria em vão. Ainda existe uma discussão sobre o que seria hoje da Amazônia, se o Chico tivesse escapado da tocaia, sobre o que seria do Chico, se ele estivesse vivo.

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