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O homem que vendeu a Seleção pra Nike

Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 18 de junho de 2018
O homem que vendeu a Seleção pra Nike

Foto: Divulgação

De mero radialista interiorano, J. Hawilla se tornou um dos maiores empresários da mídia esportiva, corruptor e delator da máfia do futebol

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Segundo Juca Kfouri,  não viveu para ler sua biografia que os jornalistas Allan de Abreu e Carlos Petrocilo escreveram, mas “Viveu o suficiente para impedir que o lançamento se desse em Rio Preto (SP) onde nasceu”. O Delator – A história de J. Hawilla o corruptor devorado pela corrupção no futebol (Editora Record), chegou às livrarias no último dia 15 após seu lançamento ter sido impedido nos shoppings Iguatemi e Rio Preto Shopping de São José do Rio Preto.

O homem que vendeu a seleção pra Nike

Foto: Sérgio Isso/Divulgação

Os autores Carlos Petrocilo e Allan de Abreu

Foto: Sérgio Isso/Divulgação

Esta censura, classificada pela Editora Record e os autores do livro como uma espécie de “ato de poder póstumo” de José Hawilla, por si só já serviria para demonstrar todo a influência do fundador da Traffic, maior agência de marketing esportivo das américas, que prosperou com o monopólio das concessões bilionárias de transmissões esportivas, falecido no último dia 25 de maio em São Paulo por problemas respiratórios.

Resultado de um exaustivo trabalho de dois anos dos premiados jornalistas Allan de Abreu e Carlos Petrocilo o livro mapeia as metamorfoses de Hawilla. De radialista do interior até senhor de um patrimônio que inclui afiliadas da TV Globo no interior, holdings, jatinhos, fazendas e rebanhos de gado: fortuna que teve início com a compra e venda de placas de publicidade na beira do gramado em estádios e, mais tarde, os direitos de transmissão televisiva dos mais importantes eventos de futebol do planeta.

A radiografia da carreira do controvertido empresário foi feita por meio de entrevistas com “cartolas”, promotores, políticos, jornalistas e empresários ligados ao marketing esportivo e às TVs no Brasil, Argentina e Paraguai. O livro revela documentos inéditos e confronta fontes para apresentar detalhes exclusivos do megaesquema de corrupção protagonizado por J. Hawilla. O Ápice foi sua implosão do sistema em seu depoimento ao FBI, quando surge o Fifagate, que levou a condenação de vários dirigentes internacionais do futebol, entre eles o ex-presidente da CBF José Maria Marin e a impossibilidade de Marco Polo de Nero e Ricardo Teixeira por seus pés para fora do Brasil.

Extra Classe – Vocês dizem que Hawilla está para o futebol assim como Marcelo Odebrecht para a construção civil. Poderiam explicitar melhor para nossos leitores essa afirmação?
Allan de Abreu –
Se Marcelo Odebrecht foi o grande corruptor dos políticos, J. Hawilla teve o mesmo papel com os cartolas. Ambos foram vitais para o funcionamento de uma engrenagem corrupta, que desviou milhões em dinheiro público, no caso de Odebrecht, e que sequestrou o futebol da sociedade para fins espúrios, no caso de Hawilla.

EC – O Delator aponta que a investigação sobre a trajetória desse personagem J. Hawilla é entender as razões do subdesenvolvimento do futebol brasileiro. Sobre este subdesenvolvimento, quais as conclusões que chegaram ao escrever o livro?
Carlos Petrocilo – O empresário J. Hawilla alimentou por três décadas um esquema tão corrupto que, entre tantos exemplos bem claros no livro, podemos destacar influência em escalações, como a presença de um Maradona, mesmo combalido e a contragosto, em uma edição da Copa América, somente para atender aos planos comerciais da Traffic, interferência nos treinos da Seleção de acordo com campanhas publicitárias. Outro capítulo, ainda mais chocante, é a “venda da Seleção” para a Nike. No entanto, não cremos em uma reviravolta, o jogo continuará sujo. Vimos agora o Marco Polo Del Nero, banido do esporte, aliás por conta de delações do próprio Hawilla, que articulou para eleger o seu sucessor na presidência da CBF.

EC – Que desafios enfrentaram para escrever O Delator?
Petrocilo –
Desde o início da apuração houve duas dificuldades básicas: Primeiro, a complexidade dos negócios de J. Hawilla, que se estendem por vários países, incluindo paraísos fiscais. Segundo, o temor que o personagem desperta em muitas pessoas, sobretudo aquelas ligadas ao futebol. Apesar de ter tido sua imagem de empresário bem-sucedido devastada pela delação nos Estados Unidos, Hawilla possuía uma rede de relações muito extensa, e usou essa networking para barrar nosso trabalho.

EC – Vocês sentiram tentativas de boicote ao trabalho?
Abreu –
O Hawilla não quis colaborar. Apesar de a imagem dele estar muito desgastada por conta da delação, ele ainda exercia uma influência muito grande. Ele tinha uma rede de relacionamentos muito intensa e começou a monitorar a gente. Com amigos em Rio Preto que tentavam conversar conosco, para saber como estava o projeto. Isso durou um tempo, aproximadamente o primeiro ano de apuração.

EC – O que diziam?
Abreu – Falavam que estavam descontentes com as pessoas que a gente estava ouvindo, com o teor da perguntas, mas depois parou. Eu particularmente reclamei com o Hawilla, em uma mensagem por aplicativo.

EC – O que ele disse?
Abreu – Ele reclamou do livro, mas depois acabou. Os amigos se afastaram um pouco da gente, e isso facilitou um pouco. Mas muita gente tinha medo do Hawilla. Raríssimas pessoas falaram com a gente abertamente, com esse receio do poder que ele exercia

EC – O que dizer da recusa do lançamento do livro em shoppings de São José do Rio Preto?
Abreu –
A família Hawilla enriqueceu à custa de grossa corrupção, isso é notório, mas algumas pessoas preferem vê-los apenas como “empreendedores” que deixaram um “legado” para Rio Preto.

EC – Juca Kfouri, que aliás é o responsável pelo prefácio de O Delator, escreveu recentemente suas memórias com um tom melancólico sobre a situação da cartolagem brasileira. Nos deu uma bela entrevista inclusive sobre isto (leia aqui). Como os senhores analisam o fato de que é mais fácil prender e condenar um personagem como  José Maria Marin no exterior do que no Brasil?
Abreu –
Porque a legislação penal norte-americana é muito mais avançada e completa do que a brasileira. Diferentemente dos Estados Unidos, no Brasil não se pune atos de corrupção entre entidades e empresas privadas, ainda que elas possam ser tão danosas à sociedade quanto a corrupção com dinheiro público.

EC – Hawilla quando fez seu acordo de delação nos Estados Unidos fez uma declaração onde dizia ter iniciado seu negócio de marketing esportivo de forma honesta, mas que foi completamente envolvido pelo sistema corrompido do futebol internacional. Se este sistema é estruturalmente corrompido no mundo inteiro, porque, digamos, nosso futebol é subdesenvolvido em termo de gestão e o de outros países importantes no esporte não?
Abreu – Há corrupção em todo canto na gestão do futebol. Vide o caso de Sandro Rosell no Barcelona e de Ángel Maria Villar na Federação Espanhola de Futebol. A diferença é que no mundo desenvolvido a corrupção é menos endêmica do que na América do Sul.

EC – Continuando nesse assunto da delação. Hawilla afirmou na ocasião o seu profundo arrependimento. Ele, aliás, gostava de alardear que trabalhava de forma completamente honesta. Os senhores acreditam realmente nesse arrependimento?
Petrocilo – É difícil sermos assertivos se houve arrependimento ou não passou de um joguinho de cena para limpar a próprio imagem. O próprio Hawilla dizia que, assim que terminasse seu acordo com a justiça norte-americana, contrataria uma empresa para melhorar sua imagem no Brasil. O fato é que Hawilla não teve alternativas depois de cair nas garras do FBI e precisou escolher entre cadeia ou delação. Em 2013, Hawilla, debilitado fisicamente e com 71 anos, ficou preso por algumas horas e, diante das penas para os seus quatro crimes, que chegavam a 80 anos de prisão, viveria seus últimos dias em uma cadeia nos Estados Unidos.

EC – Como é a história de Hawilla ter virado grampo ambulante?
Abreu –
É isso mesmo. O FBI instalava o gravador nele e o orientava sobre o que ele deveria perguntar para cada pessoa. Além do gravador, ele usou sempre uma tornozeleira neste período em que ele era um grampo ambulante, aproximadamente durante um ano e meio nos Estados Unidos. Quando estourou o Fifagate ele não estava mais com a tornozeleira, estava em prisão domiciliar sob algumas condições. O FBI orientou ele em um momento a mostrar a tornozeleira para um dos funcionários da Traffic que ele estava gravando. O Hawilla também delatou os funcionários da Traffic. O FBI nunca esclareceu o que queria com isto.

EC – E a história da sociedade oculta entre Hawilla e Ricardo Teixeira?
Abreu –
No fim dos anos 80, quando Teixeira assume a presidência da CBF, ele e Hawilla firmam um pacto informal e secreto: a Traffic seria a mola mestra para que ambos lucrassem ilicitamente usando a Seleção brasileira. A CBF poderia muito bem abrir mão de uma empresa intermediária como a Traffic na negociação dos direitos de TV; não o fez porque a triangulação permitia a Hawilla lucrar milhões com a diferença entre o preço que pagava à CBF por esses direitos e o valor que embolsava das TVs, já descontadas as “comissões” pagas a Teixeira.

EC – Aliás, mesmo sendo genro de João Havelange, na época o todo poderoso presidente da Fifa, como explicar que Teixeira, que nunca havia dirigido um clube de futebol, chegasse á presidência da Confederação Brasileira de Futebol?
Petrocilo – Esta é uma prova clara do compadrio que rege o futebol no Brasil. Não parou aí. Os sucessores de Teixeira são todos da mesma corja. Marin, depois Del Nero e, agora, o desconhecido Rogério Caboclo.

EC – O livro tem um capítulo com um título bem interessante, já referido nessa entrevista: Vende-se uma seleção de futebol. Isto obviamente tem relação ao controverso contrato assinado entre a CBF e a Nike, não? O que mais vocês podem nos falar sobre isto?
Petrocilo –
Essa negociação representa o ápice do poder do marketing sobre o futebol. Também deixa claro que o papel da Traffic serviu apenas para alimentar os bolsos de Ricardo Teixeira e J. Hawilla. A Nike pagaria à CBF US$ 160 milhões durante dez anos, e a Traffic, apenas pela intermediação, abocanharia US$ 800 mil por ano à título de comissão. Agora, qual a necessidade da Traffic nesse negócio? A Seleção, tetracampeã do mundo, atual campeã da Copa e recheada de talentos em meados da década de 1990, precisava de uma empresa para promover sua imagem? Quando se fala em “Vende-se uma seleção”, podemos ilustrar com uma passagem durante a preparação do Brasil para Copa do Mundo de 1998 que a Seleção conseguiu treinar somente quinze minutos a seis dias da estreia contra a Croácia. Algo que deixou os jogadores profundamente irritados, o desabafo de Dunga, documentado no livro, é a prova.

EC – Na opinião dos senhores, em um sistema tão sem transparência, como negócios similares aos Hawilla impactam em um evento que praticamente paralisa o mundo inteiro como a Copa do Mundo?
Abreu –
A história de Hawilla e da Traffic simboliza a expansão do marketing no futebol. Essa influência trouxe profissionalismo ao esporte, ajudando a organizá-lo – vide o espetáculo que são as Copas – mas também corrompeu valores caros ao futebol, com episódios de manipulação de resultados e influência na escalação de jogadores – a convulsão de Ronaldo Fenômeno na Copa de 98 nunca foi esclarecida.

EC – Marco Polo del Nero que foi banido recentemente do futebol pela Fifa não pode colocar os pés para fora do Brasil sob risco de prisão e em março Andorra pediu a extradição de Ricardo Teixeira. Dois exemplos apenas para lhes perguntar: O Brasil é o país da impunidade no futebol? E por quê?
Abreu –
Sim. Por dois motivos: pelas falhas na legislação brasileira, como exposto anteriormente, e pela leniência dos órgãos de fiscalização e controle brasileiros, notadamente a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, além do Judiciário. É bom lembrar que Teixeira costumava bancar a viagem de desembargadores do Rio para assistir aos jogos das Copas, como ocorreu na França em 1998.

EC – Abreu, antes de O Delator, você escreveu o Cocaína – A rota caipira, também pela Record. Da mesma forma é uma grande reportagem escrita no ritmo acelerado das boas obras de suspense. Que tipo de literatura você prefere?
Abreu – Indubitavelmente, livros-reportagem, até pela minha formação profissional. Mas sem deixar de lado as verdades de toda boa ficção.

EC – Para encerra nossa entrevista, vale um comentário sobre a família Perrella, que também é bastante envolvida com o futebol, não?
Abreu –
O caso do helicóptero do empresário e senador pelo PSDB Zezé Perrella, que foi flagrado em 2013 com quase meia tonelada de cocaína no Espírito Santo, é narrado em detalhes no meu livro (Cocaína – A rota caipira). A PF afirma que não havia envolvimento do tucano no caso e o inquérito, de fato, não traz nenhuma pista nesse sentido. Mas não sabemos até que ponto chegou a investigação policial, nem o que eventualmente possa ter ficado de fora do inquérito. O que dá margem para suspeitas.

O LIVRO

O homem que vendeu a seleção pra Nike

Foto: Divulgação

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O delator – A história de J. Hawilla, o corruptor devorado pela corrupção no futebol

Autores: Allan de Abreu e Carlos Petrocilo

266 páginas

Preço: R$ 49,90

Grupo Editorial Record/Editora Record

Os autores

Allan de Abreu nasceu em Urupês (SP) em 1979. Jornalista com mestrado em teoria da literatura pela Unesp, é repórter da revista Piauí. Trabalhou nos jornais Folha de S.Paulo, Diário da RegiãoBom Dia e O Estado. Venceu o Prêmio Esso de Jornalismo na categoria Interior em 2004 e é autor de Cocaína: a rota caipira, também pela Editora Record.

Carlos Petrocilo nasceu em São José do Rio Preto (SP) em 1983. Jornalista formado pela Universidade Santo Amaro, em São Paulo, é editor de esportes do Diário da Região. Trabalhou como repórter no Jornal da Tarde e no Lance!. Venceu o Prêmio Petrobras na categoria Reportagem Esportiva em 2013 e é autor do livro Meninas, o sonho de bola.

 

 

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