GERAL

Assassinato de liderança curda gera revolta no Iraque

Zaki Shingali, que resgatou milhares de yazidis sitiados no Monte Sinjar em 2014, no mais sangrento ataque do Estado Islâmico, foi abatido por jatos turcos
Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 17 de agosto de 2018
Massacre do Monte Sinjar: em agosto de 2014, centenas de pessoas foram mortas por ativistas do Estado Islâmico em uma campanha sistemática de “limpeza étnica” no norte do Iraque. Cerca de 100 mil yazidis (foto) foram liberadas num corredor humano liderado por Shingali em marcha até Rojava, na Síria

Foto: Donatella Rovera/ Anistia Internacional

Massacre do Monte Sinjar: em agosto de 2014, centenas de pessoas foram mortas por ativistas do Estado Islâmico em uma campanha sistemática de “limpeza étnica” no norte do Iraque. Cerca de 100 mil yazidis (foto) foram liberadas num corredor humano liderado por Shingali em marcha até Rojava, na Síria

Foto: Donatella Rovera/ Anistia Internacional

Líderes comunais yazidis iraquianos estão reagindo com forte indignação à morte de uma importante figura do proscrito Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). Zaki Shingali morreu quando jatos turcos atingiram o comboio que o estava levando de volta de um evento para lembrar um dos mais violentos massacres realizados pelo Estado Islâmico (EI) contra os sitiados yazidis em Kocho, entre 3 e 15 de agosto de 2014. Shingali foi abatido por um ataque aéreo turco na última terça-feira, 15 de agosto, na área de Sinjar, no Iraque, região sob influência da minoria curda considerada um dos povos mais antigos da região.

Shingali retornava de homenagem às vítimas de 2014 quando foi abatido pela artilharia turca na última terça-feira

Foto: Reprodução

Shingali retornava de homenagem às vítimas de 2014 quando foi abatido pela artilharia turca na última terça-feira

Foto: Reprodução

GENOCÍDIO – A União das Comunidades do Curdistão, que confirmou nesta quinta-feira, 16, a morte de Shingali, denunciou o que chama de “continuação do genocídio yazidi” e exigiu que o Iraque fechasse o espaço aéreo de Sinjar para os aviões turcos.

Nadia Murad, ativista yazidi de Kocho que foi mantida em cativeiro pelo EI e tornou-se a face pública das milhares de mulheres que foram sexualmente abusadas pelos jihadistas do EI, transmitiu pelo Twitter seu desalento. “Hoje é o aniversário do massacre cometido contra minha aldeia de Kocho. Hoje a Turquia realizou vários ataques aéreos em diferentes locais em Sinjar. Sinjar continua a ser uma zona de guerra”, alertou, questionando “como os yazidis podem se recuperar desse genocídio ou voltar para casa?”.

O dia 15 de agosto também marcou o 34º aniversário do lançamento da campanha armada do PKK – inicialmente para a independência curda e depois para a autonomia – dentro da Turquia. As Forças Armadas da Turquia disseram que realizaram a operação que “neutralizou” Shingali em conjunto com a Organização Nacional de Inteligência Turca (MIT). A mídia turca pró-governo Recep Tayyip Erdogan comemorou a notícia. “A cabeça do PKK foi arrancada”, celebrou o jornal Star na manchete da primeira página.

MASSACRE ÉTNICO – O saldo do cerco montado por ativistas do Estado Islâmico, no início de agosto de 2014, teria sido de 30 mil mortos e 5 mil mulheres escravizadas – muitas delas mantidas reféns até hoje por compradores de “escravos” do EI, segundo os turcos. Outras 100 mil pessoas foram liberadas num corredor humano liderado por Shingali em marcha até Rojava, na Síria.

Simbolismo dos ataques

Para a pesquisadora Florencia Guarch, a execução do líder curdo está carregada de simbolismo, assim como os ataques de Erdogan a templos históricos

Foto: Arquivo Pessoal

Para a pesquisadora Florencia Guarch, a execução do líder curdo está carregada de simbolismo, assim como os ataques de Erdogan a templos históricos

Foto: Arquivo Pessoal

Para Florencia Guarch, pesquisadora da revolução no Curdistão e integrante do Comitê de Solidariedade de Porto Alegre, a Turquia trabalha muito com o elemento simbólico. “Essa morte está inserida nesse contexto, o do simbolismo das datas que são muito importantes para o povo curdo e qual o recado que os turcos querem passar com isso”, explica ao registrar também que é importante lembrar a série de ataques do país comandado por Erdogan a sítios arqueológicos yazidi. O mais recente deles, “o mais importante” para Florencia, é o ataque ao templo de Ishtar. “O templo, antiquíssimo de 6 mil anos, tem uma importância muito grande não só por marcar a história da Mesopotâmia, mas pelo simbolismo de ser uma Deusa Mulher”, explica a pesquisadora, enfatizando que esse ataque à história também tem efeito simbólico. O PKK, destaca Florence, cumpre um papel muito importante de resgate da história da minoria curda yazidi. “O PKK combate todo o processo de assimilação cultural que tem sido jogado em cima dos curdos ao dizer que o povo Curdo é um povo ancestral. Que Síria, Turquia, Iraque são estados nacionais que surgiram muito tempo depois e que os curdos já estavam na região com sua identidade”, afirma.

Florencia ainda discorda do status de organização terrorista dado ao PKK por Turquia, Estados Unidos e Comunidade Europeia. “Eles não devem ser considerados terroristas, pois são uma força fundamental para o enfrentamento do extremismo islâmico no Oriente Médio, ao mesmo tempo em que têm apresentado diversas propostas para a solução democrática e pacífica para a chamada questão curda na Turquia. Por outro lado, na Síria tem sido um dos maiores propulsores para a organização democrática da sociedade em Rojava”, pontua a pesquisadora.

Conflito constante

Shingali, um agente sênior do PKK, cujo nome real era Ismail Ozden, nasceu na Turquia, que abriga uma população cada vez menor de yazidis. Para o veterano do PKK é creditado o resgate de milhares de yazidis que foram sitiados no Monte Sinjar quando a EI tomou a cidade de mesmo nome e as forças locais peshmerga curdas iraquianas não entraram em combate por sua defesa. Desde a retomada da cidade, o braço armado do PKK, as Forças de Defesa do Povo, manteve uma presença modesta na região, enquanto treinavam uma milícia local yazidi para se defender sozinha, as Unidades de Resistência de Sinjar (YBS). Em março, o PKK anunciou que estava se retirando de Sinjar em meio a ameaças turcas de ataque. Para analistas, a Turquia manteve o ataque porque vê pouca diferença entre o PKK e seus aliados yazidis. Sinjar é uma ponte vital entre a sede do PKK nas montanhas de Qandil e na Síria, onde seu braço sírio controla uma grande faixa do território.

Combatentes do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) chegam à cidade de Dohuk, no norte do Iraque

Foto: Mundo Obrero/ Divulgação

Combatentes do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) chegam à cidade de Dohuk, no norte do Iraque

Foto: Mundo Obrero/ Divulgação

O ataque a Sinjar, ocorrido no dia 15 de agosto, não foi o primeiro.  Jatos turcos atingiram o Monte Sinjar em abril de 2017, deixando vários combatentes peshmerga feridos ou mortos. O Ministério das Relações Exteriores do Iraque denunciou, na época, a operação como uma violação da soberania do país. Desta vez o silêncio impera em Bagdá. Um dia antes da operação, o primeiro-ministro iraquiano Haider al-Abadi se reuniu com o presidente turco Recep Erdogan em Ankara. Analistas especulam que o ataque a Sinjar aconteceu com a bênção de Abadi, que estaria cortejando o apoio de Ankara para manter sua cadeira na montagem de um novo governo iraquiano. A Turquia é mentora de uma aliança sunita iraquiana liderada pelo ex-governador de Nineva, Athil al-Nujaifi, e acredita-se que também esteja em contato com o magnata iraquiano Khamis Khanjar, outro influente agente do poder.  Mais uma reviravolta importante na região que vive em constante conflito, pois até então Bagdá apoiou o YBS, pagando salários de militantes para contrabalançar não só a influência curda iraquiana, mas também as forças especiais turcas na região.

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